quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
AMORES SOBREVIVENTES
Os meninos ainda pequenos e carentes de cuidados já haviam dormido. Apesar do silêncio e do adiantado das horas Letícia não conseguia descansar. Serviu-se de uma taça do seu vinho preferido, sentou-se na poltrona de sempre e deu asas à sua imaginação. Então lembrou de como o conhecera. Ele estava com amigos naquele bar perto do banco. Havia sido transferida recentemente para a cidade e saíra com os colegas numa noite de apresentações. Ela muito tímida tentava mostrar-se descontraída.
Embora fosse ainda muito jovem já carregava consigo responsabilidades de filha com pais idosos e doentes. Filha única.
Naquela hora aproveitou a alegria da recepção e deu-se conta de sua nova vida. Longe dos pais e amigos haveria de encontrar um espaço só seu. A transferência viera como uma promoção. A recusa seria descabida. Juntou a coragem à oportunidade e rumara para o desconhecido. Os pais ficariam bem com os familiares e ela poderia visitá-los uma vez por mês ou quem sabe a cada duas semanas.
E fora naquele dia que seus olhos encontraram outros a olhar para ela. E, por mais que tentasse evitar, lá iam seus olhos encontrar aquele olhar. Voltou para o hotel arranjado e dormiu feliz aquela noite.
No dia seguinte, logo após o cafezinho no banco, chegou-lhe flores com um bilhete de boas vindas. Debaixo da assinatura um número de telefone. Venceu aquele dia de metas e atendimentos ao público e voltou para seu quarto de hotel. Pensou muito e acabou decidindo por ligar para o moço, remetente das flores. Marcaram um encontro.
No devido dia ela se arrumou toda, fez-lhe uma suave maquiagem, vestiu uma roupa do acaso e lá se foi.
A noite de um céu limpo e estrelado conspirava para a paixão. Conhecer Douglas lhe trouxera mais força e ânimo para sua nova empreitada. Ele fora educado, gentil e soubera cativá-la para novos encontros. Não era tão jovem quanto Letícia. Já havia tido algumas companheiras e casamento desfeito. Ela escutara sua história sem fazer juízos éticos ou morais. Tudo dele contribuía para aumentar seu desejo. Tão logo se dera conta daquele amor. A partir de então traçara seu destino e investiu seu dinheiro poupado na compra de um apartamento.
Passado alguns meses foram viver juntos. O casamento viera mais tarde.
Depois de alguns meses de convivência, Letícia acordou numa manhã com lágrimas nos olhos. Um aperto no peito e um nó na garganta. Douglas trazia-lhe o café como sempre fazia. Enxugou o rosto molhado e saboreou aquela bebida antes mesmo de se levantar.
Naquele dia suas metas ficaram longe daquelas conquistadas no seu dia a dia de boa funcionária. Estava distante e nada sabia acerca dos seus pensamentos. No final do dia sentiu-se cansada, o corpo lhe pesava e seu estômago revolvia a comida não ingerida.
Seu primeiro filho nasceria dai nove meses.
Sentira que algo mudara na relação com o marido para além da chegada de Pedro. Ele com seu riso escandaloso, seu comportamento ainda com ares de irresponsabilidades e seu futuro, embora já não tão distante, ainda desarranjado. Letícia começava a sentir o peso que lhe caia sobre os ombros embora tivesse clareza da imensidão do amor que continuava nutrindo pelo homem que escolhera como companheiro. Voltara a trabalhar tão logo fora possível distanciar as mamadas. Fazia-se necessário retornar logo uma vez que Douglas vivia trocando de empregos e a chegada do filho aumentara por demais o orçamento da casa.
De vez em quando Letícia sorvia um gole de seu vinho e suas lembranças já não lhe doíam o peito.
A chegada do segundo filho coincidiu com o marido largando mais um emprego. À alegria do nascimento de Arthur juntava-se a tristeza do que viria. Mais uma vez Letícia sentiu-se só. Douglas se arranjava em serviços nada promissores. Bebia mais que o normal e retardava cada dia mais sua volta para casa. Nesse tempo falecera-lhe a mãe.
