quarta-feira, 7 de maio de 2025

Andradas - UFJF - 81

                                     


“Se todo animal inspira ternura, o que houve então com os homens?” (JGR)

Nosso encontro estava chegando. Um roteiro já havia sido feito. Feito com cuidado, com carinho e, certamente, com muitas preocupações. 

Anfitriões, não se preocupem; agradar a todos não é possível. Sessentões, a caminho ligeiro para os setenta, não deveríamos mais queixar das escolhas, dos sabores, dos trajetos e das acolhidas. Agora é hora dos abraços, das palavras, das lágrimas, dos causos, das histórias e, quem sabe, até dos amores. Afirmo que aqui não há lugar para a desalmada Inteligência Artificial. Seremos tão só colegas de um tempo em que não houvera tempo para encontros assim.

Para nosso encontro, não queria parecer a velha em que me tornei. Queria estar linda. Recorri a vendedoras de Avon e Natura, Mary Key nem pensar, não me apetece; depois contarei o porquê.

Gostaria de esticar a pele do meu rosto, redefinir a linha que separa a pele dos meus lábios, colocar meus cabelos do jeito que tanto gosto. Quem sabe um baton milagroso resolveria esta situação?

Mas o meu valor está estampado sobre meus lábios, esse inexorável código de barras que só podia ser invenção de um estadunidense desalmado. E, por incrível que pareça, esta invenção se deu ainda antes de eu nascer. Sou deveras preconceituosa com aqueles estados nada unidos, inda mais agora com o cruel tarifaço do Donald “Laranjeira”.

Mas confesso que comprei roupas novas. Uns vestidos. Enfrentei fila, sol de mormaço e sede numa feira de bota-fora duma famosa marca de jeans na terrível e maltratada Ibirité. E, por falar em Ibirité, sempre me perdi tentando cortar caminho para minha casa, saindo do anel rodoviário, passando pelas periferias de Tirol, Barreiro, via do Minério de não sei aonde e chegando a Ibirité.

- “Dona, a senhora está perdida. Vai por aí não! É uma favela; não tem como voltar”.

Mas queria mesmo é estar bonita comigo. Vou me arranjando do jeito que deus quer. Minha filha prometeu fazer os “looks”, ela, que entende de moda fashion, até me ensinou um truque para as viajantes, a tal regra 4 – 3 – 2 - -1.

Eu, lá na minha casa, agora ando entendendo só de galinhas. Galinhas carijós, galinhas Isa brown, galinhas Embrapa, galinhas botadeiras e de galinhas caipiras que nem eu. Quando minha nora, uma poderosa arquiteta e designer, me orientou pra deixar meu terreno bem rústico, do feitio próprio dele, sem muita modernidade, tracei uma linha divisória construindo uma estradinha de pedras. Acho que acabei ficando do lado das galinhas. Só batendo asas.

Pois bem, termino essa confissão afirmando que minha “boniteza” tem 67 anos e se apresenta por belos traçados na minha face e no meu corpo.

Amo vocês.

Muito obrigada.


     




domingo, 27 de abril de 2025

Crônica: Elas e eu.

                                     



Elas nunca me chamaram atenção. Talvez porque não tivesse tempo para percebê-las ou, quem sabe,  vivia num mundo paralelo onde elas não existiam. Entretanto em minhas muitas lembranças elas povoam de forma abundante.

Não sei quando comecei a ter um olhar diferenciado para elas. Ou será que foram elas a me dar atenção assim como  roupas e calçados? Não sou eu a escolher o que comprar. São elas, as roupas, ou eles, os calçados, a me comprarem.

Agora isso tem mudado. 

Ou mudei eu?

Um dia, convidada por uma vizinha amiga, fomos a uma flora. Enquanto ela escolhia suas orquídeas, caminhei entre os canteiros das variadas qualidades de flores. De repente fui atraída por um perfume jamais sentido.

- Moço, de onde vem esse perfume por aqui? Perguntei

Voltei para casa com um enorme vaso de pequeninas flores em tons rosa e lilás. Camará. Agora, quando abro minha janela pela manhã, meus olhos são convocados a olharem as florezinhas espalhadas no canteiro bem perto de mim.

Depois vieram as “da moda”. As melindrosas  que não gostam de vento, não gostam de mudar de lugar, não gostam de sol, mas que florescem magnificamente. As orquídeas.

Hoje dei uma topada com brincos-de-princesa no jardim da casa daquela minha vizinha. Lembrei que me presenteei com um vaso delas para dependurar na minha casa quando fiz quarenta anos. Penso que depois disso adormeci para as cores e os perfumes delas. Foi um tempo para eu hibernar e acordar nova de novo.

