quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O PRIMEIRO NATAL DEPOIS DELE



Acordei hoje no mesmo horário de todos os dias. Havia decidido dormir mais um pouco. Afinal é dia vinte e quatro de dezembro. Escureci o quarto e continuei na cama. Então um pesadelo me fez acordar de novo. Levantei, preparei meu café e fui lavar roupas. Na máquina. Sempre gostei de cuidar das lavações.

Enquanto a água do meu café fervia, meus pensamentos foram tomados pela lembrança dele.

Todos os anos uma árvore nova. As casinhas do presépio eram reparadas e a manjedoura cuidadosamente colocada lá. Vazia ainda. Aguardaria a meia-noite para a chegada do Menino Jesus. 

Doces feitos na semana anterior. Cartinhas escritas e alegrias nos ares. 

Nos tempos de muita dureza ele sempre dava um jeito para essa ou aquela boneca. As primeiras bonecas eram de papelão e nos decepcionavam quando, ao lhes dar banho, elas desfiguravam e morriam.

Um ano aventurei e pedi um livro. Um clássico. Ao acordar lá estavam Jean Valjean, Cosete e Fantini. Fiquei o resto do ano e as semanas seguintes debruçada sobre Victor Hugo. Era o ano de 1968.

As madrinhas e uma Tia linda nunca nos deixavam sem um presentinho. Um ano ganhei Silvinha e Andréa e brinquei com elas durante vários anos seguidos. Acho que foram aquelas minhas únicas bonecas de plástico. Minhas duas adoradas filhas.

Outro ano foram pulseiras. Um tecido para um vestido. Estava virando mocinha.

Quando meu irmão, ainda muito jovem, fora trabalhar na sapataria de um turco, ganhamos sapatos.

Mas a festa era menos dos presentes do que o entusiasmo dele com sua família. Eram muitas palavras sábias ditas com lágrimas nos olhos. Ele sabia o que dizer, como dizer e que horas dizer. E isto fazia toda a diferença. Jamais depreciou um filho, um vizinho, um amigo, um chefe. Talvez sofresse calado pelas desilusões ao longo da vida.

Num dado ano morreu-lhe o filho aos quarenta e dois anos. Era inicio de fevereiro. Um enfarto agudo do miocárdio matou-lhe sem o merecido recurso médico. Na cidade que ele tanto amava. Metade dele morrera também. Acolheu os três netos como se filhos seus fossem. Em novembro daquele mesmo ano morrera-lha a esposa. Vitimada por um câncer. Então ele faria setenta e nove anos na véspera do próximo natal. Reuniu todas as suas forças e convocou-nos para a grande festa do natal. Choramos a alegria do irmão ausente e a mãe que tanto sofrera naqueles últimos meses.

No ano seguinte àquele ele passava seus dias sentado no passeio a esperar pelo filho morto que poderia virar a esquina e vir lhe tomar a benção. Isto era feitio daquele. Em todas as suas viagens jamais deixara de passar por ali para a benção do pai. E, obviamente, grandes gargalhadas.

Naquele próximo ano ele faria seus oitenta anos. Exigiu uma grande festa com direito a banda de música, aluguel de espaço adequado e convites. Seu neto mais novo nasceria naquele dia no interior de São Paulo. 

Chamou-me a parte. Falou de suas várias pretendentes a um novo casamento. Pediu reserva de convites e apoio para seu intento. Disse-me que naquela festa escolheria sua nova esposa. Foram doze as suas convidadas especiais e onze delas compareceram a tão grandiosa festa. Casou com aquela que não fora. Ela então com trinta e nove anos.

Mais festas de noivado e casamento nas vésperas do natal do ano seguinte. E ele ajudou sua jovem esposa a educar e cuidar dos dois filhos adolescentes do seu primeiro casamento.

E a família continuava  crescendo. Agora a chegada dos bisnetos deixava-o cada dia mais feliz e a contar e anotar datas de aniversários e nomes. Jamais deixara de telefonar ou de presentear um de seus vinte e dois netos. Sabia das diferenças e dos gostos de um cada um deles.

Atleticano desde sempre, contava histórias dos tempos do onça e ria. Seu riso era sua marca patenteada. 

