Mais uma noite de plantão e lá vou eu atender uma paciente
encaminhada dos confins das Minas Gerais.
Antes de convidá-la ao atendimento leio os dados de seu
prontuário, uma rotina minha que sempre considerei imprescindível. Vejo que, junto ao mesmo, está anexado um relatório. A referida paciente já era esperada naquele dia, uma vez que o município de origem havia feito o contato
acerca da possibilidade de vagas para a internação da mesma.
Leio o documento, feito com profissionalismo,
objetividade e muito cuidado, então vou até a nossa mulher e a convido a
entrar no consultório daquele hospital onde trabalho há mais de uma década. Era
quase meia-noite.
Tratava-se uma moça muito jovem, acompanhada da mãe que
também é convidada a participar do atendimento.
Maria da Conceição era seu
nome. Estava tranquila, lúcida, bem ambientada e cooperativa com a anamnese,
embora um pouco desconfiada. Disse-me ela que estava "desprevenida" quando aquele
povo fora visita-la e, por isto, sua filha de 5 meses estava daquele jeito.
- "Qual jeito ?”
Perguntei-lhe.
Ela esquivou-se e me disse que já estava tudo bem.
Contou-me
então que eles a estavam molestando, chamando-a de “Maria Sujeira”, expondo
suas intimidades e degradando seu corpo. Ela já não suportava mais tantos insultos e desaforos. Trancou-se dentro da casa que não era sua. E, de lá, não saiu mais.
O
povo ao redor observou a casa fechada e os esburacamentos progressivos nas paredes daquele que não era seu
lar. O dono da casa chamou por sua
inquilina, sem sucesso. A vizinhança tomou conhecimento e alardeou.
Os dias
foram passando naquela agonia para todos.
- E a criança lá dentro? - Interrogavam alguns.
- O que será que ela tá fazendo com a menina ? - Pensavam outros.
Maria da Conceição passou a ameaçar quem tentasse
aproximar-se. Eram gritos e invocações aos demônios para que eles a deixassem
em paz. Atiravam-lhes pedaços de tijolos, telhas quebradas e outros objetos que encontrava pela frente.
A prefeitura da localidade ficou sabendo do caso e convocou
reunião naquele mesmo dia com os órgãos competentes.
Havia uma mulher
enlouquecida e uma criança em cárcere privado. Teria que haver uma solução com a devida urgência que o caso exigia...
E ali estava Maria da Conceição a me contar sua desventura.
Mas outro caso, ao
lado, também ia aparecendo. Meus olhos dançavam, ora para aquela que contava
sua história e, ora para a outra, a mãe.
Esta permanecera alheia a tudo e todos até então.
Debruçada sobre a
mesa, quase encostando-se no verso do monitor onde eu anotava aquele trabalho.
De costas para sua filha. Enquanto aquela falava, esta fazia lentos gestos com as mãos. Eram amplos movimentos
circulares ritmados como se obedecesse notas musicais. As mãos andavam da mesa ao
chão e deste às paredes e voltavam à mesa, ao chão, à parede ...
Não levantava
a cabeça que continuava abaixada ou em direção aos caminhos que suas mãos
percorriam.
Observei que a mulher usava um pedaço de tecido esgarçado
como lenço que tentava conter seus cabelos desgrenhados e volumosos sob uma
pretensa boa aparência.
Ela, certamente não ouviu uma só palavra do que havia sido
dito ali dentro. Era só ela com ela.
Já nem sabia para qual delas eu olhava ou atendia.
Olhei para dentro de
mim e viajei nesta hora com Guimarães Rosa, com “Sôroco, sua mãe, sua filha”.
Então chamei aquela mulher-mãe pelo nome; ela me dirigiu um
olhar doce e abriu um sorriso de contados dentes.
Ganhou coragem, levantou-se,
contornou a mesa acotovelando-se nela,
bem junto a mim, apontou a tela ligada e arriscou a pergunta:
-Isto aí é que é um computador?
06/05/2014
Fotografia: eu (ha´aguns anos) saboreando um café na mesma mesa que Freud sentava para seu descanso e um café, em Viena. (arquivo pessoal)
Como sempre muito bom.Feliz dia das mães.
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