Dividida entre a solidão do pai e a sua própria, resolvera viver pelos filhos. Passou a trabalhar muito mais e atingia suas metas com muita competência. Junto ao reconhecimento vieram as promoções. E, junto ao novo cargo de gerencia, viera o distanciamento do marido. Ele que, de forma velada, sempre depreciara seu talento, não suportara sua ascensão. Foi o que ela encontrou para desculpar o homem que tanto amava.
O pai adoecera e Letícia decidiu, com a anuência do marido, que o melhor seria trazê-lo para morar com eles. Pedro e Arthur devolveram ao avô a vontade do viver. De uma só vez ganharam um amigo e um avô. Por esta ocasião sentimentos desconhecidos passaram a existir nela. Vergonha, constrangimento e infelicidade. A presença do pai amoroso, dedicado, correto e doente, fizera-lhe questionar acerca de seu casamento. O marido que já vinha tão afastado, afastara-se ainda mais.
Se por um lado a presença do pai lhe trouxera tais desconfortos por outro lado a alegria dos filhos e a melhora gradativa da saúde dele lhe restituíra a força para os trabalhos.
E tudo tomava os rumos de antigamente. Douglas fazia-se mais gentil, permanecia mais nos empregos e continuava a lhe trazer o café na cama.
Entretanto numa noite o marido não voltara para a casa como de costume. Letícia não dormira. Pela madrugada um telefonema. Uma mulher nervosa e autoritária perguntava por Douglas. Sem que Letícia tivesse tempo para uma resposta, a outra fora logo dizendo: " Ele está dormindo com minha filha de vinte anos. E já faz é tempo que eles estão juntos. Onde você esteve que não viu isto?"
Só então entendera as lágrimas daquela manhã distante. Ela sabia que esse dia chegaria e chorava pelo que viria.
Agora quando a noite já ia alta Letícia colocou mais uma taça de seu pinot noir rosa e bebeu prazerosamente. A seguir certificou-se de que os meninos dormiam tranquilos.
Então pode chorar pela morte recente do pai. A presença dele com seu silêncio naquela casa fora o bastante para que ela se sentisse amada no momento em que Douglas se fora.
Teve a certeza de que o tempo dele ao lado dela havia finalizado. Não sentiu ciúmes, desprezo, ódio, mágoa ou coisa parecida. Porém sentiu uma desumana liberdade.
18/01/2016
terça-feira, 12 de janeiro de 2016
UM SEM LUGAR
Eu amava a janela da minha casa. Ali era meu pedaço do universo. Por ali via passar meus vizinhos. E eu gostava muito de todos eles. Embora, nos últimos anos ainda morando ali, meu quarto ficasse nos fundos da casa eu sempre me voltava para os quartos da frente, arredava as cortinas de tecido de algodão e entreolhava a rua. Às vezes eu não gostava que me vissem e então abria apenas uma pequena fresta para que não me vissem pelo lado de fora.
Eu ficava vendo passar maridos, esposas, filhos, genros, namorados. Ainda não havia netos na minha rua. Só os da Dona Maria que de vez em quando vinham visitá-la. E é justamente de um neto dela que quero falar hoje. Mas este já era menino crescido e morava com a mãe logo abaixo da minha casa.
Ele tinha um nome diferente e que não era nome de santo algum. Vivia da casa da avó para a casa da mãe; para lá e para cá como se não tivesse um lugar seu. Era moreno, do cabelo preto de índio e muito bonito. Estava sempre inquieto e sozinho. Parecido com a mãe nas aparências e nos desafios. O pai era calmo, de cor clara e bom vizinho. Nossa rua tinha várias turmas de amigos mas ele não se enturmava com nenhuma delas.
E as brigas com a mãe eram constantes. Ela ameaçava, brigava, gritava, batia e adoecia com aquele filho sem juízo. Parou de estudar. Não tinha amigos por ali e parecia que tinha desespero na cabeça. Tinha um irmão mais novo. Este tinha nome de santo e filho de pai com nome de santo. Bem mais jovem que o irmão crescido.