Hoje observei algumas borboletas voando no meu quintal. Observei também que os beija-flores sumiram daqui desde que foi preciso fazer a poda dos hibiscos ao longo da cerca. Para substituí-los fui orientada a plantar camarões que também atraem beija-flores. Mas eles não voltaram. Por onde andarão?

Há cerca de dois meses recebi as visitas de meu filho, meu neto e minha nora, uma elegante e sofisticada mulher. Resolvi florir minha casa, recém-construída com todo seu apoio nos detalhes finais, trazendo beleza, praticidade e rusticidade, tudo do jeito que eu queria. Então fui até a flora onde um vaso, logo na entrada, convocou meu olhar.

-Moço, que flor é essa? Perguntei

O vaso de pequeninas flores lilases foi, também, colocado na entrada da minha casa me fazendo lembrar da Dani a todo instante. Amestista é o nome delas.

Vivo numa região cujos moradores originários amam as flores. Nas minhas caminhadas morro acima e morro abaixo me distraio fotografando os inúmeros coloridos das flores espalhadas pelas cercas, pelos jardins, pelos caminhos afora.

Acho que, agora, me dei olhos para contemplá-las.

Funil, Mário Campos, 27/04/2025





camarás






                     


camarões


               
                             Rosa do deserto

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Crônica: III ENE

 

"Caminhando e cantando e seguindo a canção..."


Era uma manhã bonita, dessas que guardam promessas no ar. Era 3 de junho de 1977.

Acordamos cedo — não por vontade, mas por necessidade. A pequena lá de casa, nossa filhota de oito meses, já havia esvaziado a última mamadeira à meia-noite e, às seis, estava de olhos brilhando, pronta para viver mais um dia. Nós, ainda meio sonâmbulos, nos equilibrávamos entre mamadeiras, café e expectativas.

Tínhamos um compromisso. E não era qualquer um.

No dia seguinte, aconteceria o III Encontro Nacional dos Estudantes — o famoso III ENE — um projeto que vinha sendo gestado havia mais de um ano, entre debates, esperanças e riscos calculados.

Éramos jovens, estudantes universitários, e acreditávamos em revoluções.

Participávamos ativamente do movimento estudantil, e o III ENE era mais que um evento — era um gesto de coragem contra o silêncio forçado.

Queríamos reconstruir a UNE*, colocada na ilegalidade desde o golpe de 64, e devolver-lhe o corpo e a voz.

Nós dois estudávamos na FAFICH(**), na rua Carangola, no bairro Santo Antônio.

Um reduto vivo, múltiplo.

Tinha gente do teatro, da música, os fãs de Bob Marley com seu fumacê, e nós, revolucionários de fé.

Ali, conheci Teuda Bara do Grupo Galpão, músicos, poetas, gente que incendiava ideias com arte.

O governo militar já havia deixado claro: o encontro estava proibido, em qualquer canto do país.

Mas a juventude, quando junta, tem uma coragem teimosa.

Já tínhamos perdido amigos para prisões, torturas, exílios.

E as universidades, sucateadas, formavam estudantes para um país que não reconhecíamos como nosso.

Restava-nos lutar. E estávamos dispostos.

O encontro seria em Belo Horizonte, no Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFMG.

Lá, planejava-se a assembleia geral que selaria a refundação da UNE.

Mas como ir a um evento proibido, levando uma bebê no colo?

Dividimos as tarefas: eu iria na vigília da véspera, ele no dia seguinte.

Tudo combinado, saí com o coração apertado e o cheiro da bebe ainda na blusa, lá fui eu.

Ao chegar ao DA Medicina, a notícia era preocupante: a repressão já se movia.

As estradas de acesso à cidade estavam cercadas.

Nos ônibus, jovens eram retirados à força, presos por parecerem... estudantes. Simples assim. E, claro, houve muitos enganos.

Ali no diretório, começamos uma assembleia de emergência.

Era preciso decidir: o que fazer frente ao cerco?

Foi quando soubemos que já estávamos cercados.

E que, do lado de fora, muitos lutavam por nós, enfrentando cães, cacetetes, balas de borracha e o ardor do gás lacrimogêneo.

As negociações começaram. O reitor falava com nossos representantes, que tentavam diálogo com os comandantes da repressão.

Éramos 400. E, depois de horas de tensão, veio um suposto acordo.

Esperaram anoitecer.

E foi no escuro que ouvimos: botas marchando, cães latindo, escudos se chocando.

Um som metálico, grave, que gelava a espinha.

Parecia guerra. Mas não havia armas do nosso lado — só cadernos, panfletos, ideias.

