A Casa Azul
Letícia sempre quisera ter sua casa no campo. Assim vivia a cantarolar a música interpretada por sua tão querida Elis Regina: "eu quero uma casa no campo, onde eu possa ficar do tamanho da paz". Sabia da
impossibilidade de concretizar tal sonho naquela época da sua vida diante da turbulência com filhos pequenos, os empregos em cidades diferentes, casamento acabando sem acabar e
condições financeiras tal qual a grande maioria de sua classe social naqueles
tempos.
Até então ainda nem conseguira adquirir seu próprio apartamento. Pagava
aluguel desde que se casara e as palavras do pai ressoavam em sua mente: "O dinheiro do aluguel é a prestação de sua casa". Sabia que o pai sempre
estivera certo neste e em tantos outros conselhos. Encontrava dificuldades nas
pequenas tarefas do seu dia a dia. Como pensar em comprar uma casa?
Mas tudo isto não lhe impedia de sonhar com uma casa.
Aprendeu e assim desejava. Os quartos das crianças deveriam ser voltados para o sol nascente. Sabia também que desejava uma ampla área de serviço pois sempre
gostara de lavar roupas. Dizia que enquanto tirava os sujos das roupas também limpava
sua alma. E uma biblioteca para seus tesouros, os livros.
À medida que os filhos foram crescendo foi percebendo
que se fazia necessário divorciar também deles. O que podia lhes ensinar já o
havia feito. Agora era a vez do voo de cada um. Entretanto faltava-lhe a decisão e o verbo agir nunca fizera parte de sua vida. Era levada
pelos outros.
Um dia, nem sabe como o sucedido sucedeu, a filha mais
nova anunciou sua saída de casa. E foi na mesa do café de uma manhã que Juju anunciou:
-"Preciso estudar e o ambiente nesta casa não tem
sido satisfatório para mim"
Letícia sentiu-se aliviada. Moravam num belo apartamento
numa grande cidade e as despesas estavam acima do orçamento dela. Não titubeou.
Chamou a filha mais velha e decidiram separar-se. Sofia alugaria um apartamento
pequeno e ficaria sozinha. Afinal já havia formado e tinha um emprego que iria
lhe garantir a sobrevivência.
E Letícia sentiu que agora era a sua vez. O que queria ela?
Para onde ir? Eram as perguntas que fazia a si e, sabia, que não queria
encontrar as respostas.
Sempre quis viver na sua casinha no campo. Decidiu
mudar-se para ela. Afinal a casinha estava lá. Ela, após a separação do marido, havia finalmente construído seu chalé no pé
da serra e quase nunca aparecia por lá. A preocupação com as filhas lhe tomava
todas as energias. Nada lhe sobrava.
Contratou um caminhão. Contratou uma ajudante. E
mudou. Mudou muito. Agora as noites são só suas. Às vezes um vinho tinto.
Sempre uma boa leitura. Seus companheiros os cachorros adotados compartilham
sua solidão. Descobriu que podia desejar. E desejou viver muito tempo ainda
porque tinha amores deixados no tempo. De lado.
Agora podia amar sem receio de pecar porque deu um
jeito deste verbo escapulir de seu dicionário.
A casa pintada de azul disse-lhe que seria eternamente sua cúmplice nos pensamentos e nos acasos. E a casa azul resgatou-a de si.