Vaidoso fora a vida toda e tinha motivos estéticos para tal. Estatura acima da média, cabelos louros, olhos azuis e nome inglês.

Nem mesmo a paralisia facial traumática lhe tirou o apreço pela música. Inventou um bucal para adaptar ao seu bombardino e mandou confeccioná-lo em aço inoxidável. E continuou tocando na banda, no coral da igreja, na bandinha carnavalesca "Centrofônica" e no grupo de seresteiros. E, certamente, fora o assoprar que lhe manteve vivo com o vicio imoderado do tabaco.

Neste ano, seu pulmão tomado pelas tramas da nicotina e suas artérias obstruídas, agravaram seu quadro clínico. No telefone dizia "Eu não tenho nada minha filha. Estou ótimo". E eu cá com minha medicina e meus filhos dizia "só mesmo a música e a família para lhe manter vivo". Jamais queixou dores físicas. Suas dores eram bem outras. Saudades. Saudades dos filhos distantes, dos netos, do filho querido que se fora tão jovem e da esposa, amada companheira por cinquenta e dois anos.

Entretanto numa recente madrugada de segunda feira chorou de dor. Fora logo internado. Na mesa do meu almoço daquele dia decido fazer a viagem para estar com ele. O médico, amigo dos últimos anos, conversa comigo e fala da gravidade do quadro. Aneurisma de aorta abdominal trombosada. Morfina para a dor. Era o fim. Os filhos vão chegando de longe. Os netos enviam fotos com aquele vô lindo dos olhos azuis. Ele pede uma cerveja ainda dentro do hospital. Um irmão satisfaz seu desejo após autorização do médico. Todos acatam a sugestão . Ele deveria ir para a casa dele. Não havia mais o que fazer.

É tempo de seus noventa e seis anos. A festança já fora encomendada. O natal está chegando. Outra festa. 

Mas ele vai-se dormindo, sem as festas que tanto gostava. E sem conhecer meu neto, Eduardo, que nasceria duas semanas após.

No velório ganho vários abraços. Dois deles com palavras reveladoras: 

-"Seu pai nunca deixou meu filho sem presente no natal. Ele e sua mãe compravam presentes para as crianças pobres da rua". 

Ao lado daquela mãe estava seu filho, hoje portador de doença mental, a me abraçar com seu sorriso infantilizado. 

Outro abraço se dera pela madrugada quando sou chamada por um antigo vizinho que brilhara no futebol em sua juventude. No passeio do outro lado da rua. Estava alcoolizado. Então, chorando, me abraçou e disse: "O único presente de natal que ganhei em toda minha vida foi seu pai que me deu".

"Mas éramos tão pobres", pensei calada. Eu nunca soubera disso.

Neste primeiro Natal sem ele toda a família tem feito um enorme esforço para continuar com nossas festas. E em meio aos preparativos nasceu mais um bisneto, Artur. João, seu vigésimo bisneto, chegará em maio de 2016.

E você, meu pai, continuará no meu natal em todos os anos do resto da minha vida.

Betim, 24/12/2015


Observação: por favor, assinem os comentários para eu saber quem são vocês. Obrigada



Fotografia: Papai com filhos e netos em 2013, final da Copa Libertadores da América com nosso Clube Atlético Mineiro sagrando campeão.


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

NATAL NA RUA DE CIMA




Em março ou abril de 1962 mudamos para Conselheiro Lafaiete. Meus pais, seus seis filhos e mais um na barriga da minha mãe. Eu faria seis anos em julho.

Assim que nos instalamos fui matriculada no pré-primário do Grupo Escolar "Inconfidência" mas a escola quando percebeu que eu já sabia ler, não me aceitou naquela turma. Tive que esperar fevereiro do ano seguinte. 

Chegamos inicialmente numa linda casa alugada até que a nossa casa de verdade tivesse sido reformada para nos receber. Caprichos do meu pai. Era uma casa à direita, descendo numa grande ladeira. Ela ficava acima do nível da rua e tinha escadas na lateral para entrar nela. Eu nunca tinha visto casas pintadas de alaranjado misturado com vermelho. (*)

Desta casa eu me lembro das descidas até o final do morro para fazer compras no armazém do Sr. Antônio Dutra. Na caderneta. Subíamos aquela rua parando várias vezes para descansar e tomar fôlego. Eu e minha irmã. Cada uma segurando uma alça da sacola com os víveres para toda a família. Onde estariam meus irmãos mais velhos? Quem sabe na escola ou procurando serviços! Nessa época minha mãe tinha adoecido e quase não saia do quarto. Acho que sentiu muito ter deixado os seus para viver perto dos parentes do meu pai.