Estávamos ali por liberdade. Pela anistia. Pelo fim da ditadura.

Naquela noite, a polícia invadiu o campus da saúde.

Ordenaram: saiam ou serão retirados à força.

Saímos. Em grupos de cinco e de braços dados, queriam que fosse com as mãos na cabeça, não permitimos.

Passamos por um corredor polonês de fardas e fuzis.

Nos colocaram em ônibus e nos levaram à Gameleira.

Ali, fomos fichados.

“Piano” — como chamavam o processo de tirar nossas digitais.

Fotos de frente e de lado, segurando plaquinha com idade e número.

Classificaram-nos: alta, média ou baixa periculosidade.

Na luta política brasileira, virei “classificação”.

Passei uma noite ali. No dia seguinte, fui liberada.

Meu coração corria mais que meus pés: precisava ver minha filha.

E a encontrei, feliz e sorridente, na casa da minha irmã.

Ela não fazia ideia do que se passava. Mas já carregava no sangue o peso leve da resistência.

O tempo passou.
As lutas mudaram de rosto, mas não de essência.
E um dia, diante da surpresa geral, nossa filha soltou sua primeira frase:

-Baixo tadura!

Sorri.
A semente estava plantada.
A luta continua!

Autoria: Neuza Lima, 24/04/2025

(*) União nacional dos Estudantes
(**) FAFICH Facukdade de Filosofia e ciências Humanas / Universidade federal de Minas Gerais

Foto:de Euler Cássia/  Acervo Jornal Hoje em Dia 
Saída de estudantes abraçados da escola de Medicina da UFMG, durante o III ENE (Encontro Nacional de Estudantes). em 1977. 


P.S. Tenho o prazer  em compartilhar com vocês esta crônica da minha queria amiga e colega Neuza Lima, escritora, cronista, e participante, junto comigo, da Oficina de Escrita Criativa ministrada pelo poeta, escritor, professor e atleticano, Ronald Claver, organizada  pela OAP/UFMG

Biografia: Neuza Lima (Neuzinha, para os íntimos), vive em Belo Horizonte desde a década de 70.
Socióloga, mãe, avó, amiga, "miitante", parceira... 
Trabalhou como professora e também como técnica em políticas públicas na PBH.
"Agora aposentada tenho tempo até para contar história. Antes, ele é que me tinha" diz ela.



segunda-feira, 21 de abril de 2025

“Primeira Epístola de Joaquim José da Silva Xavier – O Tiradentes - aos ladrões ricos”

                                       




Meus caros irmãos,

Em comunhão com os ideais libertários e humanísticos dos Inconfidentes em Minas Gerais, digo-lhes que o dia de hoje é menos para celebrarmos a paz do que para denunciarmos a vilania dos inescrupulosos, as mentiras estampadas nos jornais e o avanço da amoralidade dos homens de não tão boas vontades.

É preciso comunicar ao mundo que o avesso do diálogo está voltando aos palcos, que o avesso das ciências está atraindo multidões e que o ódio, mais uma vez, está dominando o pensamento e as ações dos homens.

Faz-se urgente gritar ao mundo que os vários “Tiradentes” espalhados pelo planeta têm sido insuficientes para contrapor as ideias dos infelizes que se julgam acima das leis e da ética.

Quero lembrar a todos que nosso país, nossa tão abençoada América do Sul, num passado bem recente, vivenciou os horrores das dominações dos tiranos, dos sugadores da Terra-mãe e dos assassinos de seus povos.

Que fique bem claro que não aceitaremos mais filhos sem mães ou mães sem filhos, que não aceitaremos que a vida de nenhuma criança seja tomada por bombas ceifadoras dos povos.

Anuncio a estes anticristos que usam de suas palavras para enganar o povo que faremos de suas vidas um inferno em Terra. E que assim o será.

Que registrem minhas palavras em atas e que façam cumprir as leis àqueles que usurparam as riquezas de nossos países, que assassinaram nossas esperanças e desafiaram nossa gente.

Aiuruoca, 21 de abril de 2025.

          "José Franklin Massena de Dantas Motta"



P.S. E hoje não poderia deixar de lamentar a morte do argentino Jorge Mário Bergoglio que, como verdadeiro cristão, aceitou o nome de Francisco ao se tornar Papa. O Papa que nos trouxe de volta a alegria, a compaixão, o respeito ao meio ambiente, a sabedoria e o amor de São Francisco.

