quarta-feira, 28 de outubro de 2015

SÔ BENJAMIN, O MATADOR DE ESTRELAS




   Na rua onde vivi menina e me tornei jovem tinha um homem diferente. Morava sozinho numa casa bem próxima à nossa. Às vezes eu sentia medo dele, outras vezes ele me parecia inofensivo. Era alto, não era tão jovem e vivia fazendo caretas. Andava de um lado para outro sem ter para quê nem porquê. Entrava e saia de sua casa com passos apressados. Era mesmo muito esquisito aquele  meu vizinho.
  
   Levantava muito cedo. Parecia que nem dormia e logo ligava seu rádio no mais alto volume. Ouvia músicas que eu desconhecia. Pareciam bandas militares executando marchas ou hinos. Dava-me  impressão de que sempre havia um pelotão de soldados dentro de sua casa e ele marchava de dentro para fora e de fora para dentro.

   Até que um dia nosso homem resolveu comprar um Jeep velho, com carroceria de lata. Era alaranjado e branco. Parecia uma fruta quadrada amadurecida. Então começou a construção da garagem que mal cabia aquele trem nas laterais. Enquanto isto  ele ficava tomando conta do seu patrimônio dia e noite. 
   
   E aquele carro realmente dava-lhe muitos desassossegos. Para tirar ou colocar o tal Jeep naquele pequeno espaço havia que se fazer muitas manobras. E ele não era dado às referidas manobras. O acelerador pisado até o fim provocava um som ensurdecedor. Tal qual um avião levantando voo. 

  Assim que as mães escutavam aquele conhecido som, corriam para tirar os filhos da rua. Então nossa rua era só dele e do seu automotor. Descia e freava e o danado do carro morria. Então o jeito era fazê-lo pegar no tranco. 

  "Minha Nossa Senhora! Esse homem ainda vai matar alguém!"

   E o Jeep alaranjado não pegava nem ladeira abaixo. 
   
  Entretanto outras vezes o bicho fruta alaranjado pegava e ele saia todo orgulhoso e bufando. Dava umas voltas por ali e já vinha ele de volta.

   Algumas vezes ele o arrastava no braço com ajuda e arruaça da meninada. Seu esforço era tal que fazia sugerir caricaturas de heróis de revistas em quadrinhos. As caretas aumentavam à medida de seus esforços. Não tinha dia nem noite. Era tudo igual. 

   Entrava semana, acabava semana e aquela peleja continuava. Acho que aquele pobre veículo sofrera muito nas mãos do Sô Benjamin.

   Nosso personagem não tinha familiares e nunca o vi com namoradas. Era mesmo muito solitário. Os vizinhos gostavam dele e não se importavam com sua estranheza. 

   Ouvia dizer que ele tinha muito dinheiro guardado e eu ficava pensando o que ele iria fazer com a tal dinheirama. Alguns falavam que ele guardava seu tesouro debaixo do colchão. Acho que devia ser verdade.

  Outras vezes cismava com as estrelas. Pegava sua arma de cano comprido e ficava mirando nelas. Escolhia uma ou outra e fingia que estava atirando. Deveria sentir-se vitorioso quando elas piscavam pois poderia ser sinal de morte com seus tiros nada certeiros. Ele falava que eram aviões inimigos. Coitadas das estrelas. 

  Sô Benjamin ria um riso escancarado, sem motivo e sem graça. Certamente era um riso que só dizia respeito a ele. Lembranças, talvez. Gostava de se apresentar como um homem corajoso, forte e destemido. Não era um homem bonito nem feio. Era só um homem. 

   Andava sempre com calças de um jeans grosso, maiores que seu corpo já não tão pequeno, seguras ou amarradas com cintos grosseiros. Usava quase sempre camisa e paletós de brim verde oliva com distintivos e fitas dependuradas no peito. Fizesse frio ou calor era assim que nosso vizinho vestia.

   Sua fala era desamarrada. Solta. Nada ligava com nada. Acho que ele não conseguia colocar verbos em suas frases. As ações ficavam por conta de seu corpo. 

   Eu não gostava nem desgostava dele. Ele apenas fazia parte da minha rua assim como seu Jeep alaranjado. Um era o outro. Como se fossem um só. Patrimônio Brasileiro da Segunda Guerra Mundial e personagem da história daquela rua cheia de meninos.


quarta-feira, 21 de outubro de 2015

MADRUGADA DESESPERADA



        Nesta noite cheguei tranquila ao hospital. Afinal seriam vinte e quatro horas e eu não iria adoecer de novo.
        