Logo mudamos para a nossa casa. Ela também era linda e cheirava a tinta nova. Tinha um quarto dentro do outro quarto onde foram alojados todos os seis filhos. Eu também. E outro quarto para meus pais. Uma sala pequenina, uma copa e uma cozinha com um lindo fogão a lenha que ocupava quase todo seu espaço. A porta saia para uma escada até um tanque de cimento sem cobertura para tampar o sol ou a chuva. Um banheiro grande e esquisito. Era tudo  feito de acordo com o querer do meu pai e ele sabia o tudo de uma casa. 

Mas a rua é que fora a grande novidade. Era uma rua novinha. Sem água, sem luz e sem calçamento. Entretanto era uma rua acolhedora e cheia de meninos e meninas das nossas idades. Ela nascia de uma outra rua e esta era cheia das casas grandes, de gente rica e bonita. Eu voltava da escola passeando meus olhos por toda aquela beleza. Chegava em casa com tanta fome que logo esquecia da pequenez da nossa ruazinha. À tarde, após os tantos dos deveres para casa da escola, saíamos para o meio da rua onde era sempre uma festa as brincadeiras. E eu fui me apegando àqueles moradores desconhecidos que logo fariam parte de nossas vidas.

Abaixo da minha casa morava e ainda mora Dona Hilda com suas três filhas e seu filho mais velho que eu quase não via. A mais velha tinha um nome muito diferente daqueles da minha cidade que tudo tinha de ter nome de santas e mártires. Luciana, era esse seu nome. Eu achei aquele nome digno de uma princesa. E ela vivia muito para dentro de si. Uma princesa dentro do seu castelo. Já trabalhava mesmo ainda mocinha. Depois tinha a Aída com os cabelos tão compridos e bem cuidados que eu ficava admirando tanta valença nos cuidados. Mas era a mais nova a mais bela. Parecia a Ceci de José de Alencar com seus cabelos negros e longos e sua pele morena. Sempre fora a menina mais bonita da rua. Causadora de muitos ciúmes. Uma rainha. Depois nascera a quarta filha. Uma boneca dos olhos verdes. O pai delas morrera cedo e todas tiveram que trabalhar ainda muito jovens. 

Logo abaixo de Dona Hilda vinha a casa da Agda. A irmã mais velha andava pela rua sem olhar para ninguém. Dona da rua. A mãe dela a vestia como se fosse uma boneca de louça. Tudo combinando. Sapatos, meias, vestidos engomados, arquinhos na cabeça. Eu nunca havia visto tanta brancura ou tanta cor de rosa, ou tanto vermelho. Agda cresceu rápido. Depois casou. Teve um casal de filhos. E me convidou para amadrinhar a menina e se tornou minha comadre.

Um dia continuarei descendo a minha rua e falarei de outros tantos.

Do outro lado morava Sr. Antônio com seus sete filhos. Todos pareando suas idades com as nossas.

Eram tantos os nossos vizinhos que logo a rua virou uma só família. Viver ali certamente fora uma encomenda dos deuses para mim. Assim eu penso hoje.

E foi chegando nosso primeiro natal naquele novo mundo. A única irmã do meu pai era professora. Tinha um marido rico e moravam na rua  de cima. Aquela mesma rua de onde nascia a minha rua. Ela amava meu pai que lhe havia batizado e por quem tinha muito respeito e adoração. A mãe do meu pai morava com ela. Muito magrinha mas muito dona de suas vontades. 

Deu então deles convidarem nossa família para passar o natal com eles. Minha mãe ficaria responsável por alguns doces e carnes. Será que ela fez a sopa dourada? Era o doce de pão aquele que eu mais gostava. Ou a preferência de meu pai? Aquele doce de aletria que eu não gostava. Não faltariam os doces de figo e dos pêssegos colhidos no quintal da nossa vizinha.

