sábado, 28 de dezembro de 2019

Crônica: JUDAS, O OBSCURO / UM LIVRO E DUAS HISTÓRIAS


Em meados do ano de 1986 ganhei um livro cujo autor me era desconhecido, Thomas Hardy. Foi um presente de aniversário dado pelo colega de profissão e grande amigo.  Obviamente que se tratava de uma obra prima. A leitura do livro me marcou profundamente. Não sei como o exemplar não se perdera junto com tantos outros durante as inúmeras mudanças de casas, apartamentos e cidades. 

No ano passado, 2018, quis ler o livro novamente.  Enquanto psiquiatra e eterna estudante da psicanálise, havia levantado uma hipótese diagnóstica do personagem e queria sustenta-la com a releitura do romance. Encontrei o livro amarelado, com forte cheiro de pó, folhas soltas, capa arrancada. Mas inteiro. Talvez ele fosse a própria encarnação de seu personagem. 

As anotações feitas durante a primeira leitura me proporcionaram mais uma viagem. Agora para dentro de mim. Embrenhei numa Inglaterra do século XIX acompanhada de Judas e seus sonhos. Um menino abandonado, escravizado pelo único parente vivo, uma tia velha e doente, que lhe cobrava preços altos pela falsa caridade em sustentá-lo. Mas a obstinação de Judas pela leitura e pelo conhecimento lhe fizeram procurar um mestre das letras. Assim os sonhos de Judas criam asas. E a desventura de uma criança ganha sua sina.

Além das belas descrições, feitas pelo autor, dos caminhos percorridos pelo interior da Inglaterra, o que mais me impressionou em Judas, o Obscuro, foram as descrições dos caminhos percorridos pelo interior de si mesmo. Ele encontrará outras tantas “tias” pelos caminhos. Mas sua conduta ética não o abalará mesmo diante das inúmeras artimanhas que a vida irá lhe preparar. Ele acreditava na verdade e na bondade das pessoas.

Na nota preliminar, assinada apenas pelo tradutor Octavio de Faria, lemos que: “Desconhecido, incompreendido, enganado, só poderá responder aos golpes da vida com a pureza do seu gesto, tantas vezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos o seu coração de homem. Os que o rodeiam viram então a face, porque suas feridas ferem a eles próprios.”

Pois bem, a recente releitura veio corroborar com minha hipótese diagnóstica do caso clínico de Judas.

E esse personagem tão marcante me trouxe de volta outro menino. Este outro de carne e osso.

Estava de plantão na urgência psiquiátrica quando me coube o atendimento de um jovem. Ao ler seu prontuário, mesmo antes do atendimento, reconheci sua história. Nosso paciente não tinha mais que vinte e cinco anos. Apresentava a face edematosa, com hematomas e ferimentos recentes por todo o corpo. Dissera que não conseguia parar de beber e que vinha bebendo mais de dois litros de pinga por dia. Nos bares e nas ruas era espancado por colegas e supostos desafetos. Seu olhar estava vazio. Não havia nele nenhum sinal de vida senão um corpo morto a carregar. Por outro lado havia nele uma enorme doçura. Respondia às perguntas com delicadeza e respeito. Sem ódio ou ira pelos seus algozes. Havia apenas resignação. Naquela hora segurei minhas lágrimas que escorreram para dentro do meu coração.

Lembrei que o havia atendido há poucos anos noutro serviço de urgência psiquiátrica com o mesmo quadro clínico. Era mais jovem e sem tantos estragos pelo corpo. Jamais poderia esquecer um caso tão singular e grave.

Neste último atendimento chamei a mãe, ainda muito jovem, que me disse o que eu já sabia. Também lembrou que eu o havia atendido e informou que fizera como havia orientado na época uma vez que não estava indicada a internação. Naquela época, o menino precisava de tratamentos psiquiátrico e psicológico permanentes, entretanto junto da família. A mãe também deveria procurar ajuda. Tratava-se de um grave e raro quadro psiquiátrico. Mas naquele segundo atendimento minha conduta fora outra. 

Apesar do prognóstico sombrio, pedi à mãe que ficasse com o filho por uns dias em “observação” naquela unidade de urgência até que ele se desintoxicasse da bebida alcoólica e a enfermagem cuidasse dos ferimentos. Ou seja, fizemos o necessário para aquela situação tão desumana. Enquanto isto outros profissionais fariam contatos com a rede de saúde mental de sua cidade para a continuidade do tratamento após a alta hospitalar.

Nunca mais o vi. Porém, o meu jovem paciente e Judas, jamais sairão de dentro de mim.





SOBRE O AUTOR DO LIVRO: Thomas Hardy nasceu em 2 de julho de 1840, no condado de Dorset e morreu em 1928. estudou arquitetura porém dedicou toda a sua vida à literatura.

"Seguindo o mesmo critério de excelência, ninguém negará que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertence a uma categoria absolutamente ímpar, junto com Dickens, Meredith, Galsworthy, Lawrence e alguns poucos outros."(O.F.)

Funil, 07/10/2019 dia de N. Sra do Rosário




sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Crônica: "Então é Natal"

Nesta manhã de 24 de dezembro ao temendar, à mão, uma peça de roupa, lembrei-me dos carrinhos feitos dos pequenos e antigos carretéis de madeira com tirinhas de câmara de ar, palitos de fósforo, pedaços de vela e um clips ou pedacinho de arame.

Os danadinhos andavam sozinhos sobre nossa mesa ou nas estradinhas dos barrancos e nos enchiam de emoções ao vê-los enfrentando obstáculos à frente e subindo montanhas imaginárias.