            "José Franklin Massena de Dantas Motta"



Observação: Informo que este texto refere-se ao trabalho proposto na oficina de escrita criativa tendo como referência a obra cujo nome dá título ao meu texto, do escritor sul-mineiro de Aiuruoca , José Dantas Motta, publicada em 1967.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Poema: "Mãe dos Silenciados"

 



Pelas estradas de terra, onde o mundo se silencia,

Eu caminho, de dia e de noite, sob sol ou luar frio.

Levo nas mãos o peso de uma maleta e no peito a fé,

Porque sei que ali, além do horizonte de poeira,

Alguém me espera com os olhos cheios de esperança.


Encontro faces que o tempo esculpiu com paciência infinita,

Guardando histórias que nem o vento ousa levar.

Suas mãos, gastas de lidas e rezas, seguram as minhas,

E naquele toque, sem palavras,

Eu entendo que sou parte de algo maior.


A criança magrinha, olhos brilhantes de gratidão,

Me abraça com força, como se dissesse: "Não me esqueça".

E eu não esqueço.

Guardo no peito cada sorriso puro,

Cada abraço que se faz remédio para mim também.


As noites em claro me ensinaram a orar diferente.

Não peço menos trabalho, peço mais força.

Porque enquanto o mundo dorme, eu estou acordada,

Pensando no choro abafado de um paciente ao lado,

Na mãe que não desgruda da beira da cama.


Chuva, lama, frio cortante.

Eu e meu companheiro no meio do nada, sem farol que alcance.

Mas Deus abre caminho onde não há estrada,

E ali, no meio do escuro,

O chamado de socorro se transforma em missão.



Não nego que meu coração já se apertou muitas vezes.

Na pressa de salvar o mundo, às vezes não salvo a mim mesma.

Minha filha espera por mim, e eu sei.

Sei do tempo que lhe devo, do colo que ficou vazio,

Mas espero que ela entenda que meu amor também é caminho.


E quantas vezes a lágrima veio escondida,

Por ver que minhas mãos não eram suficientes,

Que o tempo, às vezes, anda mais rápido do que eu.

Mas Deus me deu olhos de ver além,

E é nesse além que repouso minha confiança.


E Ele também me mostra milagres.

Vi olhos fechados se abrirem de novo.

Vi quem perdeu o fôlego, de repente, respirar.

Vi o sorriso voltar ao rosto cansado,

E nesses instantes, eu sou apenas gratidão.


Cada paciente é um livro aberto,

Páginas que leio com o coração atento.

Histórias de perdas, amores, medos e coragem,

E eu, sem perceber, me torno personagem,

Porque cada uma dessas histórias também me escreve.


Sou ponte entre o esquecimento e o cuidado,

Entre a solidão e o toque humano.

E mesmo quando penso que nada mais posso fazer,

Um par de olhos me olha e diz: "Obrigado, doutora".

E esse "obrigado" me refaz inteira.


Carrego comigo as vozes que o mundo calou,

Os olhares que ninguém notou.

Sou ouvida no silêncio, vista na escuridão,

Porque não há dor que se esconda de um coração atento,

E eu estou lá, mesmo quando ninguém mais está.


Não sei se o mundo lembrará de mim um dia,

Mas sei que, lá no interior de cada paciente,

Ficou um pedaço meu.

E, dentro de mim, levo cada um deles também.

Porque ser médica não é só profissão,

É costurar o amor no silêncio das madrugadas,

E ouvir, ao longe, a voz de Deus dizendo:

“Vai, eu estou contigo.”


 Autora: Dra Márcia MFV (Médica na UPA da cidade de Mário Campos)

Fotografias: arquivo pessoal de Dra Márcia. (Caminhos por onde percorri enquanto médica atuante na Saúde Pública)

                                                                          

  


                                                
               
Dra Márcia e eu quando lhe presenteei com meu livro "Em nome da mãe"


Mas quem é dra Márcia M. F. Valadão? 

Ela mesmo é quem responde conforme abaixo:

"Ao longo do meu caminho, aprendi que mundos inteiros se revelam nas entrelinhas da vida — nos gestos contidos, nos silêncios que gritam, nas meias palavras, nas marcas do tempo gravadas no rosto e nas mãos. Meu olhar repousa sobre essas sutilezas com reverência, como quem reconhece ali a presença do sagrado. É daquilo que muitos não veem que extraio sentido, beleza e verdade. E ao transformar essas percepções em palavras, busco tocar outras almas com a mesma delicadeza com que a vida me toca."


terça-feira, 1 de abril de 2025

Poema: Nós



Ando com saudades

daquele bando de jovens

sedentos de conhecimento

e saberes.

Ainda não entendíamos que

a sabedoria tão procurada

estaria tão só

dentro de nós.