Logo cedo após a noite do nascimento do Menino Jesus acordamos e subimos a nossa rua até sua nascença na rua dos ricos. 

A casa  da minha tia era a casa mais chique e bem arrumada de todas daquela rua. Tudo era novidade. As poltronas cobertas de tecido com estampa de grandes flores vermelhas e verdes sobre um fundo preto. Se hoje fecho os olhos ainda posso ver as flores bem vivas.

Meus tios não nos deixaram sem presentes. E seria sempre assim todos os anos naquela rua. Nesse nosso primeiro Natal na cidade dos meus tios já éramos sete filhos. O mais novo nascera em novembro. Meu tio dividiu com meu pai os presentes que ganhou em seu trabalho. Ele quase não falava e nem era preciso. Seus gestos falavam por ele.

E foi então que eu conheci aquelas bebidas doces, engarrafadas, com sabores estranhos e cores variadas. E que borbulhavam ao sacudirmos o líquido lá dentro. Ganhei uma só para mim. Alaranjada. Era uma garrafinha para cada criança. Aquele sabor ficava na minha boca enquanto exalava um cheiro gasoso. Cada gota era absorvida com o medo de que aquilo acabasse. E não deixei que acabasse. 

Terminado o almoço voltamos para nossa casa na rua nova debaixo daquela. E, logo ao sair da casa da minha Tia, passando defronte o açougue do Sô Adão, eu e minha garrafinha alaranjada como se fosse um troféu, vem lá de dentro uma voz  a dizer:

-"Parece que nunca tomou CRUSH na vida"

Era o feioso do empregado do açougue a debochar daquele meu apego por tão precioso líquido e em tão linda garrafa.

Desde então o sabor de tal bebida permanece na minha boca, o cheiro permanece na minha pele e as lembranças permanecerão a vida toda dentro do meu coração.


(*) Rua Francisco Lobo


OBSERVAÇÃO: esta história é dedicada a todos os moradores do Bairro Museu daqueles tempos. Em especial aos moradores da Rua Dom Silvério e Rua Mário Zebral, em Conselheiro Lafaiete (MG)

21/12/2015





domingo, 13 de dezembro de 2015

AOS MEUS LEITORES(A) DE TODOS OS LUGARES DA TERRA



   É com muita alegria que venho até vocês agradecer os 12 mil acessos deste blog. 

   Gostaria muito de conhecer cada um de vocês. Entretanto considero que os conheço um pouco uma vez que leem o que escrevo e, certamente, há uma identificação com minhas histórias.

  Tenho ainda dois sonhos: 

  - encontrar um canal mais eficaz de comunicação com vocês, o que até então tem sido feito via Facebook. Quem quiser me encontrar lá: MARIA DO ROSÁRIO RIVELLI. E

  - publicar um livro.

   Já plantei e ainda planto árvores, já tive filhos e há um mês me tornei avó e, agora, falta um livro.

   Trabalharei neste próximo ano para sua realização. Aceito sugestões.

   Um grande abraço a tod@s vocês. Obrigada pela companhia em 2015.

   Feliz Natal com muitos familiares por perto e uma bela festa na chegada do ano novo.

  Estarei sempre junto de cada um de vocês.

                   Carinhosamente

                 Maria do Rosário Nogueira Rivelli

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

RIO DOCE MEU DOCE RIO XOPOTÓ



   O tempo ainda era do encanto. Vivíamos no meu castelo das cores branca amarelada pelo tempo e do azul mais lindo que eu via pelos arredores. A rua de terra vermelha ajudava a colorir minha casa e minha infância. Mais parecia uma casinha que saia dos presépios para ser plantada ali, onde acabava a rua e começava a estrada. Ou quem quiser que seja o inverso.

   Pelas histórias dos meus pais eu conclui que chegara ali por volta dos meus dois anos.Tenho lembranças visuais prazerosas da casa lá em cima do morro onde eu nasci e vivi até a mudança para o meu castelo.