Neste natal espero que continuemos fabricando carrinhos imaginários e que consigamos vencer os obstáculos que nos tem sido colocados à frente pelo desgoverno deste presidente que ai está.

Abraços fantásticos a todos e todas.

(E, se alguém se lembrar deles e tiver uma foto destes carrinhos, me ajude a ilustrar esta mensagem)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Crônica: Do verão e do meu pai


                   


Tenho acordado por volta das cinco e trinta. Antes do despertar do meu celular (que saudades do trimmmm dos relógios de antes!). O calor intenso, o avançar da idade, as terríveis apneias e os atuais deveres de dona de casa são os responsáveis por este sono em uma só etapa. Não me importo em acordar cedo. Sempre gostei de assistir o amanhecer. A vida recomeçando a cada manhã e o frescor da natureza perfumando meus pensamentos valem a mudança. 

Esta manhã não foi diferente. O calor insuportável me acordou mais uma vez. Às cinco e meia o sol já despontava. Em trinta minutos realizo os afazeres necessários no entorno do meu chalé. O pior momento é a vassoura de piaçava em minhas mãos. Ela dança e não aceita o meu comando. Ciscos pra lá e prá cá. Prefiro usá-la apenas quando viro bruxa e faço voos rasantes pelas montanhas. Sempre fui uma esculachada dona de casa. Prefiro os livros e as melodias.

Mas, nesta semana, dois acontecimentos me chamaram a atenção. A entrada do verão na madrugada do dia vinte e dois de dezembro, exatamente a 01:19h e, neste mesmo dia, meu pai faria cem anos. O primeiro fato me causa irritação. Não gosto do verão e seus calores infernais. O segundo me deixa cheia de saudades. E comecei toda esta história para falar dele.

Meu pai, portanto, nasceu no dia 22 de dezembro de 1919. Morreu poucos dias antes de completar noventa e seis anos. Obviamente que a festa para toda a família já estava encomendada. Uma dissecção de aorta abdominal o matou em setenta e duas horas. Tabagista desde os onze anos de idade contava entusiasmado que tinha um pulmão “limpinho”. Não era bem assim. Sua trama pulmonar já estava toda comprometida. Mas estas coisas não interessam. O que conta são suas aventuras contadas e recontadas ao longo de sua vida.

Nasceu em Rio Espera, uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, localizada na Zona da Mata Mineira. Quinto filho dos nove de minha avó. Recebeu o nome do famoso almirante inglês que derrotou Napoleão Bonaparte na batalha naval de Trafalgar entre França e Espanha contra o Reino Unido que saíra vitorioso, em 1805. Não sei se minha avó sabia disso, mas, provavelmente, o nome Nelson, havia virado moda depois que as noticias chegaram ao longínquo Brasil.

E o menino fez jus ao patrono de seu nome embora sua estatura fosse bem maior que o baixinho almirante britânico. Desde jovem, além de sua beleza física, lembrando os europeus, havia também a inteligência e as estratégias nas brincadeiras que o levavam sempre às vitórias.

Um dia, quando ainda criança, foi vender geleias de mocotó que minha avó fazia para aumentar a renda familiar. Algumas caíram na estrada. Ele limpou-as e resolveu ir vendê-las ao padre. Mais tarde, quando a mãe encontrou com o padre, este comentara que as geleias estavam deliciosas, principalmente aquelas com a canela em pó sem cheiro.

Foram tantas as travessuras que a mãe resolvera, depois de várias tentativas, entrega-lo ao filho mais velho que, já casado, fora morar em outra cidade. Se o rapaz não consertara pelo menos apaixonou pela música e pela flauta. Tornou-se um grande musicista, chegando a transcrever partituras para diversos instrumentos musicais. Afinava violões e pianos e tocava vários instrumentos de sopro.

Contava ele que, no dia marcado para noivar minha mãe na vizinha cidade de Brás Pires, deveria fazer um concurso do Banco do Brasil em Belo Horizonte. Pediu ao irmão de nome também inglês, Vitório, (teria esse nome sido também moda na época em homenagem à vitória inglesa na referida Batalha de Trafalgar ou pela Rainha Vitória?) para viajar até lá e, em seu nome, pedir a mão da amada. E assim foi.

Dizia sempre que nos dois anos e onze meses de noivado viu a moça apenas três vezes. Casaram-se no dia 22 de maio de 1947 defronte o oratório de São José do Porto na fazenda do mesmo nome onde morava com toda sua família de descendência italiana. Maria José era a primeira filha mulher. O irmão mais velho, José Maria, já padre, oficializou o casamento. Desde então um dos quartos da fazenda ficaria conhecido como o “quarto de Nelson e Mariinha”. O mais bem localizado e maior quarto da fazenda. Duas grandes janelas voltadas para o norte e outra voltada para o oeste. A frente uma várzea que encontrava com o céu.

Lembro que minha mãe era uma mulher calada, às vezes solitária, às vezes exuberante enquanto meu pai estava sempre bem humorado. Tudo eram motivos para se divertir. Dizia que era a cabeça da casa e que minha mãe era o pescoço. "Eu só vou pra onde o pescoço virar" brincava ele nas verdades.

Amava e respeitava a todos. Quando mudamos para Lafaiete, no início dos anos sessenta, recebia com a mesma alegria em nossa casa todas as pessoas que nos visitavam ou passavam por lá em direção à capital, Belo Horizonte. Viravam noites contando piadas, relembrando outras épocas.

