- Mãe, tem uns parentes seus lá fora...
Era manhãzinha de um dia de semana qualquer.
Logo soube que ela estaria brincando comigo. Não tenho parentes por essas bandas de cá. Mesmo assim caminhei em direção à porta de vidro. Lá estavam eles a nos perscrutar. Dois jacus. Tentei fotografá-los. Nestes tempos de seca tenho colocado água para os pássaros que aparecem por aqui e preocupado com a alimentação deles. Tudo muito seco e arrasado.
Ficamos quietas a admirá-los.
Logo a seguir, da mesa do café da manhã, vejo dois tucanos assanhando para o derradeiro cacho de banana dos demais que não vingaram.
-Ah não! Essa banana é para nós.
Acho que eles ouviram minha voz e voaram dali para perto do galinheiro onde, nesta semana, havia colocado duas franguinhas. “Vixemaria, eles vão arrebentar a tela e comer as franguinhas” foi o que pensei. Mas eles voaram para outras freguesias. E meu coração doeu pela fuga. Deviam estar com fome.
- Mãe, olha ali!
Dois pássaros bicudos que me fizeram lembrar o carcará. E do carcará fui lembrar o meu neto do outro lado do mundo.
- Vó, quando eu for aí vou ficar só dentro da piscina, viu!
Claro que ouvi. E ficarei com ele o tempo todo, mesmo que me escaldando dentro d’água.
Por algum tempo ainda fiquei à mesa do café. Pensava o tanto que gosto de morar aqui. Uma casa construída no depois. Em volta ipês, angicos, um mogno cuja muda me foi vendida como cedro. Eu queria ter um cedro no meu quintal.
Quando criança, viajando para minha terra natal em seus noventa e dois quilômetros de estrada de terra, lembro-me do meu pai ou do nosso tio padre. Havia o temido trecho do cedro. Pavor dos motoristas. Ele ficava no alto de uma serra e, quando chovia, nenhum carro conseguia vencer aquela distância. Algumas vezes uma junta de bois dos fazendeiros próximos vinha puxar o carro do atoleiro no lamaçal. Lá embaixo havia uma casinha de tijolos. Minha irmã passou a chama-la de “a casa do pé-de-moleque”. Nem a casa pé-de-moleque, nem o cedro existem mais senão dentro das minhas lembranças. Reconstruíam a estrada, tiraram o morro acidentado e asfaltaram tudo. Hoje, quando raramente passo por ali, as batidas do meu coração ainda soam saudosas dos barulhos provocados pelos bois com suas cangas salvadoras.
Penso que somos construídos das lembranças de nós crianças. Sou construída de águas, de terras coloridas, das palavras ouvidas, de olhares atravessados, dos sabores das frutas e das quitandas, dos afetos dos familiares e de tantas outras vivências.
Mas, voltando para meu dia de visitas, já no final da tarde escuto sons estridentes. Um chamado. Outro chamado. Um casal de seriemas que passeiam pela estrada, fora do meu quintal. Posso sentir a paixão entre elas. Não se desgrudam. Danam a gritar se uma sai do campo da visão da outra.
Outro dia vi pequenas aves que pareciam pequeninas galinhas. Assim que me viram se esconderam às margens da estradinha do meu bairro. O piado não me era desconhecido, mas havia esquecido o nome delas. Saracuras. Minha vizinha me lembrou.
Se, por um lado alguns vizinhos e eu respeitamos esses pássaros que convivem conosco neste maravilhoso pedacinho de terra, por outro lado diariamente vejo, estarrecida, fumaças de folhas e ou lixos sendo queimados aos arredores por outros vizinhos.
Ontem, enquanto estava sentada à frente da tela do computador, senti que estava sendo observada. Olhei pela janela e lá estava ela, toda charmosa sobre o muro. Uma seriema. Por ali ficou acompanhando meus passos dentro de casa. Convidei-a me ajudar na cozinha. Ela caminhou sobre o muro mantendo sua elegância e, daí a pouco, começou a gritar. De algum lugar na vizinhança ouvimos a resposta ao seu chamado, certamente do seu amor.
Fiquei pensando no meu privilégio de morar bem junto à natureza e já, quase totalmente, me integrada a ele.
Funil.
20/08/2025
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