  Nele havia três pequeninhos quartos. Eu e minha irmã mais velha do que eu apenas um ano, dormíamos num deles. E meus dois irmãos mais velhos que nós dormiam noutro quarto. Ainda nem me dava conta da existência de uma outra irmã mais velha que morava com uma tia na cidade grande. Eu tinha então entre dois e cinco anos. Meu quarto tinha uma janela que não dava para a rua. Ela abria para os fundos. E, para mim, este fora o detalhe mais importante daquela meu mundo. Eu viajava através daquela espaço aéreo que me trazia o sol nascente, a geada dos tempos do frio, o perfume das flores das laranjeiras no outono, o doce das mangas no verão e o verde das bananeiras espalhadas por todo o grande terreiro em torno do meu castelo.

  Entretanto o que eu mais gostava e por onde eu realizava minhas grandes viagens era no Rio Xopotó que deslizava manso e majestoso traçando o limite daquele meu terreiro cheio de tesouros. Mas lá não tínhamos autorização para irmos sozinhas. Além do risco de encontrarmos as temíveis cascavéis pelos caminhos, havia o perigo de escorregarmos na beira e morrermos afogadas. E eu respeitava aquelas águas como se fossem sagradas. E elas eram santas.

  Algumas tardes meu pai nos levava até  às margens para pescar lambaris, piabinhas, quem sabe uma grande traíra ou bagres em tempos de chuva. Enquanto esperávamos os peixes beliscarem as minhocas, minha mãe providenciava o angu daquele fubá de moinho d'água. Então nosso jantar se transformava em verdadeiros banquetes reais.

   Às vezes eu perdia o sono a noite e ficava imaginando os desbravadores taubateanos daquela região subindo o rio em grandes embarcações, com belas mulheres a bordo e suas roupas imperiais. Alguns iam ficando pelos caminhos a demarcarem os territórios encontrados e conquistados.

    Meu pai dizia que o Rio Xopotó e o Rio Piranga nasciam juntos na Serra da Mantiqueira como dois irmãos e que eram separados apenas por pequenos obstáculos da natureza.

  Hoje eu sei que o Rio Xopotó cujo nome significa rio do cipó amarelo, nasce na cidade de Desterro do Melo, a 1.200 metros de altitude e o Rio Piranga nasce na cidade de Ressaquinha, às margens da BR 040, também a 1220 m de altitude. Portanto nascem bem próximos. Andam paralelos como dizia meu pai, que aproveitava para trazer conceitos de matemática, mas logo lá embaixo eles se encontravam de novo. 

   Eu sempre quis conhecer a tal cidade de Calambau, bem perto da minha cidade, onde os rios se juntam e formam um só rio. E eu ficava imaginando dois irmãos separados a vida inteira e se reencontrando após cada qual percorrer sua vida. Até chorava por aqueles  rios - irmãos. Mas me orgulhava porque eles se abraçavam para, mais abaixo, formar o grande Rio Doce que iria atravessar todo o leste de Minas e beijar o mar lá na cidade de Linhares, no estado do Espírito Santo. 

   "Um dia vou levar todos vocês lá para verem esse encontro", dizia orgulhoso meu pai. E eu cresci sonhando ver esse beijo de águas doces com as águas salgadas do mar.

   Nas nossas longas viagens de Lafaiete a Brás Pires, minha linda terrinha natal, ou dela para lá, escutava com muita atenção as histórias do meu pai sobre aqueles rios e outros tantos que ele conhecia, como o Rio Pará, o Rio Paraopeba - " o maior afluente do Rio São Francisco da margem direita"- o Rio Grande lá pras bandas de Lavras. Falava também do Ribeirão do Carmo, também afluente do Rio Doce, que cortava toda a cidade de Mariana onde ele nos levava para ver nosso terrível tio Felício Rivelli.
  
  Mas eu gostava mesmo era de ver as curvas do rio Piranga, irmão do meu Rio Xopotó que margeava a estrada por longos quilômetros. Ficávamos discutindo qual era o mais comprido, o mais volumoso, o mais largo, qual tinha as cores mais bonitas e as margens mais ricas. Obviamente que todos nós escolhíamos o nosso Xopotó. Então nosso pai tentava ser imparcial e dizia que um era mais que o outro naquele ou nesse quesito. Entretanto sabíamos que ele fazia aquilo para nos ensinar a diferença entre a razão e o coração. Porque ele também amava o nosso rio.  