Em tempos das vacas magras meu pai colocou os filhos menores para trabalhar. Levar marmitas para os mineiros do Morro da Mina (extração de manganês), limpar uma sapataria, vender pães num balaio pelas ruas afora. Nós, as filhas, éramos poupadas do trabalho externo e ajudávamos a mãe nas tarefas domésticas. Foi então que aprendi a lavar roupas e me encantei com os processos de esfregar, quarar, enxaguar e torcê-las. E me encantei muito mais com as lavadeiras na distante fontinha de pedra onde elas lavavam muitas trouxas para as famílias que podiam pagá-las.

Se era minha mãe a ditar as ordens da casa, era meu pai a desditá-las e a brincar com os filhos. Entretanto exigia que estudássemos. Dizia que não tinham bens para nos deixar de herança e que nos deixaria nossos estudos. “Conhecimentos ninguém tirarão de vocês e não ocupam espaços”, argumentava ele. Formou todos os filhos exceto uma das filhas que preferiu se casar mas que iria se formar mais tarde.

Quando o filho mais velho teve um infarto fulminante aos quarenta e um anos minha mãe, já bastante debilitada por um CA de intestino, pediu que levássemos flores e meu pai comandou toda a cerimonia fúnebre. A pedido do meu pai uma das bandas presente tocou uma música enquanto ele cantava para despedir do filho. E ele cantava muito bem.

Passados alguns meses minha mãe também faleceu. Meu pai ficou só na casa que construíram com tantas dificuldades. Os netos, acolhidos para estudar, haviam formado e ido embora. Agora era só ele e suas tristezas.

Aos setenta e nove anos ainda guardava no corpo a beleza da juventude. Nos olhos azuis, a partir de então quase sempre encharcados, ainda brilhava a docilidade paterna. Amava receber seus vinte e dois netos, alguns poucos bisnetos, genros e noras. Dizia que era uma alegria quando todos chegavam e um alívio quando iam embora.

Um dia ele também foi embora.

Meu pai era assim e muito mais.



Fotografia: arquivo familiar, anos 40(?)


Dez/2019









segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Crônica: Atravessando montanhas de Minas




Já havia previsto minha viagem a Ouro Branco, cidadezinha do interior onde mora meu netinho. Desta vez decidi cortar caminhos. Ao invés de atravessar um pedaço da BR Fernão Dias, pegar um trecho do terrível Anel Rodoviário em Belo Horizonte e entrar na BR 040, optei por subir as montanhas de Brumadinho. Assim o fiz.

Só não havia previsto os inúmeros caminhões carregando nossos minérios, os muitos trabalhadores ainda vasculhando e refazendo estradas, as chuvas e o lamaçal. Tentei retornar. Já não havia mais tempo.

Logo na entrada de Brumadinho uma longa fila de carros chegando de duas direções diferentes. Carros indo. Carros voltando. Não fosse a educação de alguns motoristas o caos teria se formado pelos apressadinhos e maus motoristas.

Já contabilizava um atraso de dez minutos nos oito quilômetros percorridos até ali.

Finalmente consegui chegar à estradinha estreita que me levaria pelas curvas e montanhas. Mais caminhões. Mais trabalhadores e muitos carros pequenos. Será que todos tiveram a minha ideia?

Mas, à medida que distanciava da cidade, ia deixando os caminhões por suas estradas privativas até as minas que consomem nosso patrimônio ambiental e matam nossos trabalhadores. Isto são outras histórias. Tristes histórias. E presentes comigo desde então.

Toda esta introdução para falar das cores com as quais o tempo chuvoso e ensolarado coloriu meus olhos. Ali um arco-íris. Ou dois? E eles cismaram de brincar comigo. Numa curva ele estava à minha direita. Logo desaparecia para aparecer do lado esquerdo. Agora à minha frente.

“Estou chegando bem perto”. “Será que conseguirei passar debaixo dele?” “O que mesmo que acontece quando a gente consegue isto?”

Resolvi arriscar fotografá-lo. Sem acostamento. Vários carros indo e vindo. Fotografei. Uma. Duas vezes. Três vezes. Várias vezes. Esqueci-me de ver como ficaram as fotos. (Vi agora. Apenas uma com meu arco-íris sobre a igreja do distrito de Aranha.)

Havia momentos em que surgia também a sombra daquele. E a beleza duplicava. Água, sol, minérios, matas. A combinação perfeita para a exuberância por toda a estrada.

De repente comecei a subir as montanhas de fato. Ali estava o arco-íris a esconder de mim por entre as pedras. E logo despontava bem pertinho. “Agora conseguirei passar debaixo dele!” Acelerei meu carro no pedaço mais íngreme da região, mas ele se escondeu logo acima de mim. Cheguei ao topo da montanha. Ele desapareceu. Despedi daquele amigo colorido que havia feito a travessia comigo por quase uma hora naqueles quarenta e dois quilômetros.

Agora outra visão me deslumbrava à frente. A Lagoa dos Ingleses. Imaginei meu carro e eu flanando sobre o morro e deslizando sobre o céu azul dentro d’água.

Então cheguei à BR 040 que não estava tão tranquila quanto pensava. Agora bem perto do meu destino. Procurei o Pico do Itabirito. Majestoso sobrevivente das mineradoras. Até quando não sabemos. Sei que a população tem bravamente lutado para impedir seu desaparecimento.

Não havia ligado o rádio. Nem queria. Estava ouvindo o meu silêncio que já fazia-me bastante barulho. Cantava muitas melodias e, às vezes me lembrava dos rumos do meu Brasil. Mas eu queria mesmo era viajar. Ainda não sabia quem dirigia o carro. Acho que estava no automático.