        Quase uma hora da madrugada fui chamada na ala feminina com alguma urgência. Desci as escadas e lá cheguei com minha calma.

       Uma paciente encontrava-se desesperada e andava correndo de um lado para outro até ir se esconder debaixo de uma cama. Várias outras pacientes acordaram e tentaram ajudar aquela.

     Convidei-a então para conversar comigo e, com muito custo, a moça sentou-se ao meu lado. Perguntou meu nome embora eu já havia lhe dito ao tentar alcança-la em suas andanças.

    Ela falou da saudade da mãe e dos filhos. Dizia que queria ir embora. 

    Após mais alguns minutos ela me pediu um papel e pediu emprestada minha única caneta.

   Enquanto faço anotações em seu prontuário eletrônico ela chega até mim com o tal pedaço de papel.

   Gentilmente me entrega aquele e devolve minha caneta.

   Então ao sair dali leio:



       "Eu quero Deus ilumine seu passo e Família seja feliz.

                          Rivelem Deus te ama de coração.

                                     Você vai brilhar para sempre."



        Fez o desenho de uma estrela ao lado de um coração.

                     Eu e ela unidas naquele momento.

    E é assim que Deus me aparece, acreditando nele ou não.


21/10/2015

   

terça-feira, 13 de outubro de 2015

FARINGITE ALÉRGICA



                ...e minha voz  foi embora.


   Deveria cumprir um plantão de vinte e quatro horas na noite de um sábado. Eu que já vinha perdendo minha voz desde o dia anterior após uma chuva forte que caiu sobre Betim, a perdi de vez. É sempre assim. Quando as águas caem sobre a terra seca. A poeira e seu cheiro forte  sobem após os primeiros pingos d'água e entram nas minhas narinas. Então começa a alergia... Quando não obstrui meu nariz, me traz irritações na garganta.

  Ontem havia conseguido dar o meu plantão semanal, também de vinte e quatro horas. Hoje não sei...

  Tento manter a calma, afinal terei que atender até amanhã a noite numa troca de plantões feita com um colega paulista.

  Já no primeiro atendimento, meu companheiro de trabalho médico, gentilmente me diz: "Pode deixar que eu atendo". E lá se foi ele.

  O telefone toca e não consigo me fazer ouvida. O supervisor de enfermagem me pede então que atenda dois pacientes na ala tal pois estavam nervosos e insones. E agora lá vou eu sem minha voz. Com a ajuda dos técnicos ainda me fora possível avaliar aqueles dois jovens.

  Logo chega outro paciente externo para atendimento em urgência. E meu colega mais uma vez se dispõe a atendê-lo

  "Isto não está certo. Não é justo meu colega fazer o trabalho dele e o meu", pensava eu.

   Então peço ajuda, via o terrível WhatsApp, e uma colega se propõe a vir fazer o plantão das doze horas do dia seguinte. Não consegui dormir esta noite. A tosse seca, o mal estar e a vergonha por não conseguir dividir o trabalho com meu colega tiraram meu sono.

  No domingo cedo vou embora para casa e minha filha telefona para meu mais novo e querido médico, Dr D'Ávila, meu sobrinho que estava de plantão numa UPA de BH. E ele que se dispôs a me atender. Afirma que, provavelmente, eu não teria condições de trabalhar e que teria direito a cinco dias de afastamento. 

   Decido ir até ele. No caminho a esposa telefona e diz que ele iniciara com uma violenta cólica renal e que já estava levando-o para outro hospital. 

  Eu não iria voltar para casa daquele jeito!!!

  A quem pediria ajuda? Tenho várias colegas médicas que jamais recusariam me atender naquela metade de manhã de um domingo de sol ardente e eu doente.

  "Vou tomar café com meu filho e sua esposa", decido eu. 
   
   Minha filha, agora motorista, faz contato com o irmão que se alegra com tal visita inesperada. Eles haviam ido buscar os filhos do primo médico para cuidar eles. Passamos no supermercado e compramos frutas e pães. Adoro pães e padaria.

   E não saía nenhum som com minhas palavras.

  "Repouse sua voz e beba muita água", foi a orientação do meu sobrinho já hospitalizado.