Valtencir assim que cresceu um pouco mais começou a dar mais problemas para a mãe. Ficou ainda mais briguento, desbocado, desrespeitador com a mãe e os avós. Quando bebia ficava muito dos pior, mais desbocado e bruto com a mãe. E logo começou a chegar tarde em casa. Não houve castigos que desse jeito nele. Será que além dos castigos houvera conversas ?
Ele nunca me olhava às avessas. E eu sempre o cumprimentava. Tinha muito dó dele. Acho que o percebia sem rumo na vida e sem parador dentro de casa.
Assim que apanhou idade passou a ficar dias e noites fora de casa. Meus pais diziam que ele não era exemplo para ninguém. Deu que num tempo o moço sumiu. A mãe dizia que ele fora trabalhar na cidade grande. Muito raramente aquele filho aparecia para visitar os pais.
Depois de um tempo não se ouviu mais falar dele. Ele devia ter virado homem e tomado rumo certo na vida. Era o que eu pensava. Ou que ele tivesse ido para a Serra do Carajás em busca do ouro. Ouvira dizer de muitos jovens naquela época que haviam ido para o "Eldorado dos Carajás". Quem sabe enricou, casou e ficou por lá.
Um perdido no mundo.
Aquele tempo era dos difíceis. Sem telefones. Só o da minha casa para toda aquela rua de pedras pretas.
E eu continuava a olhar pela janela e às vezes pensava em Valtencir. Tinha pra mim que havia faltado um pai na vida dele. O pai havido era do outro irmão.
E dera que numa noite acordei no meu quarto lá dos fundos com uma gritaria misturada com choro e desespero. Toda a rua acordou no desalento da mulher. Os vizinhos saíram em amparo. Valtencir havia morrido. Matado? Afogou-se? A noticia chegou por enviados da policia. A rua emudeceu após a notícia. O povo sempre era de muito respeito. A mãe carecia de sentir dor senão aquilo podia virar doença. E as dores saíam nos gritos.
Fui ver Valtencir com seu corpo despedaçado e seu rosto deformado. O velório acontecera na sua desdita casa.
Naqueles tempos eu rezava pela Santíssima Trindade e por Deus. Então pedi ao Espírito Santo que conduzisse o meu vizinho, um Filho até o céu e lhe providenciasse um Pai.
12/01/2016
quinta-feira, 7 de janeiro de 2016
CONTO INFANTIL 3: NOME ESQUISITO PRA CACHORRO
Ilustração: Douglas Souza Soares
Clarinha morava no terceiro andar daquele prédio de nome bonito: Vitória. Não gostava de levantar cedo e isto deixava a mãe dela muito preocupada pois sabia que o melhor para a saúde seria deitar cedo e levantar cedo também. Mas Clarinha nunca conseguia sair da cama antes das dez horas da manhã.Até que um dia, depois de muitas brigas entre elas, a mãe entendera que o tal relógio biológico da filha era diferente dos outros e foi deixando a menina dormir. Então ficou surpresa quando percebeu a mudança do humor de Clarinha. Ela tornou-se mais alegre, mais responsável com seus deveres e ficou mais junto da família. Entretanto fora muito difícil chegarem até esse ponto de harmonia.
Um dia a filha que chegava em casa depois das aulas chamara a mãe pelo interfone e perguntara:
-Mãe um cachorrinho me seguiu na rua. Posso trazer água e ração para ele?
Dona Zara, já entendendo o querer da filha, foi logo avisando que não queira mais um cachorro dentro daquele tão pequenino apartamento. Mas permitiu que levasse água e ração até o portão. "Mas lá fora."
Dai a pouco chega Clarinha com um cachorrinho com poucos dias de nascido, com a barriga estufada e cheia de vermes. Muito sujo e esfomeado. A mãe querendo ficar brava e já apaixonada pelo filhotinho foi logo providenciando banho e remédios para vermes. Esquentou bastante água. Pegou shampoo da Belinha, a velha e amada cachorrinha da filha. Colocou o filhote dentro do tanque. Começou a lavação. E não parava de sair sujeira.
Todos já queriam brincar com o mais novo visitante da casa.
-Vem cá, Clarinha!
Era Dona Zara querendo saber de Clarinha sobre o animalzinho.