Trânsito lento. Muito lento em Congonhas. “O que terá havido?” “Polícia Rodoviária Federal?” “Ou o estrangulamento do viaduto logo ali a frente?”

Foi ali que me apresentou um céu de nuvens acinzentadas e brancas com fundo azulado. Parecia que o Deus pintor fizera de propósito. Queria que víssemos sua obra entre a Terra e os céus. Por isto Ele quase parou o trânsito. E quem não viu perdeu o quadro por entre as gotas de chuva no para-brisa. Não sei se verei de novo. Visão única.

E finalmente cheguei ao meu destino. Encontrei meu neto com seu uniforme escolar muito sujo. Aquilo me deixou orgulhosa. O uniforme estava sujo de aventuras, de tintas coloridas (será que ele ajudou a pintar o arco-íris e o céu?), de inocência, de amizades e de alegrias.

Pedi muitos abraços explicando-lhe que, sendo ele meu único neto, queria tantos outros netos e abraços. Ele entendeu apesar de seus quatro anos e enroscou meu pescoço num demorado abraço.

Minha viagem de cem quilômetros em quase três horas fora perfeita.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

PARAISÓPOLIS

Não sou covarde
Estou covarde
Entrei na minha casa
Tranquei portas e janelas
Desliguei a TV

Fechei os olhos
Meus pés escorregaram na terra úmida
Fincaram raízes

A Amazônia incendiada não entrou na minha casa
O óleo dos mares não manchou minhas praias
As balas perdidas não furaram meu corpo

Fiz-me mulher maravilha
Coloquei vestes anti-fogo
Colori meus cabelos
Calcei botas mágicas
Bailei no funk
Mas não subi o morro

Permaneci inabalável
Foi o jeito encontrado
Para não ser o décimo menino morto
Em Paraisópolis.

04/12/2019
(Para suportar a dor pelos nove jovens assassinados pela PM num baile funk na periferia de São Paulo no último final de semana)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A limpeza de pele.



Júlia estava com os olhos vedados. Deitada de costas, sobre o lençol branco que recobria o fino colchão da maca, ela ouvia a suave música que tocava ali dentro. Decidira aceitar o presente da amiga: uma limpeza de pele. Afinal haveria uma festa e ela queria estar bem aparentada. 
Durante seus quase cinquenta anos lembra que poucas vezes se dera a este luxo. Confessa que adorou o presente. 

A cada massagem a esteticista ia descrevendo as etapas do processo. "Agora é o esfoliante". "Agora é um creme refrescante". "Agora é um calmante para a pele". Mas Júlia gostava mesmo era daquele pequeno instrumento que tirava os cravos. Sempre queria saber se havia algum "milium" a ser retirado. E respondia negativamente quando a moça pergunta se sentia alguma dor. Suas dores sempre foram aquelas foram do corpo.

Em determinada hora Júlia quase adormeceu. A tal máscara refrescante lhe enebriou e ela deixou-se levar para fora de seus sentidos. Neste momento sentiu a presença da sua mãe. Ela estava ali, bem junto dela. Como que acordou-se. Estava assustada. Sempre percebia vultos da mãe passeando por sua casa. Outras vezes corria ao telefone fixo imaginário que, por mais de meio século, permaneceu no mesmo local da casa dos pais. Ora queria pedir-lhe uma receita de bolo ou dos docinhos deliciosos que ela fazia nos aniversários dos netos. Algumas vezes ia ligar para saber como ela estava. Às vezes apenas para ouvir sua voz. Parava no meio do caminho ao lembrar que a mãe já havia falecido há quase vite anos.

Agora, ali, a lembrança da mãe viera acompanhada da sua grande gargalhada. Sem ninguém saber a causa ela soltava sua risada. Parecia algo incontido dentro dela. Só ela sabia porque ria tanto. Mas todos em volta acabavam rindo também. Era uma alegria contagiante.

Enquanto a esteticista esfoliava sua pele, Júlia lembrou da pele do rosto de sua mãe. Era alva, limpa e com os traços bem marcantes. As rugas, quando ainda bem jovem, ao invés de traduzir seus janeiros, davam-lhe suavidade e contavam belas histórias. Jamais fora a um salão de beleza para cuidar de si. Os cabelos negros tinham ondulações precisas. Bastava lavá-los. Eles ficavam do jeito que ela gostava. Júlia nem lembrou quando eles começaram a branquear. Mas lembra deles brancos como a neve.

De vez em quando, ao visita-la, ela pedia que lhe tirasse os pelos do queixo e do buço. E falava rindo que "com mulher de bigode nem o diabo pode". Outras vezes via que ela tentava arranca-los com as pontas dos dedos pois já não os enxergava no espelho. "A vista tá ficando fraca" dizia ela. Nestes raros momentos notava que havia na mãe um resquício de vaidade. Como teria sido ela na juventude?

Júlia não conseguia abraça-la. Sentia que havia uma enorme barreira separando as duas. Entretanto sabia também que era tão amada quanto amava a sua mãe. Cada qual a sua maneira. Mas algo as mantinha distantes. Agora, deitada naquela maca, ainda com os olhos vedados, pode vê-la perfeitamente. Ela era linda. Sabia usar as palavras certas na horas certas. Ela era toda. Completa. Nada lhe faltava naquela vida de parcos recursos e muitos sonhos. Sua fé em Deus lhe bastava.

Mas quando adoecia ficava calada. Seus olhos encovados miravam o vazio. Seus gestos tornavam-se escassos. As gargalhadas não eram mais ouvidas. Suas noites eram longas e sem sonhos. Nesses tempos Júlia adoecia também. Todos adoeciam em torno. Era o tempo da escuridão por toda a casa. Muitos remédios e poucos resultados. A melhora vinha lenta e por si mesma.