   Um dia nosso Tio Padre, a quem todos nós chamávamos de Padrinho, pois ele não só era o padre a dar o sagrado sacramento do batismo como era também o padrinho de grande número dos sobrinhos e conterrâneos, nos levou lá na Fazenda da minha querida Tia Pitita. Como sempre, ele colocou muitos sobrinhos e sobrinhas dentro de seu Jeep 1957, novinho, e foi Deus quem nos guiou porque ele só sabia beliscar um e culpar o outro e, no final, todos choravam como ele queria e ria de alegria. Mas meu tio conhecia e sabia de tudo e ele nos levou por caminhos dentro da mata até um descampado aonde eu avistei uma das paisagens mais belas da minha infância.
   
   Meus olhos ainda enchem de emoção quando me vem a lembrança daquele rio largo, de águas cristalinas e pequenas pedras no fundo. Podíamos atravessá-lo até a margem do outro lado. Mas éramos pequenos demais para tamanha ousadia. Brincamos na beirada dele jogando água naqueles que estivessem mais próximos. E nos fartamos do Rio Xopotó ali bem mais próximo de sua nascente. Logo após ele atravessar a cidade de Cipotânea, em plena Serra da Mantiqueira.

   Mas os tempos das águas cristalinas se foram. Foram-se também os tempos da infância na roça e do viver entrelaçado com a natureza.     

   Hoje, após muitas centenas de quilômetros de andanças com curvas, remansos e histórias, mataram de uma só vez, os meus dois irmãos rios. E Bento Rodrigues, Mariana, Minas e o Brasil choraram comigo esta tragédia. O mundo político pediu severas punições aos assassinos daquelas águas sagradas e doces.

  Agora já não há mais lágrimas para chorar a morte do nosso Rio Doce. A lama do capitalismo borrou meus olhos que já vinham ofuscados pelas poeiras das montanhas sendo destruídas e levadas embora em vagões feitos do seu próprio aço. Filhos ingratos. 

   O beijo doce de suas águas com o sal do mar jamais será de amor.

   E nossas Minas Gerais, morrem a cada dia por causa de seu "coração de ouro num peito de ferro".

  Todavia rezo a nossa Mãe Terra para que dê muita vida e força ao meu Rio Xopotó para que ele reencontre seu irmão, o Rio Piranga e juntos ressuscitem o nosso Rio Doce. E que o beijo senão de amor seja de compaixão.

   

01/12/2015-  Uma homenagem a todos aqueles, que assim como eu, ainda choram pela tragédia de Mariana.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

OS LOUCOS E SUAS CIDADES




   Emerson. Era esse seu nome. E ele, como quem chega numa pousada nas montanhas de Minas, ficou ali muito a vontade. Tomou seu banho, vestiu aquelas roupas de brim, amarelas, padronizadas, confeccionas por costureiras da unidade e aparentou uma invejável tranquilidade nos arredores dos trabalhadores daquela urgência.


   Eram as derradeiras horas do último plantão da minha longa carreira de médica psiquiatra em serviço público de saúde do estado.

   Meus pensamentos vagavam através dos treze anos que estive ali atendendo em caráter de urgência às pessoas portadoras de graves doenças mentais, em crises, encaminhadas das várias regiões deste estado de montanhas, serras e rios.

   E nesta sexta-feira, treze de novembro, eu vivia particularmente momentos impensáveis. Meu primeiro neto estava chegando ao mundo e eu saindo naquelas próximas horas. 


   E tal qual um dos inúmeros pacientes atendidos durante este tempo, agora era eu também a andar de um lado para outro, como que desvairada e sem rumo. E eu estava, com toda certeza, sem rumo.

   Naquela sexta feira, como de costume, havia atendido muitas ligações do interior de Minas Gerais solicitando vagas, encaminhamentos, avaliações, reinternações e outras tantas demandas. Como amante da geografia, seja ela física, cartográfica, humana, hidrográfica, populacional, econômica,etc, eu aproveitava todos aqueles contatos para aprender mais sobre os municípios, seus nomes, localidades próximas e por ai afora. E não foram poucos os aprendizados obtidos. Ao atender os pacientes , ouvia sempre com a atenção merecida aquilo que era devido à minha prática naquela função; entretanto nunca faltava o interesse pelo local de origem. E, com certeza, por aqueles vieses, o atendimento ficava muito mais suave e o paciente bem mais tranquilo.