30/03/2025



Fotografia: Igreja N.Sra da Piedade, distrito de Piedade do Paraopeba, Brumadinho, M.G.

domingo, 23 de março de 2025

Fábula: Pelos sete mares


Eram os tempos das enxurradas defronte a minha casa. Pulei para dentro de um barquinho de papel manilha cor de rosa. Solavancando nos obstáculos da terra dura agarrei-me nas bordas do meu barquinho.


Logo estava no riacho das araras. A gritaria das aves me tirou dos embalos da correnteza. Como eu era feliz!

Entre um e outro pingo d’água me mantinha seca. Eles se afastavam e sorriam ao me verem ali dentro. Começaram a participar daquele folguedo numa bela dança pelos ares.

- Lá vai ela bonita e dançando dentro do barquinho de papel manilha cor de rosa!

Não tive medo quando meu barquinho adentrou naquele rio. Era o rio dentro do meu coração. Sabedor da minha fome, meu barquinho trouxe-me ingás, goiabas de março de São José e bananas que ele encontrou na beiradas do rio. Fome eu não passaria. Por ali fui eu até adormecer.

De repente outro solavanco. Acordei. Estávamos no mundão do rio São Francisco. Atravessamos a Bahia onde me viram, aplaudiram e me deram aipim cozido com rapadura.

Chegamos a Juazeiro e Petrolina. Pernambuco. Alagoas e Sergipe.

O mar.

Meus olhos esverdearam-se das águas do mar.

Agora era preciso retidão dentro do meu barquinho de papel manilha cor de rosa.

Atravessei o mundão Atlântico. Encontrei com Pedro Álvares Cabral, com Vasco da Gama. Caminha leu para mim a sua carta ao rei de Portugal. Coitado. Ele não sabia de nada do meu país!

Passei por Senegal, Costa do Marfim, Cabo Verde e adentramos nas águas azul-turquesa do Mediterrâneo.

Meu barquinho atracou na Sicília. Ali visitei a eterna Donna Fuggata onde me ofereceram cordeiro assado nas brasas de troncos de laranjeiras. Enquanto isso pmeu barquinho secava ao sol.

Voltamos. Agora era subir até o Ártico. Não fossem as couraças de pele de ursos eu teria congelado. Desci rápido. Não me perguntem como cheguei ao assustador Pacífico. Estávamos na costa da minha querida América do Sul. 

Meu barquinho não quis passar pela Ásia. Acho que ele temia os tsunamis.

Em Santiago do Chile apavorei com as lembranças dos horrores de Pinochet. Corri para a Argentina. 

-Meu Deus ali está o esquisito Miley. Corra! Fuja daí!

Mas não me declinei de ir até a Patagônia. Queria ver ali os cavalos selvagens.

Meu barquinho dançava entre os blocos de gelo. Coloquei óculos escuros para ver toda a beleza daquele lugar.

Esqueci-me de ir ao oceano Índico. Queria tanto conhecer Madagáscar e as Ilhas Maurício. Vai ficar para outra vez.

Por este tempo o papel manilha cor de rosa do meu barquinho já estava esbranquiçado. E ele estava esgotado. Anunciava despedaçamento.

Por favor, meu barquinho, não morra!

Fui resgatada pelo porta aviões Minas Gerais, o maior do meu Brasil.

Adormeci de tanto cansaço.

Acordei com o barulho dos ventos e das chuvas torrenciais que caíam sobre o telhado da minha casa entre as montanhas de Minas. Grossas biqueiras desciam entre as telhas e formavam grandes enxurradas.

Que tal entrar num barquinho de papel manilha cor de rosa e descer mundo abaixo?

23/03/2025

Fotografia: Mar de Varadero, Cuba. Arquivo pessoal.

Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam  de se identificarem. 





segunda-feira, 17 de março de 2025

Pequena crônica: Anistiei-me


                                           

Extasiado pela viagem, ele chegou. Correu ao meu encontro. Quase havia me esquecido do tom de sua voz. Seus cabelos, às vezes ruivos, brilhavam sob a luz da madrugada. Não sabia mais do seu olhar. Sabia do seu amor.

Assim que chegou foi-se reabastecendo das coisas que havia deixado para trás. Amigos, sabores, folguedos, histórias, muitas histórias ao adormecer.

Eu não conseguia acompanhar tanto amor. Antevendo a dor de mais uma partida, ensimesmei. Fugi para dentro de mim. Era preciso proteção.

Ora ele ria, ora ele brincava. A piscina foi a novidade. Amante da água assim como eu, ele nadava, nadava e nadava. Deu grandes pulos para dentro do meu coração.

Desconhecendo o acontecido, eu o prendi dentro de mim. Soltá-lo já não foi possível. Crescia dentro de mim como uma semente a germinar. Tomou todo meu ar. Sufocou-me no sem ar.