Noutros tempos esbanjava alegria. Como a primavera, ela se abria em sorrisos, em coloridos e em muitas palavras. Desabrochava. Então tudo recomeçava. Renasciam todos na casa. A pele voltava a brilhar na sua brancura. Os cabelos teriam de volta as ondulações. E os pelos na face haveriam de ser retirados. Assim fora toda a vida de sua mãe. Talvez ela fosse de lua. Ou quem sabe ela acompanhasse os equinócios e solstícios do hemisfério sul?

Júlia foi retirada de seus devaneios quando a esteticista anunciou a última etapa da limpeza. Ela levantou, foi até o espelho e se aproximou para ver a pele cuidada.

Refletida do outro lado ela viu a imagem da sua mãe num grande sorrindo. Constatou então que jamais seria a mulher que fora sua mãe. Linda. Sem vaidade. E toda mulher.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Seu olhar



Vi que me olhava

Tímida,

abaixei a cabeça

desviei o olhar.

Só queria mesmo

ver você me olhando 



Santo não é

Mas quem disse

Que não sou profana?




24/11/2019

terça-feira, 19 de novembro de 2019

AS CORES DA LOBA



    Quinta-feira cor de rosa

    andou pela cidade

    fez o precisado

    e comprou sem precisão

    Sexta-feira amarela

    Viajou pelas estradas

    esgotou seu corpo

    comeu o desejado

    e bebeu o rosé

    Sábado vermelha

    Perdeu-se na multidão

    Sem palavras

    Dormiu branca

    Acordou lilás

    Abraçou sem braços

    beijou azul

    Domingo arroxeou

    Olhou para si

    devastada

    Descobriu-se loba

    Segunda-feira na água

    Translúcida

    Chorou a mulher

    Do coração de menina.


    18/11/2019

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

"Olhares Clínicos" - Lançamento em Belo Horizonte



E chegou o dia do lançamento do nosso livro "Olhares Clínicos" em Belo Horizonte.

   Convido vocês a participarem conosco desta festa entre amigos.


Data: 22 de novembro, próxima sexta-feira
Local: Coopemed  (Faculdade de Medicina da UFMG / Avenida Alfredo Balena)
Horário: às 19:30 h

terça-feira, 12 de novembro de 2019

"Olhares Clínicos" Lançamento em Juiz de Fora




E foi assim a noite do primeiro lançamento do nosso livro em Juiz de Fora: familiares, colegas de faculdade e alguns amigos. Não faltou a alegria do reencontro mesmo com muitas lágrimas rolando face abaixo.
Nosso dia do médico foi comemorado com contos, crônicas e poesias escritos por médicos/amigos sessentões num livro nascido desde sempre.

Agora que venham os próximos lançamentos:

Belo Horizonte, dia 22 de novembro, 6ª feira, a partir das 19:30 h na Coopemed, andar térreo da Faculdade de Medicina da UFMG, Avenida Alfredo Balena.

Depois virá Muriaé, no dia 13 de dezembro com local e data ainda a serem divulgados.


A seguir virão Betim, Ipatinga, Ubá e Rio de Janeiro.

Comemore conosco.

Aguardamos vocês.


Abraços poéticos.















segunda-feira, 4 de novembro de 2019

mAtalinguagem

...ou MeTALINGUAGEM



“É o duplo do homem”

 O outro lado

 Aquilo que o corpo fala



                                         Eu sinto meu duplo

                                   Olhe para mim

                                   Veja o estrago que me fez



  “É o duplo do homem”

  Uma bela mulher

  À noite desfila nos sonhos



                         Meu duplo vagueia no mundo

                               Procurando o um

                               Se encontrarem, avisem pra mim.



  Olho-me no espelho

  Vejo senão

  o reflexo do duplo



29/10/2019

sábado, 26 de outubro de 2019

Crônica: Os flamboyants das Retas 1 e 2 da cidade de Mário Campos (MG)









Numa manhã desta semana, enquanto ainda tomava meu café, meus olhos foram coloridos pelas flores rosas do ipê à entrada da minha casa/chalé. É a primeira florada de um dos três pés de ipê que plantei na terrinha logo que cheguei aqui há pouco mais de dez anos. Já havia pés de ipê amarelos cascudos, como aqueles do cerrado mineiro. (Numa tarde de intensa ventania, o "pai de todos" voou pelos ares. O tronco principal foi partido ao meio, mas manteve fixo à terra. Hoje ele está coberto pelas raízes aéreas da pitaia.) 

Plantei também um ipê branco, outro roxo e um cedro. Ainda não floriram embora caminhem para uma primeira floração. Fico esperando.

Na época vários fatores me levaram a morar nesta região. Alguns  deles foram o relevo da região, o Rio Paraopeba e as flores margeando a estrada. 

Mas não foi para falar da floração do meu ipê rosa que estou cá a escrever. Quero falar de outras flores que colorem meus olhos na estrada que liga Mário Campos a Brumadinho. 

Quem transita por aqui não pode deixar de admirar os coloridos escandalosos dos vários flamboyants, à direita em sentido a Brumadinho/Inhotim, das Retas 1 e 2, nomes que os máriocampenses carinhosamente deram a esses dois trechos da estrada, ainda dentro do município. Nesta época do ano suas flores misturam o amarelo ouro ao vermelho vigoroso e alaranjado formando imensos cachos densos contrastando com o verde vivo brilhante de suas folhas.  Sem falar que toda a cidade, na primavera, é um canteiro de flores. E tem árvores florindo em todas as estações do ano.