-Olha mãe, na verdade, tinha um moço mexendo nos lixos do prédio com um cachorrinho amarrado junto dele. Quando passei olhei para o bichinho que também olhou para mim. Continuei e quando fui abrir o portão, ele estava atrás de mim. Não atinha nem forças para latir...
-E o tal moço?
Perguntou sua mãe.
- Ele me olhou e continuou a remexer no lixo. Quando cheguei cá dentro, perto da porta de vidro, o cachorrinho estava nos meus pés. Acho que o moço soltou as amarras dele de propósito.
E dona Zara não sabia o que dizer. Ficou calada.
Quando a irmã mais nova chegou da escola foi logo criticando a atitude de Clarinha e falou, e falou... Entretanto depois que Clarinha voltou para sua escola, a mãe percebeu que Lalinha já estava com o cachorrinho nos seus braços. E tirou muitas fotos dele com a Belinha e dele sonecando encostado ao seu corpo. Acho que ele queria uma casa.
A mãe não gostara do nome escolhido e dizia-o pela metade. Ela cismou com aquele nome de outra língua. Achava que o nome tinha um significado que não seria adequado ao cachorrinho.
Entretanto aquela mulher, como toda mãe, cuidou dele com muito carinho. Mas ele cresceu logo e já não podia ficar dentro do apartamento. O que fazer ? Nem Clarinha nem a irmã queriam ficar sem ele. Depois de muito pensarem ficou decidido que ele seria doado. Com cartão de vacinas em dia o cachorrinho fora levado para uma feira de adoção. As meninas voltaram tristes para casa.
Após alguns dias a moça responsável por tal feira telefonou e disse que o animalzinho fora adotado e estava morando num sítio bem próximo. Disse também que a mulher que o adotou mandou dizer que aceitaria visitas das meninas quando elas sentissem saudades e até mandou endereço e número do telefone.
E as meninas, que já sentiam muitas saudades, quiseram ir lá. Dona Zara também quis ir.
Marcaram o dia, compraram biscoitos de cachorro e lá se foram as três.
Era um sítio pequeno mas muito bem cuidado e muito bonito. Os cachorros vieram logo receber as visitas e foi uma grande alegria ao verem que eles já eram amigos e brincavam o tempo todo.
Dona Martinha já tinha a Duquesa e o Neguinho mas achou que tava na hora de adotar um outro cachorrinho. Então, nos segredara ela, ao chegar na feira, vira aquele cachorrinho cumprido e avermelhado, a olhar para ela. Foi paixão a primeira vista, brincou a mulher. Pegou o cartão com os dados dele e voltara pra o sitio conversando com o animalzinho.
Ela também nos dissera que Duquesa, a cachorra mais velha, fora logo adotando o filhote como se fosse seu e Neguinho cuidou dele como um pai. Estava formada a família canina de Dona Martinha.
Foi então que ela perguntou porque fora escolhido aquele nome tão diferente. As meninas riram entre si e disseram que gostaram do nome. E Dona Martinha que era professora de literatura aposentada e grande estudiosa das línguas, lhes falou:
-Ele só poderia ter este nome mesmo pois ele é muito esperto, adora correr e pular pelo terreiro em disparadas. É inteligente e muito amigo. E DEXTER é um nome que veio do latim e significa " aquele que é hábil e sábio".
segunda-feira, 4 de janeiro de 2016
SONHAR
Caminhávamos
como num fim de procissão
Sem filas.
Passos em desordem
Descaminhos
Pouco atrás um não qualquer
antigo amigo.
Quase a me tocar
Senti sua respiração
Este me lembrou aquele
a quem tanto amei
Meu olhar vagou
por tantos homens
Procissão do Santíssimo?
Então lá estava ele
Seu olhar encontrou o meu
Era apenas mais um rosto.
Meu coração não disparou
como das tantas outras vezes.
Apenas aquietou-se.
Senti a tristeza
que cobria seu caminhar.
Não restara nada.
Senão dois caminhantes
esvaziados
do amor que não se cumpriu.
Acordei
e se fazia minha
sua tristeza.
BH, 07 de dezembro de 2015
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