domingo, 23 de março de 2025

Fábula: Pelos sete mares


Eram os tempos das enxurradas defronte a minha casa. Pulei para dentro de um barquinho de papel manilha cor de rosa. Solavancando nos obstáculos da terra dura agarrei-me nas bordas do meu barquinho.


Logo estava no riacho das araras. A gritaria das aves me tirou dos embalos da correnteza. Como eu era feliz!

Entre um e outro pingo d’água me mantinha seca. Eles se afastavam e sorriam ao me verem ali dentro. Começaram a participar daquele folguedo numa bela dança pelos ares.

- Lá vai ela bonita e dançando dentro do barquinho de papel manilha cor de rosa!

Não tive medo quando meu barquinho adentrou naquele rio. Era o rio dentro do meu coração. Sabedor da minha fome, meu barquinho trouxe-me ingás, goiabas de março de São José e bananas que ele encontrou na beiradas do rio. Fome eu não passaria. Por ali fui eu até adormecer.

De repente outro solavanco. Acordei. Estávamos no mundão do rio São Francisco. Atravessamos a Bahia onde me viram, aplaudiram e me deram aipim cozido com rapadura.

Chegamos a Juazeiro e Petrolina. Pernambuco. Alagoas e Sergipe.

O mar.

Meus olhos esverdearam-se das águas do mar.

Agora era preciso retidão dentro do meu barquinho de papel manilha cor de rosa.

Atravessei o mundão Atlântico. Encontrei com Pedro Álvares Cabral, com Vasco da Gama. Caminha leu para mim a sua carta ao rei de Portugal. Coitado. Ele não sabia de nada do meu país!

Passei por Senegal, Costa do Marfim, Cabo Verde e adentramos nas águas azul-turquesa do Mediterrâneo.

Meu barquinho atracou na Sicília. Ali visitei a eterna Donna Fuggata onde me ofereceram cordeiro assado nas brasas de troncos de laranjeiras. Enquanto isso pmeu barquinho secava ao sol.

Voltamos. Agora era subir até o Ártico. Não fossem as couraças de pele de ursos eu teria congelado. Desci rápido. Não me perguntem como cheguei ao assustador Pacífico. Estávamos na costa da minha querida América do Sul. 

Meu barquinho não quis passar pela Ásia. Acho que ele temia os tsunamis.

Em Santiago do Chile apavorei com as lembranças dos horrores de Pinochet. Corri para a Argentina. 

-Meu Deus ali está o esquisito Miley. Corra! Fuja daí!

Mas não me declinei de ir até a Patagônia. Queria ver ali os cavalos selvagens.

Meu barquinho dançava entre os blocos de gelo. Coloquei óculos escuros para ver toda a beleza daquele lugar.

Esqueci-me de ir ao oceano Índico. Queria tanto conhecer Madagáscar e as Ilhas Maurício. Vai ficar para outra vez.

Por este tempo o papel manilha cor de rosa do meu barquinho já estava esbranquiçado. E ele estava esgotado. Anunciava despedaçamento.

Por favor, meu barquinho, não morra!

Fui resgatada pelo porta aviões Minas Gerais, o maior do meu Brasil.

Adormeci de tanto cansaço.

Acordei com o barulho dos ventos e das chuvas torrenciais que caíam sobre o telhado da minha casa entre as montanhas de Minas. Grossas biqueiras desciam entre as telhas e formavam grandes enxurradas.

Que tal entrar num barquinho de papel manilha cor de rosa e descer mundo abaixo?

23/03/2025

Fotografia: Mar de Varadero, Cuba. Arquivo pessoal.

Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam  de se identificarem. 





segunda-feira, 17 de março de 2025

Pequena crônica: Anistiei-me


                                           

Extasiado pela viagem, ele chegou. Correu ao meu encontro. Quase havia me esquecido do tom de sua voz. Seus cabelos, às vezes ruivos, brilhavam sob a luz da madrugada. Não sabia mais do seu olhar. Sabia do seu amor.

Assim que chegou foi-se reabastecendo das coisas que havia deixado para trás. Amigos, sabores, folguedos, histórias, muitas histórias ao adormecer.

Eu não conseguia acompanhar tanto amor. Antevendo a dor de mais uma partida, ensimesmei. Fugi para dentro de mim. Era preciso proteção.

Ora ele ria, ora ele brincava. A piscina foi a novidade. Amante da água assim como eu, ele nadava, nadava e nadava. Deu grandes pulos para dentro do meu coração.

Desconhecendo o acontecido, eu o prendi dentro de mim. Soltá-lo já não foi possível. Crescia dentro de mim como uma semente a germinar. Tomou todo meu ar. Sufocou-me no sem ar.

Tentei em vão tirá-lo de dentro de mim. Sabia do risco daquela junção.

Entretanto, embora ficasse preso no meu peito, seu corpo se foi mais uma vez. Chorei todos os choros do mundo. Adoeci. Longas noites com o peito cheio. Cheio do meu neto. Rezas, medicamentos, emplastos. Eu continuava sufocada com meu neto alojado no meu peito.

Pedi aos anjos e arcanjos para que, de onde estivesse, ele também se libertasse de mim. Era preciso novos voos.

Até que, como um raio de luz, anistiei-me de todo aquele amor.

Ontem ao telefone:
- Vovó , vê se não some, viu?

17/03/2025

Fotografia: arquivo pessoal. Meu neto e eu lendo no meu último dia em Nova Zelândia, novembro de 2023.

Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam de de se identificarem.