Convoco os olhos dos motoristas e demais viajantes a se extasiarem com os coloridos destas flores ao transitarem por aqui. E convoco os moradores de Mário Campos e órgãos públicos competentes a transformarem estes majestosos flamboyants em Patrimônio Material de Mário Campos.

Aproveito para agradecer ao município que tão bem me acolheu em suas terras.

                    
    26 de outubro, manhã de sábado/Funil/ Mário Campos


(*) O flamboyant é uma árvore de copa abundante e irregular que costuma exibir suas exuberantes flores de forma vigorosa na época do verão. Não tem como passar por essa árvore sem admirá-la, pois, além de bela é radiante com suas flores vermelhas levantando qualquer astral! Esta árvore é considerada uma das mais belas do mundo, devido ao colorido intenso de suas flores. É muito frondosa, possui tronco forte e um pouco retorcido e sua copa é muito ampla, cuja largura pode ser maior do que a própria altura da árvore.
(https://www,greenme.com.br/comoplantar/6939-arvore-flamboyant)

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Palavras do meu neto

Há uma semana tive que fazer uma viagem a Juiz de Fora. 

Aproveitei e passei em Ouro Branco para ver Dudu, meu neto de quase quatro anos. 

Fui, com os pais, buscá-lo à saída da escola. 

Assim que me viu, abriu um sorriso e perguntou:

- Você está morrendo de saudades de mim? 

Respondi que sim. Então ele emendou:

- Ainda bem que me encontrou!

24/10/2019

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Lançamento do livro "Olhares Clínicos" - Juiz de Fora



Após mais de trinta anos de formados um grupo de colegas médicos afins aproximou para relembrar os tempos de faculdade. 

Ávidos pelas histórias, pelos causos, pelos contos e poemas, estes jovens doutores se encantaram. Dai nasceu a ideia da coletânea dos nossos escritos. Então nosso livro, que fora gestado bem antes, nasceu nesta primavera. 

Para o primeiro lançamento escolhemos homenagear a cidade de Juiz de Fora que, ainda nos anos setenta, acolheu estes jovens para o curso de medicina na UFJF.

"Olhares Clínicos" traz aquilo que, de cada um, transborda da alma.

Convidamos você, seus familiares e amigos para esta noite tão especial. Venham comemorar conosco este transbordamento de felicidade.

Data: 18 de Outubro, sexta-feira.

Horário: 19:30h 

Local: Associação Cultural Brasil- Estados Unidos

          Rua Braz Bernardino, 73 - Centro - Juiz de Fora









quinta-feira, 3 de outubro de 2019

JALAPÃO III: MULHERES DOURADAS E CAPIM JALAPOEIRO



Já me perdi nas estreitas e longas trilhas arenosas em meio às veredas que circundam o Jalapão. Mas não quero esquecer das serras que constituem as fronteiras agrícolas do MATOPIBA OU DO MAPITOBA* embora não tenha conseguido guardar qual serra faz fronteira com qual estado.

Entretanto meus olhos guardaram a exuberância das formações rochosas de arenitos coloridos e seus platôs retilíneos, certamente provocados pela ação dos ventos nos milhões de anos passados.

Durantes as quatro noites e cinco dias que ali passamos numa convivência festiva e próxima tudo em mim era sentido. Era pura emoção. A razão ficaria para depois. Sempre é assim em minhas viagens. Fico tomada pelos sentidos e só “a posteriori” vou colocando as coisas nos seus devidos lugares e entender o que se passou.

Pois bem, agora quero falar do que senti ao vivenciar e observar algumas cenas da nossa expedição pelo cerrado.  

Onde estava o capim dourado tão encantado? Enquanto não havia arriscado na pergunta pensei que todo aquele capinzal cor de ouro envelhecido na beira das estradas fosse ele. Não era.

Fui procurar informações e descobri que o capim dourado é uma espécie da sempre-viva de cor dourada. Ele vem sendo usado para confecção de bijuterias e peças de decoração desde o início do século XX. A técnica foi trazida pelos índios Xerente à região do quilombola da Mumbuca, no município de Mateiros, em Tocantins.

- “É proibido entrar na área dele.” Informou o guia. A resposta me decepcionou. Mas logo depois, durante a travessia de uma longa passarela até um dos vários rios da região, o guia me apresentou ao capim dourado. Uma pequenina moita de capim cujos filetes brilhavam ao sol. Pareciam fios de ouro.

Mais tarde fui entender algumas questões que envolvem o cuidado com o capim dourado. Naqueles dias de nossa expedição estava chegando a época da colheita para a confecção dos artesanatos e existem regulamentos de proteção evitando assim a pirataria e sua extinção no cerrado. E a delicadeza de sua floração agradece aos órgãos de defesa de tão rara espécie.

Entre mergulhos em rios e banhos em cachoeiras parávamos para nossas refeições. É aqui que as mulheres entram em minha história. Elas estavam por todos os lugares. Ora nos servindo almoço. Ora nos oferecendo doces regionais, um pedaço de queijo, um suco. Sempre num sorriso que saía da alma e entrava em nós. Eram elas as protagonistas do cerrado.

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No caminho das Dunas, local de estonteante beleza e difícil acesso, encontramos uma delas. Vendia a famosa cachaça com jalapa. Recebia a todos com as mesmas palavras: “jalapa é uma batata do cerrado e que deu origem ao nome. Ela é medicinal, é depurativa do sangue, bom para o intestino, levanta o astral e rejuvenesce. E venha você conhecer o Jalapão e beber a jalapa”. 