Tentei em vão tirá-lo de dentro de mim. Sabia do risco daquela junção.

Entretanto, embora ficasse preso no meu peito, seu corpo se foi mais uma vez. Chorei todos os choros do mundo. Adoeci. Longas noites com o peito cheio. Cheio do meu neto. Rezas, medicamentos, emplastos. Eu continuava sufocada com meu neto alojado no meu peito.

Pedi aos anjos e arcanjos para que, de onde estivesse, ele também se libertasse de mim. Era preciso novos voos.

Até que, como um raio de luz, anistiei-me de todo aquele amor.

Ontem ao telefone:
- Vovó , vê se não some, viu?

17/03/2025

Fotografia: arquivo pessoal. Meu neto e eu lendo no meu último dia em Nova Zelândia, novembro de 2023.

Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam de de se identificarem. 


quarta-feira, 12 de março de 2025

Fábula: Latões

                             


Foi assim: vivíamos felizes no nosso reino encantado onde tudo que se se plantava se colhia, até que um dia...

Um dia tiveram grandes olhos gordos sobre nossa felicidade. Quiseram o segredo da vida daquele reino encantado.

Então invadiram nossas terras. Levaram nossas frutas e nos trouxeram coca-cola. Trocaram nossas palavras como pão com queijo por sanduiche, quitandas por cookies e tantas outras. Vestiram-nos de calças lee e nos fizeram dançar o rock and roll.

Depois aquele povo, que tudo de nós levou, passou a enviar leite em pó em latões para alimentar os pobres do nosso reino que havia sido encantado.

Nos latões havia emblemas daquele outro reino que nunca havia sido encantado, e onde se lia “aliança para o progresso”.

O leite daqueles latões estava envenenado. Adoeceram as cabeças das crianças e aprisionaram lhes os sonhos.

Aquele reino desencantado continuou invadindo outros reinos e roubando sua gente.

Ninguém me contou. Eu estva lá. Eu vi tudo.

Agora ouço dizer que querem tomar outros reinos encantados.




Observação: Este texto foi construído ontem, durante a Oficina de Escrita ministrada pelo poeta e escritor mineiro, Ronald Claver, que sugeriu que escrevêssemos uma palavra. A partir dela deveríamos escrever outras palavras e, depois, construir um texto com as palavras


LATÕES:

Sujeira, resto, carne de lata, “aliança para o progresso”, EUA, ditadura, golpe, fome, miséria, Judas, império, decadência, estilo de vida, riqueza, colonialismo, predador, animal, ignorância, idiota, capital.

Belo Horizonte, 12/03/2025

Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam de de se identificarem. 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Crônica: Um velho menino





Um dia teve que fazer escolhas. Não titubeou. Escolheu com o coração. O preço, qualquer que fosse a opção, seria alto demais. Assim o foi. Mesmo muito jovem pagou seu valor. Não fossem as fanfarrices com a vida talvez tivesse sucumbido. A paixão pelo Clube Atlético Mineiro e pelas partidas de futebol de várzea foram os esteios por onde suas pernas se apoiaram, com certeza.

Doce feito ele só aprendeu muito bem as terríveis diabruras ensinadas pelo padrinho-tio Padre. Acordar os sobrinhos, ainda nas madrugadas, contar piadas, fazer mágicas com o baralho, jogar buraco, pescar, colecionar cachaças, tem sido seus prazeres.

Quando menino, por um tempo, carregava um balaio de bambu maior que ele. Vendia pães nas madrugadas pelas ruas do nosso bairro.

Depois veio o seminário em Barbacena. Um santo aquele menino. Cruz credo! Acho que a mãe pensava que Deus pudesse colocar um pouco de juízo na cabeça do filho. O menino era “de morte”. Sempre dava um jeito de colocar a culpa de suas presepadas em outro irmão, primo ou vizinho. Era mesmo “de morte” aquele menino.

Mas o menino era muito inteligente. Ensinou-me aritmética, língua pátria, história, geografia e ciências para que eu fizesse a admissão sem precisar cursar mais um ano antes de entrar no ginásio. Passei direto para o Estadual.

Quando esse menino foi ficando jovem,  ganhou o apelido de "caxotinho de rapadura". O segredo do apelido ele trancou dentro desse caxote melado e o fechou a sete chaves. Ainda hoje fica com a face ruborizada se alguém toca nesse caxotinho. 

Hoje, fazendo setenta anos, orgulhoso dos filhos e netos, amante de sua sempre namorada-esposa-avó, ele está lá. Ilhado, envolto pela Represa de Três Marias, onde criou raízes bem longe de nós.