  Então começa um dia ainda mais inusitado. Havia esquecido meus óculos, meu aparelho de audição e não conseguia falar. Eu estava deveras perdida.

    Só havia uma saída: brincar com Tiago e Alice, de dois e sete anos respectivamente. Tiago não entendia porque eu falava sem som e, ao conversar comigo, também o fazia falando baixinho. 

   A mesa do café da manhã foi posta e nos fartamos de deliciosos pães, biscoitos, sucos, leite e queijo que nunca pode faltar nas nossas refeições da manhã e da tarde e do almoço e do jantar.

  A seguir brincamos construindo carrinho e aviões com as peças de Lego. Fizemos aviões de papel e fizemos várias viagens pelos espaços daquela sala. Rolamos sobre o colchão no chão. Outras vezes ficávamos observando Dori, Nina e Spock, os gatos da minha nora, com seus pulos e olhares felinos.

  Numa determinada hora me fingi de ninja e, com Tiago, ousamos dar golpes no ar e gritos mudos em japonês e mandarim. Lutamos contra os guerreiros samurais do "mal" que, nesta hora, estavam representados por minha filha. E ela, fingindo desespero, tentava amparar tais golpes desengonçados de dois ninjas super poderosos.

   Alice brincava e sempre estava ao lado da futura mãe de meu neto já a caminho. Meu filho cuidava do almoço e, a todo instante, era requisitado pelo afilhado ninja e apaixonado por carros. Minha filha, curinga, ajudava a todos.

   Então chega a informação de que o pai do ninja e da princesa Alice seria operado e o pedido para que  os dois pudessem continuar ali até o dia seguinte.

   A TV não fora ligada em nenhum momento e nem as crianças pediram para ver algum programa. Fiquei orgulhosa da educação que deveriam receber em casa.

   Após o almoço a ninja mais velha e sem voz apagou por algum tempo. Efeito do cansaço, das lutas e dos chás ingleses que meu filho me dera durante todo o tempo que estivera com eles até então.

   Ao anoitecer deixei-os e voltei para minha casa. Tomei um medicamento indicado. Tomei um banho e deitei. Mais uma vez o sono não chegou. Os pensamentos não paravam, iam e vinham. Faziam arruaças na minha cabeça. Queria entender aquelas últimas vinte e quatro horas. 

   Meu filho e minha nora enviaram mensagens de agradecimento pela ajuda com as crianças.
Mas quais eram as crianças a quais eles se referiam?

  Sem conseguir ler uma frase, sem escutar bem o que me era falado e sem conseguir botar som nas minhas palavras, só me restara fazer mímicas e brincar. E eu brinquei muito mais que Tiago e Alice.

 Certifiquei-me que estava pronta para a chegada do meu neto. 

  Portanto, chegue logo Eduardo pois sua avó já se permitiu ser criança de novo.


06/10/2015

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

AS PEDRAS DA MINHA RUA




                               
   As casas da minha rua sempre me fizeram lembrar aquelas que meu pai confeccionava. As dele eram de papelão, geralmente caixas de sapato, cobertas com papéis manilha coloridos e com janelinhas abertas. Todo ano ele tinha que refazê-las pois o tal papel desbotava. E meu pai era muito engenhoso na arte de fazer as tais casinhas para os presépios. 

   Era o natal chegando. Desde a escolha pela nova árvore, pelos novos enfeites e por mais casinhas, ele e minha mãe davam sempre um jeito, a cada ano, para inovar tudo. Num ano era um galho de jabuticabeira, outro ano era de goiabeira, outro de pinheiro, outro de arame e por aí afora. Mas todas elas eram feitas com muito capricho. Escolhiam qual seria o canto da sala naquele ano para abrigar as ruas, os animais na mata, a casinha com a manjedoura onde nascera o Menino Jesus e muitas invenções. Nosso presépio ficava maravilhoso em qualquer local onde fosse feito. 

   Dora, minha irmã mais velha, muito prendada em arrumações e novidades para a decoração, dava suas opiniões e fazia velas e coroas coloridas em papéis laminado vermelhos, azuis, verdes, amarelos. Ainda me lembro de muitos detalhes de nossos dias e noites de natal naquela rua.

   Mas não foi para falar do natal que comecei esta história. Quero mesmo é falar de um período nesta minha rua que me deixou bastante intrigada e pensativa. 