E claro que, depois de tantas propriedades, todas nós provamos da cachaça com jalapa. Uma delícia ...

Mas, enquanto ouvia a repetição da mulher para outros turistas, meus olhos clínicos viram um jovem solitário, de pé, com "facies” tristonha e face edematosa, certamente cheia de cachaça. A cena me doeu o coração. Calado ele estava. E calado continuou. Pegou carona na carroceria de uma das Toyotas. Era filho da vendedora da jalapa que pediu a carona. Ali no Jalapão, conforme fui ler no depois, pode-se viajar por até cinco dias sem ver uma única pessoa. O sol queimando as areias inviabiliza o caminhar e existem apenas as comunidades quilombolas remanescentes de escravos que fugiam das fazendas na Bahia e alguns índios.  Por isto apenas carros grandes, com trações nas quatro rodas, conseguem trafegar pelos bancos de areia.

E a  solidariedade dos guias, em várias ocasiões, não me passou em branco.

Numa outra localidade encontramos as bijuterias, bolsas e algumas peças de decoração numa minúscula choupana de palha. A mulher, jovem, inibida e envergonhada, tentava atender a todas nós e nossas ansiedades pelas compras confeccionadas com o famoso capim dourado. Era ela e o marido alternando entre a confecção e a venda. “Cada peça que vocês compraram é um tijolo para a casinha deles” iria nos dizer, mais tarde, um dos guia, muito emocionado e agradecido por nossas compras.

Chegamos à comunidade do Prata. Outro quilombola. Este pertencente à cidade de São Félix. Obras públicas por todo o entorno. Uma mulher com sua filha pequena veio nos atender no espaço comunitário de venda dos produtos locais. Doces, rapaduras, bijuterias, canetas com envoltório do capim dourado e outras pequenas peças. Perguntei se havia uma unidade de saúde na comunidade dadas a dimensão da localidade e sua provável elevada densidade demográfica em relação às demais. “Havia a doutora Maria que o governo mandou embora prometendo mandar outro médico para nós.” Respondeu a artesã. Era uma médica cubana que atendia a todos naquele distante Brasil.

E, na noite do aniversário da minha filha no meio do Jalapão, elas fizeram um delicioso bolo com direito a recheio e cobertura. Ajudaram a cantar os parabéns e agradeceram a nossa presença.

Num dos almoços que aconteciam com mesas fartas de pratos regionais uma das cozinheiras nos fêz um delicioso estrogonofe de legumes e nos apresentou outras tantas iguarias que elas fizeram mesmo sem ter energia elétrica no local. "O gerador é pequeno e não conseguimos gelo para os sucos mas o patrão foi buscar e logo chega." Era ela a se desculpar. Logo o gelo chegou e ela nos serviu deliciosos refrescos de frutas.

Sempre lá estavam elas a nos servir nos restaurantes e pousadas. Havia eficiência, dedicação e prazer naquilo que faziam. Procuravam fazer o melhor para atender as “turistas do sul” como se fôssemos superiores a elas.
Mal sabiam que todas nós ali nos tornamos pequenas demais diante da grandeza de todas elas.

Comprei rapaduras, doces, cachaça, blusinha para meu neto, brincos e pulseiras. Com estes presentes trouxe um pedaço da fortaleza das mulheres jalapoeiras e a beleza do capim dourado.







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Fotos:
11)    Mandalas de Capim dourado
( 2)    Mandalas de Capim dourado
( 3)    Exposição de peças de capim dourado
( 4)    Floração de sucupira
( 5)    Cachoeira da Velha
( 6)    Cachoeira da Velha
( 7)    Trilhas arenosas e, ao fundo, Serra do Espírito Santo.
( 8)    Passarela a um os Fervedouros


(*) MATOPIBA ou MAPITOBA são as iniciais dos nomes dos quatro estados brasileiros que compõem a fronteira agrícola. Maranhão - Tocantins - Piauí – Bahia.

OBSERVAÇÃO: Agradeço às jovens turistas que estiveram junto comigo nesta expedição e que, prontamente, me enviaram fotos e vídeos para que pudesse ilustrar e lembrar de alguns fatos. 


segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Microcontos / AMOR

UM AMOR

Nos 15 anos de Helena ele chegou. Ofereceu seu amor mas ela não o quis. Aos vinte anos, quando Helena o desejou, ele se foi. Entretanto continuaram se amando, em outros corpos, por toda a vida.


UM CACHORRO

Tigre jamais aceitou que outras mãos lhe dessem o alimento. Quando seu dono virou moço e saiu de casa para trabalhar, ele morreu de tristeza, ou de fome?


UM AMOR DE OUTRO CACHORRO

Ele chegou ressabiado. Namorou o espaço, calculou o tempo, entrou e ficou. Hoje, envelhecido, ele esquenta ao sol enquanto namora o voo dos pássaros e aguarda o tempo que lhe resta.

 30/09/2019   FUNIL


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Desandança

Da lua cheia eu sei
  que está pensando em nós

Uma saudade imensa
 de tudo que não foi dito

Olha a lua mansa a se derramar
  seu nome já me soa estrangeiro

Por onde for
 ainda quero ser seu par

Meu namorado é rei
 e governa meu coração

Mas só a dor me ensina
  a viver sem pensar

E me diz onde vou chegar
 vagando em versos eu vim

E essa Terra encerra meu bem querer
 vestido de cetim

Jamais termina meu bem querer

terça-feira, 24 de setembro de 2019

JALAPÃO II: "ARROCHA O BURITI" (*)

Pedra Furada vista da estrada.