Com fubá jogado ao chão, atualmente, ele recebe canarinhos e cardeais no seu terreiro. Planta rosas do deserto e continua acordando nas madrugadas.

Amo-te meu irmão .

Observação: Na foto acima estão três gerações de Nelsons. Meu pai, meu irmão e o filho deste, meu sobrinho.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Poesia: Um amor adormecido


Ao redor

o piar dos passarinhos

o farfalhar das folhas

o cheiro da terra molhada

Sobre a mesa o café fumegava

Uma mensagem chamou atenção

“Bom dia meu amor adormecido”

Ela abriu os olhos

Acordou sem as rugas do tempo

Sorriu sozinha

Virou menina outra vez



02/02/02025

Fotografia: Lisboa (Portugal), gentilmente cedida por um amigo


segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Crônica: Cadê nossa água?

                          



Cadê nossa água?

Desde “tresontante” sábado, dia, dia 18, estamos sem escutar o barulho gostoso da água caindo em nossas caixas d’água. Não foi sem razão que os integrantes do grupo do WhasApp do bairro começaram a se preocupar.. Exatamente num final de semana de janeiro, verão, férias, quando recebemos familiares e amigos para nossos encontros e colocar nossas conversas em dia.

Com orientações para que anotássemos números de protocolos das reclamações feitas à COPASA, vários moradores fizeram as ditas aguardando algum sinal do maravilhoso líquido chegar às nossas casas. Nada. Nenhum sinal. Nenhum barulhinho nas caixas d’água. Alguns moradores, altruístas, ofereceram para pegarem “água da mina” em suas casas para a urgência do beber, afinal somos feitos de água e sem ela, vamos sucumbir.

Uma moradora informou que, ao ligar para a COPASA, foi informada de que “a terceirizada” fez um serviço de reparo mal feito na região e que então teria acarretado tal “falta d’água”.

Este fato me trouxe algumas lembranças da minha infância e outras bem atuais.

Morava numa rua de terra e, por debaixo da vermelhidão daquela terra, passavam canos de ferro por onde nem sempre passava o precioso liquido cristalino. Às vezes chegava um líquido enferrujado, outras vezes barreado, outras vezes nem chegava. Então minha mãe dizia assim: “pode falar tudo numa casa, mas não pode faltar água”. Nós sete crianças buscávamos água numa fontezinha a quase um quilômetro de distância depois de uma enorme ribanceira. Ali, num lajedo, as lavadeiras cantavam enquanto esfregavam as roupas de seus clientes. Eu olhava tudo aquilo com olhos de criança.

Outros fatos, bem mais recentes, foram as várias faltas da energia elétrica, da rede móvel de telefonia e da internet que tem acontecido na nossa região tão bem abençoada por Deus na sua abundância de beleza e de água. Temos aqui nosso Córrego do Vinho que desce suave pelas remanescentes matas nos fundos dos sítios e, às vezes, margeando nossos caminhos. Temos ainda minas d’água que servem a alguns moradores.

Mas não sem motivos escusos que tais faltas tem acontecido no nosso Funil e por tantas outras bandas das nossas e de outras cidades. Sabemos da gigantesca dívida de nosso estado com a união, acumulada desde não sei quando e acrescida de muitos milhões de reais neste atual governo estadual. (Lembro que outros estados também estão nesta situação como o Espírito Santo, Goiás, Pará, São Paulo, etc). No ano passado esses estados foram chamados para discutirem sobre a renegociação destas dívidas com a união quando Minas Gerais acordou como pagaria sua dívida. Entretanto o governador do nosso estado, alheio ao acordo, vem propondo a venda de nossas estatais entre elas a CEMIG, COPASA, CODEMIG, e outras. E assim ele vem fazendo, vendendo e terceirizando serviços essenciais dessas empresas, o que está precarizando os serviços dessas empresas. Por outro lado o que se sabe é que o dinheiro arrecadado dessas vendas não tem sido utilizado para pagar a dívida conforme o acordo com a união. Leiamos abaixo uma proposta do presidente do senado Rodrigo Pacheco:

“A federalização de estatais é um dos mecanismos propostos pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, no projeto de lei apresentado como alternativa ao Regime de Recuperação Fiscal para renegociar a dívida de Minas e de outros estados com a União”.

Sabemos que água, energia e minerais são bens não renováveis, ou seja, tem tempo de duração e irão acabar. Ainda não conseguimos produzir água doce e nossa energia vem de nossos rios que secam a cada dia.

Sabemos também que países europeus que privatizaram suas águas e energia estão renegociando para tê-las de volta.