   Nesta minha rua moravam pessoas de classe baixa. Éramos  quase todos provenientes de cidades ainda menores que aquela, ou eram pessoas que vieram de zonas rurais do entorno. Todas as famílias tinham muitos filhos que pareciam regular nas idades. E tudo era uma festa naquela rua de crianças e de trabalhadores braçais. As casas eram simples, pequenas e suas paredes frontais davam diretamente para o pó que cobria a rua.

  Veio o calçamento, o meio-fio, os passeios, e nossa rua começava a ganhar jeito de cidade grande. As pedras eram muito escuras, pontiagudas e dificultavam o uso de sapatos e sandálias de salto alto. Não importava. Havia os passeios em quase todas as casas. 

   Hoje solicitei a um amigo professor e engenheiro de minas que viveu naquela rua quando criança, que me ajudasse na descrição e nomeação de tais pedras. E esse tal de celular logo me trouxe a resposta. Pois bem, trata-se de "granito andorinha, também chamadas de pedras de calçamento. Tem nas regiões de Jeceaba, Lagoa Dourada, etc", respondeu-me ele. 

   Logo entendi porque aquelas pedras foram parar na minha rua. Elas estavam por ali, pertinho daquela cidade da minha infância. 

   Minha rua que tinha o pisar macio da terra vermelha ganhou dureza e tonalidade escura. Nunca gostei daquela mudança. Na verdade, ela indicava também que eu crescia junto com o desenvolvimento urbano.

   Nesse tempo outras verdadeiras mudanças aconteceram nas casas, motivo desta minha história.


   Não sei de onde tiraram aquela ideia de cobrirem a metade inferior das paredes que davam para frente da rua com pedras. Eram outras pedras. Embora essas, ao contrário daquelas do calçamento, tinham as cores mais claras, também estavam tão pertinho de nós quanto as escuras. Meu amigo professor, mais uma vez, me enviou o nome dessas: tratavam-se de "quartzito, também chamadas de pedras Ouro Preto ou São Tomé". Estas bem mais famosas e conhecidas. 

   Havia uma peculiaridade nessas transformações. Alguns moradores resolveram dar novas formas às pedras uma vez que as mesmas tinham seus tamanhos e formatos semelhantes. E foram talhadas e transformadas em diferentes objetos do nosso cotidiano. E aquilo chamava atenção não apenas de nós, os moradores, mas de todos que por ali passavam. 

  Voltei lá recentemente para fotografá-las. A rua estava deserta naquele final de tarde de sábado. Revivi um tempo do sem futuro. Foram várias fotos. Uma amiga apareceu na hora mas se escondeu ao me ver fotografando as casas. Percebi que algumas delas ainda guardavam intactas aquelas pedras nas paredes. A casa do meu amigo professor era uma delas.


  Tem violão, coração, estrelas, lua cheia, lua crescente, lua minguante, peixes, um animal não identificado (cachorro? paca? burro?), pé, pássaro, galinhas e até um porco. Há que se ter olhos para ver toda essa riqueza  entre aquelas pedras. 


  Minhas  fotos mostraram também que algumas casas foram pintadas recentemente mas mantidas tais pedras com novos rejuntes da cor daquela época, qual seja a cor preta contrastando com as cores palha e dourado das ditas pedras Ouro Preto. 
  
   Para minha tristeza e das gramíneas que nasciam entre o tal "granito andorinha" mas para o bem mal nome do progresso, minha rua fora asfaltada numa época em que estive longe dali.

  Bem, alguns dias depois das tais fotos, ainda continuava viajando pela minha rua agora tão distante de mim. E uma dor nostálgica tomou conta das minhas lembranças e das minhas saudades.

    Então tive a certeza, mais uma vez, que meu celular ou quaisquer outras máquinas fotográficas de última geração jamais  poderão fotografar o que aquelas pedras e suas bizarrices deixaram marcadas dentro de mim. 

   Cá dentro de mim essas pedras tem a maciez do colo e da pele de uma mãe, a dureza de uma realidade pobre, a alegria da criançada no corre corre, a ética daqueles pais, a invenção dos teatros defronte aquelas casas, o brilho de alguns adolescentes vislumbrando um futuro melhor e os amores da juventude nascidos ali.

  Tudo permanece em minh'alma como todas as pedras que ainda decoram minha rua.


29/09/2015