                               


Acordamos bem cedo na manhã seguinte e descemos com nossas bagagens para o hall do hotel. Logo em frente estacionou um carro marca Toyota, modelo 4x4, branca, plotado nas laterais com o nome SAFARI DOURADO. Minha filha observou a pontualidade do motorista tão logo este se apresentou. Ele acomodou as cinco mulheres, nossas malas, nossas mochilas e nossas ansiedades.

Lá vamos nós. Óculos escuros, roupas leves conforme sugerido, chapéus ou viseiras, nada de cremes hidratantes, repelentes e ou bloqueadores solar. 
No carro tínhamos água gelada a vontade e frutas frescas. Nosso guia-motorista falava pouco, mas respondia nossas perguntas e essas eram muitas. Eu queria saber da geografia do local, da hidrografia, nomes das arvores, das flores, quais pássaros habitavam o local, quais bichos viviam por ali. E ele, calmamente, respondia a tudo. 

Fui observando, ao longo da expedição, que apesar do trabalho árduo dos guias, havia uma ligação de afeto com toda a vida da região.


Paramos algumas vezes para as necessidades fisiológicas, para um descanso, para conhecer uma serra ou uma pedra famosa ao longo do caminho. E toda a estrada estava sobre enormes bancos de areia. Durante várias horas nenhum outro carro em sentido contrário. Nenhuma pessoa andava por ali. Éramos apenas nós, quatro carros Toyota, modelo 4x4 e um bando de turistas ávidas pelo Jalapão. Eu era a mais velha do grupo. Assim começaram a me chamar, carinhosamente, de Tia Maria. Estávamos no meio daquele mundão de terrenos arenosos e árvores retorcidas, ali estava o cerrado.

Não sei em que ordem ou desordem devo descrever nossas aventuras, entretanto tentarei falar daquilo que ouvi, que deixei de ouvir, do que vi e, sobretudo, do que senti por todos aqueles dias. Sei que não queria perder nenhum detalhe da viagem e meus olhos iam de lado ao outro do carro como se fosse possível ver tudo.

A cinquenta quilômetros de Palmas passamos por Porto Nacional, cidade do século XIX, “Capital Cultural de Tocantins” e capital estadual do agronegócio. Ela está a 212 metros de altitude em relação ao mar (calor médio de 39 graus). Lembrei-me da minha amiga dizendo, com muita gratidão, que “Porto Nacional é o berço cultural de Tocantins”. Depois deixamos o asfalto e entramos nas estradas de terra e areia.

Mais cem quilômetros e chegamos a Ponte Alta do Tocantins, pequena cidade, onde meus olhos sorriram ao verem duas placas. Numa delas li Faculdade de Gestão Fazendária e na outra, escrita num talude gramado e em letras grandes, PORTAL DO JALAPÃO. Agora estávamos entrando no nosso destino e nosso primeiro mergulho seria na Lagoa do Japonês. Mesmo ainda acanhada diante da moçada, dos guias e de toda aquela gente, decidi entrar e nadar. Um espetáculo da natureza. 


As águas azuis-esverdeadas transparentes, sua calmaria e seu frescor foram os fatores que me levaram a aventurar um mergulho. Então não parei mais de nadar e mergulhar até minha próxima aventura: uma tirolesa por sobre toda a extensão da lagoa descendo por um penhasco de pedras, árvores e águas. Tudo aquilo alinhado num abraço inimaginável. Será que terei coragem?

E para lá subimos, eu, minha filha e outras corajosas mulheres. Quase sem fôlego chegamos finalmente à pequena plataforma de madeira para nos amarrarem com cintos e cordas de segurança além do indispensável capacete. Minha filha quase desistiu, mas foi. Chegou a minha vez. “Eu não vou mais. Amarelei” disse ao instrutor que me encorajava dizendo "desce até na ponta". Eu desci. Olhei para baixo e já não dava mais tempo para voltar atrás. Ai meu Deus. Lá fui eu. Segurei firme e, nos vinte segundos da estonteante descida, abri os braços, voei e gritei por duas vezes: “LULALIVRE”. Então me livrei do fantasma da inibição.

Mais tarde rumamos para outros destinos. De novo faço viagens maravilhosas tanto para fora de mim quanto para dentro da minha alma.

De um determinado ponto da estrada pude ver uma enorme rocha cujos contornos me fizeram lembrar o bisão americano e, de acordo com a proximidade, já pareceu um elefante conforme me mostrou o guia. Chegamos até aquele animal. Era a famosa Pedra Furada - “um gigantesco conjunto de blocos areníticos esculpidos pelos ventos há milhões de anos”. (**). À medida que o sol ia se pondo, os raios vão mudando as tonalidades das cores do arenito e formando um espetáculo de se ver.

As meninas voltaram extasiadas com a beleza do fenômeno e, obviamente, fizeram várias fotos delas no local.

Não fui até lá, pois fomos alertados de que havia alguns enxames das danadas abelhas africanas instaladas recentemente na redondeza da Pedra. Contudo se não fui assistir ao encanto do pôr do sol na Pedra Furada, ganhei com a presença de um pássaro que, escondido nas árvores, entoou seu canto só para mim.

Até a próxima parada.



(*) Expressão muito usada no Jalapão que, segundo me disse a linda amiga que fora comigo e minha filha, significa “mete bronca”, “vamos ver”.

(**) 
https://turismo.to.gov.br/regioes-turisticas/encantos-do-jalapao/principais-atrativos/ponte-alta-do-tocantins/).


Lagoa do Japonês



Arara do Cerrado