   O hospital conhecia as cidades através de seus mais bizarros cidadãos. Era o Ronnie de Ubaporanga, ou a Zezé de Fronteira dos Vales, ou o Adão de Abaeté, ou a Lucinha de José Gonçalves de Minas, ou a Fernanda de Caraí, ou a Telma de Caeté e um vasto repertório de nomes de pacientes e suas cidades. E eu, sempre fazendo associações com outros fatos envolvendo aquelas cidades e minha longa trajetória. Assim se dera com Verdelândia para onde fora um grande amigo, frei franciscano com quem eu tivera a oportunidade de caminhar por longos seis dias na Marcha Franciscana no ano de 2007. Ou Virgolândia e Divinolândia de onde vieram duas de minhas
primeiras pacientes portadores de hanseníase e de doenças mentais, na Colonia Santa Izabel em Betim, ainda nos anos 80. Ou Divino, ou Divinésia, etc. Eu gostava de saber as diferentes regiões às quais cada cidade estava entranhada. E viajava por todas elas com seus ilustres moradores ali atendidos.

   Eu sempre tivera mapas com os quais eu decorava as paredes das casa por onde morei. Obviamente que uma das brincadeiras mais queridas com meus filhos, foram e ainda são, conhecer países e suas capitais, suas cidades mais importantes, seus limites, sua hidrografia e sua cultura. E nós viajávamos muito pelos mais distantes e extravagantes países do mundo.

  Mas, agora voltando ao Brasil, Minas Gerais, Belo Horizonte, Hospital dos Santos Olhos (*), devo dizer que tive uma enorme preguiça para atender aquele que seria meu último paciente. Mas vamos lá.

  A enfermagem me informou que o havia conduzido ao banho antes do atendimento pois estava muito sujo e mal cheiroso. Não lembro se fora levado pela PM como mais um louco pelas ruas da capital ou se chegara espontaneamente como muitos o fazia. Não interessava. Ali estava Emerson em total harmonia com tudo ao redor.


 Abriu um belo sorriso como resposta à minha apresentação a ele, ao iniciar o acolhimento, o que acabou com quaisquer cansaços, preguiça ou coisa parecida. Seu hálito etílico e seus olhos avermelhados denunciavam uso recente e abusiva de bebida alcoólica. E a espessura de seu prontuário apontava para vários atendimentos anteriores naquela instituição. Disse-me que gostava de andar a pé e que havia vindo de Vespasiano- ou Sabará?- andando em companhia de Jesus, seu amigo. Quanto ao uso imoderado da bebida alcoólica, respondeu:

-" os homens da Rotam pagam bebida pra mim. Eles me deram duas garrafas de 51. Mas agora eu comprei um bar de cachaça lá na serra. Aquela Serra Capivari"

   Perguntei se ele estava sentindo bem dadas a aparência edemaciada da face, os olhos hiperemiados e o abdômen volumoso. Ao que ele me respondeu:

-" Eu estava andando no meu helicóptero e caí dentro de um barril de cachaça".

   E sorriu largamente de suas de suas próprias explicações.

   A técnica de enfermagem pediu licença e entrou para aferir dados vitais uma vez que o horário daquele plantão estava terminando e era preciso tais cuidados. A seguir ofereceu-lhe o jantar e ele, com muita dignidade, recusou a oferta preferindo "o soro que a doutora passou para mim". 

  A suavidade e alegria daquele paciente contagiou todos daquela urgência. Dele eu jamais esquecerei.

  Ainda fico pensando quais seriam as diferenças entre eu e meus filhos nas nossas longas viagens imaginárias pelo mundo e nas longas viagens reais a pé que nosso cidadão Emerson, tem feito pelo seu mundo.

  E meu neto nasceu na manhã seguinte. 

  Benvindo Eduardo. 



(*) Crônicas do Hospital dos Santos Olhos ( Kurt Bacamarte)
Meu mestre Francisco Paes Barreto com quem muito tenho aprendido e a quem dedico esta crônica.