segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Crônica: No meio da estrada tinha um homem

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - LVIII)



Era de manhã, início de setembro. Já não me lembro mais para onde estava indo. Seria para minha atividade física? Ou seria para meu trabalho? Nada vem ao caso.

Vem ao caso dizer que, lamentavelmente, a grande maioria da malha rodoviária estadual foi construída sem levar em conta o trânsito de pedestres que moram nas regiões rurais ou mesmo aqueles que gostam de caminhar pelas estradas. Eu mesma sempre caminhei por elas. Entretanto tive o privilégio de caminhar por estradas de terra nos interiores dos interiores das Minas Gerais.

Importante lembrar que nosso estado é conhecido em todo o Brasil por suas montanhas fazendo com que as estradas fiquem com muitas curvas perigosas.

Pois bem, dito isto volto aos pensamentos que me acometeram logo após meus olhos me convocarem para uma cena nada incomum. Um homem muito alto, negro retinto, como me ensinou meu filho ao contar-lhe o acaso, muito magro, barba crescida, encaracolada, tufos embranquecidos misturados com tufos pretos, cabelos do mesmo colorido e rente à cabeça. Usava camisa e calça comprida em tons azuis. Enquanto meu carro aproximava, ele olhou para trás e nele li um pedido de carona. Desconsiderei o pedido. Ao passar por ele, vi que ele estava de mão dada a um menino que lhe chegava à cintura. Um filho? Um neto? A criança estava do lado de dentro. Exatamente como deve ser para evitar atropelamentos com a distração dos motoristas, dos acompanhantes ou das crianças.

A partir de então meus pensamentos ganharam asas e lá se foram a me levarem junto. O que teria me chamado a atenção numa cena tão corriqueira na beira das estradas asfaltadas? Talvez a cor tão negra do homem. Talvez o escancaramento das diferenças sociais. Quem sabe o biótipo do homem: tão alto e magro. Seria um dos muitos moradores do acampamento Pátria Livre do outro lado do Rio? Seria minha desconsideração no imaginado pedido de carona? Houve um tempo, na minha juventude, quando eu só viajava de carona. Hoje “os protocolos sociais e clínicos” me orientam a não dar caronas.

Foi então que me vieram, de uma só vez, todas as respostas. E elas chegaram através de uma única palavra ao me lembrar do personagem Tom, do filme infantil “Aristogatas”. Um gato de rua, sem eira nem beira, que, tentando seduzir uma “aristogata” e seus três filhotes, usa todo seu charme, com elegância e criatividade. Obviamente que ele acaba conquistando a bela gata e seus filhotes.

O olhar do homem cruzando com o meu, em menos de um segundo, me demonstrou altivez. É isto. Altivez.

Fiquei pensando que efeitos trariam para aquela criança o fato de ser conduzida com tanta altivez. Com certeza ali estava uma criança segura, feliz e altiva tanto quanto aquele que lhe dava a mão.

Envergonhada na minha condição social acelerei meu carro enquanto meus pensamentos continuavam no homem com a criança tentando equilibrar na beira do asfalto para não serem atropelados.

Mais uma vez me veio a discussão filosófica dos dois modos básicos de estar no mundo: o modo “ter” e o modo “ser”.

Não se compra altivez.



Fotografias: MG 040, trecho bem próximo da cena relatada.

Maria do Rosário N. Rivelli

13/09/2021