quinta-feira, 24 de abril de 2025

Crônica: III ENE

 

"Caminhando e cantando e seguindo a canção..."


Era uma manhã bonita, dessas que guardam promessas no ar. Era 3 de junho de 1977.

Acordamos cedo — não por vontade, mas por necessidade. A pequena lá de casa, nossa filhota de oito meses, já havia esvaziado a última mamadeira à meia-noite e, às seis, estava de olhos brilhando, pronta para viver mais um dia. Nós, ainda meio sonâmbulos, nos equilibrávamos entre mamadeiras, café e expectativas.

Tínhamos um compromisso. E não era qualquer um.

No dia seguinte, aconteceria o III Encontro Nacional dos Estudantes — o famoso III ENE — um projeto que vinha sendo gestado havia mais de um ano, entre debates, esperanças e riscos calculados.

Éramos jovens, estudantes universitários, e acreditávamos em revoluções.

Participávamos ativamente do movimento estudantil, e o III ENE era mais que um evento — era um gesto de coragem contra o silêncio forçado.

Queríamos reconstruir a UNE*, colocada na ilegalidade desde o golpe de 64, e devolver-lhe o corpo e a voz.

Nós dois estudávamos na FAFICH(**), na rua Carangola, no bairro Santo Antônio.

Um reduto vivo, múltiplo.

Tinha gente do teatro, da música, os fãs de Bob Marley com seu fumacê, e nós, revolucionários de fé.

Ali, conheci Teuda Bara do Grupo Galpão, músicos, poetas, gente que incendiava ideias com arte.

O governo militar já havia deixado claro: o encontro estava proibido, em qualquer canto do país.

Mas a juventude, quando junta, tem uma coragem teimosa.

Já tínhamos perdido amigos para prisões, torturas, exílios.

E as universidades, sucateadas, formavam estudantes para um país que não reconhecíamos como nosso.

Restava-nos lutar. E estávamos dispostos.

O encontro seria em Belo Horizonte, no Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina da UFMG.

Lá, planejava-se a assembleia geral que selaria a refundação da UNE.

Mas como ir a um evento proibido, levando uma bebê no colo?

Dividimos as tarefas: eu iria na vigília da véspera, ele no dia seguinte.

Tudo combinado, saí com o coração apertado e o cheiro da bebe ainda na blusa, lá fui eu.

Ao chegar ao DA Medicina, a notícia era preocupante: a repressão já se movia.

As estradas de acesso à cidade estavam cercadas.

Nos ônibus, jovens eram retirados à força, presos por parecerem... estudantes. Simples assim. E, claro, houve muitos enganos.

Ali no diretório, começamos uma assembleia de emergência.

Era preciso decidir: o que fazer frente ao cerco?

Foi quando soubemos que já estávamos cercados.

E que, do lado de fora, muitos lutavam por nós, enfrentando cães, cacetetes, balas de borracha e o ardor do gás lacrimogêneo.

As negociações começaram. O reitor falava com nossos representantes, que tentavam diálogo com os comandantes da repressão.

Éramos 400. E, depois de horas de tensão, veio um suposto acordo.

Esperaram anoitecer.

E foi no escuro que ouvimos: botas marchando, cães latindo, escudos se chocando.

Um som metálico, grave, que gelava a espinha.

Parecia guerra. Mas não havia armas do nosso lado — só cadernos, panfletos, ideias.

Estávamos ali por liberdade. Pela anistia. Pelo fim da ditadura.

Naquela noite, a polícia invadiu o campus da saúde.

Ordenaram: saiam ou serão retirados à força.

Saímos. Em grupos de cinco e de braços dados, queriam que fosse com as mãos na cabeça, não permitimos.

Passamos por um corredor polonês de fardas e fuzis.

Nos colocaram em ônibus e nos levaram à Gameleira.

Ali, fomos fichados.

“Piano” — como chamavam o processo de tirar nossas digitais.

Fotos de frente e de lado, segurando plaquinha com idade e número.

Classificaram-nos: alta, média ou baixa periculosidade.

Na luta política brasileira, virei “classificação”.

Passei uma noite ali. No dia seguinte, fui liberada.

Meu coração corria mais que meus pés: precisava ver minha filha.

E a encontrei, feliz e sorridente, na casa da minha irmã.

Ela não fazia ideia do que se passava. Mas já carregava no sangue o peso leve da resistência.

O tempo passou.
As lutas mudaram de rosto, mas não de essência.
E um dia, diante da surpresa geral, nossa filha soltou sua primeira frase:

-Baixo tadura!

Sorri.
A semente estava plantada.
A luta continua!

Autoria: Neuza Lima, 24/04/2025

(*) União nacional dos Estudantes
(**) FAFICH Facukdade de Filosofia e ciências Humanas / Universidade federal de Minas Gerais

Foto:de Euler Cássia/  Acervo Jornal Hoje em Dia 
Saída de estudantes abraçados da escola de Medicina da UFMG, durante o III ENE (Encontro Nacional de Estudantes). em 1977. 


P.S. Tenho o prazer  em compartilhar com vocês esta crônica da minha queria amiga e colega Neuza Lima, escritora, cronista, e participante, junto comigo, da Oficina de Escrita Criativa ministrada pelo poeta, escritor, professor e atleticano, Ronald Claver, organizada  pela OAP/UFMG

Biografia: Neuza Lima (Neuzinha, para os íntimos), vive em Belo Horizonte desde a década de 70.
Socióloga, mãe, avó, amiga, "miitante", parceira... 
Trabalhou como professora e também como técnica em políticas públicas na PBH.
"Agora aposentada tenho tempo até para contar história. Antes, ele é que me tinha" diz ela.



2 comentários:

  1. Rivelli, que bom você publicar a crônica da Neuza. Li angustiada. Mas é preciso ler. Parabéns, Neuza!

    ResponderExcluir
  2. Maravilhosa Neuza Lima..adorei. e não vivi essa parte, tinha acabo de saircds fralda..rs....SQN

    ResponderExcluir