Um desabado: viajo com certa frequência pela BR 040 em direção ao Rio e o que vejo pelas margens me deixam estarrecida. Devastação de nossas montanhas dentro do que "quadrilátero ferrífero" e a gigantesca “The Coca-Cola Company”, empresa multinacional estadunidense, consumindo quase toda a água da população de Brumadinho.

Chega, porque as águas dos meus olhos também vem secando pela tristeza de tanto que tenho visto pela vida afora.

Segunda-feira, 20 de janeiro de 2025








quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Crônica: Minha caixinha de remédios

                              

Primeiro veio o anti-hipertensivo. Com um nome grande e difícil de falar, Olmesartana medoxomila. Lá está ele, branquinho e insolente. Depois veio outro com nome tão difícil quanto o primeiro. Um comprimido para abaixar níveis altos de gordura no sangue, a tão conhecida nossa, rosuvastatina cálcica. A seguir, com muita relutância, entrou na minha caixinha uma cápsula branca para dores articulares. Dores insuportáveis nas cadeiras, ou quadril como dizem os médicos. Dores nas tais bursite trocantérica e pata de ganso. Dores aqui e acolá. Milagre! Ele aliviou todas estas dores que vieram com os anos longos da minha vida.

Faz-se necessário apontar que esses são os ocupantes permanentes da minha caixinha de remédios. Existem mais, esses temporários e indesejados, que não entram lá. Estes são para outros fins que aqui não cabe citar nem nomes nem fins.

Mas não são das dores e nem das alterações na fisiologia do meu corpo que quero falar nessas minhas escritas. Aqui quero falar do meu relacionamento amigável e, até mesmo, incógnito com esse pedacinho de material plástico, vedado, vendido nas farmácias e que tanto tem conversado comigo e acompanhado meus pensamentos.

Tem sido raro me esquecer de tomar esses remédios como muitas vezes tenho me esquecido de outros afazeres. Com certeza este fato se deve a esse relacionamento diário, amigável e de cumplicidade. Toda manhã, após meu café preto, lá vou eu abrir minha caixinha e tirar dela, como ouro em pó prensado, meus compridos. Junto deles, diariamente, vêm cenas como dos últimos meses de vida da minha avó materna, na cidadezinha mineira onde nasci. Meninas e meninos não tinham licença para adentrar naquele quarto isolado da imensa casa onde ela morava. Um provável câncer de intestino, que naqueles idos de 1968, não tinha tratamento. Entretanto o calor humano dado pelos familiares e toda a comunidade ao redor, certamente superaria quaisquer intervenções em apartamentos de luxo nos hospitais de paredes geladas. E foi a primeira vez que usei um vestido para o luto. Eu estava com dez anos.

Outras vezes, ao tomar meus remédios, vem o orgulho do meu pai dizendo, dos altos de seus noventa anos, que não tomava nenhum remédio e que sua pressão e seu coração eram de jovens. “Assim dizem os médicos”.

Minha caixinha de remédios tem oito pequeninos compartimentos. Um para cada dia da semana e um extra para reservas caso seja necessário. Ali tenho uma metade de um comprimido para ansiedade. Não sei porque ele continua lá. Será que não sei mesmo?

Quando esvazio todos os compartimentos é hora de reabastecê-los. É nesse momento que vejo o tanto que voam as semanas em dias tão longos. Tenho feito pequenos estoques dos meus remédios. Não gosto de esgotá-los. Nem gosto de ver compartimentos vazios.

Devo confessar que nunca gostei de tomar remédios. Evito-os. Sei de seus efeitos terapêuticos assim como sei também de seus efeitos indesejáveis. Outro motivo para evita-los sou eu saber o porquê preciso deles. Mais ainda em se tratando daqueles permanentes. Eles me lembram, diariamente, que estou envelhecendo. Já sinto saudades da vida.

Mas uma cena vem à minha memória diariamente ao me aproximar da minha caixinha de remédios. Eram os muitos recipientes que ficavam no armário da cozinha da minha casa, na prateleira à altura dos nossos olhos. Junto ficava também o estojo de aço com seringa e agulha para aplicar injeções. Meu pai era chamado para aplicar injeções nos doentes da minha rua além das injeções necessárias em família. Mas havia também sacolinhas brancas, de plástico, quadradas, onde meu pai organizava os vários medicamentos da minha mãe. Era ele quem lhe dava, ou lembrava-lhe daqueles tantos comprimidos.

Minha caixinha de remédios tem muito mais que apenas comprimidos dentro dela. Minha caixinha de remédios tem saudades, tem memórias, tem afetos e tem muita vida pulsando dentro dela.

01/01/2025

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