quinta-feira, 31 de julho de 2025

Crônica: A dona da casa




Nunca soube cuidar da minha casa. Hoje foi mais um dia de desatino. O frio me convidou para ficar debaixo dos cobertores. Fatos raros. Aqui não me lembro de ter usado tantos cobertores. Nem me lembro de ter ficado debaixo deles depois das seis horas da manhã. Mas hoje fiquei, e sob três deles. Que me espere o que tenho que fazer na casa.

Quando, na adolescência, minha mãe dividiu as tarefas da nossa casa, pude escolher a lavação das roupas. Nessa época já tínhamos, sobre o tanque de cimento, uma cobertura nos livrando do sol e das chuvas, mas nem tanto. Minha mãe me ensinava como lavar as roupas e fui adaptando com meus modos. Criei uma fórmula infalível para as roupas brancas que eu deixava de molho dentro de uma enorme bacia de cobre. Seria a mesma onde tomávamos banho anos atrás?

Mais tarde, nas repúblicas de estudantes em Juiz de Fora, também dividia os serviços entre nós, moradoras. Confesso que apaguei esse tempo da minha cabeça. Apenas resíduos na memória nada agradáveis de lembrar.

Na universidade enchia meu tempo na leitura de livros; muitos livros. Foi nessa época que conheci os tais livros-bolso e lia até dois ou três por dia. Acho que foi a maneira que encontrei para não ter que me haver com a minha solidão em meio a tantos estudantes e tantos livros técnicos. Penso que foi assim que fiquei perdida na imaginação. Eu só sonhava.

Depois veio outro tempo. Belo Horizonte me recebeu de braços abertos. Ainda posso sentir meu encantamento quando o ônibus saiu da Avenida Amazonas, entrou na Rua Tamoios e vi o prédio da Telemig logo à minha direita. Outra lembrança que me vem sempre foi a topada que dei defronte o prédio da Minas Caixa, nossa caixa econômica, na praça Afonso Arinos, de onde nascem as avenidas João Pinheiro e Augusto de Lima. Ainda posso me lembrar do enorme painel sobre a parede no gigantesco hall da Minas Caixa. (Só hoje fiquei sabendo tratar-se de uma obra do professor, pintor, ilustrador, “Álvaro Apocalypse” conforme me disse outra artista plástica, minha colega da poesia, Maria José Boaventura, ex-aluna dele.)

Minhas retinas fixaram aquelas imagens como se fossem  belas fotos de Sebastião Salgado. Era então o ano de 1980. Fui apanhada, sem piedade, pelo amor à cidade.

Em Belo Horizonte morei aqui e ali, com destino incerto. Era tão só eu, meus livros e minha história. Por conta disso, mais tarde um cunhado iria me chamar de cigana.

Um trabalho em Betim e o nascimento do primeiro filho me levaram de B.H. Ainda de costas para as tarefas da casa. Foi o tempo da maternidade e do início da minha profissão. Havia terminado minha residência em Psiquiatria no local onde desejei. Precisava trabalhar. Em Betim, mais uma vez, a casa foi ficando de lado. Gostava das roupas limpas e cheirosas, da cozinha e do banheiro cheirosos também. Então, chegou Marta, uma menina dos cabelos louros, da pele clara e dos olhos verdes enviesados. Veio do interior para morar comigo. Minha segunda filha havia nascido. Marta cuidou dela com extremo cuidado e dedicação. Mudamos novamente de casa. Agora uma casa ampla no centro da cidade. Foi só ali que me dediquei a deixar minha casa do meu gosto. Foi ali também que nasceu minha terceira filha.

Quem diria que eu construiria uma casa dos meus sonhos? Pois construí. Durou o tempo dos cinco anos da terceira filha. Marta havia se casado e outras auxiliares foram sendo necessárias. Algumas foram extremistas nos cuidados da casa e outras nos cuidados com meu filho e minhas filhas. Uma separação me levou para um apartamento no melhor local da cidade. Ali nos reconstruímos, eu e três filhos. Fiz um bazar para vender o que não cabia no apartamento. Arrecadei um pouco de dinheiro que ajudou nas despesas da mudança e desfiz de peças a mais.

Jamais esqueci o sentimento de liberdade quando percebi que todos os espaços do guarda-roupa eram meus. O sol invadia os quartos e nos trazia energias suficientes para enfrentar novos tempos. E novos tempos viriam. E novas casas viriam também.

Atualmente vivo entre montanhas de nossas Minas Gerais. Vivo na casa que construí no depois. Depois dos filhos. Depois da aposentadoria. Depois dos amores. Agora recebo visitas; faço deliciosos bolos; cuido das flores e contemplo o crescimento de novas árvores frutíferas. Lavo roupas. Leio bons livros e escrevo. E continuo bastante embaraçada nos cuidados da casa.

Com certeza jamais fui dona de casa. Com certeza tenho sido tão apenas dona da casa.

31/07/2025


Quadros, comprados numa feira, pintados por pessoas portadoras de doença mental


                                         Manacá da serra, muda florindo pela primeira vez.


Tamareira, plantada em julho de 2022. Dará frutos em depois de 40 anos.


                                                                          Minhas flores

                    "O luxo do lixo", pintado por um grande artista, também portador de doença mental.

Aqui, bacia em pedra sabão, os passarinhos bebem água e fazem fila para tomarem banho.


                   Cogumelo, feito de papel e cimento, entre mudas de podocarpo.


                                    Buganvilias alaranjadas, minha preferida.



Fotografias: arquivo pessoal

Observação: caso queira fazer algum comentário, por favor, coloque seu nome no final. 

14 comentários:

  1. Amei o seu texto! Você trouxe suavidade pro meu dia! Gratidão.
    Ione

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  2. Seus textos sempre tão bem escritos... Obrigada por compartilhar

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  3. Uma mini-autobiografia entremeada com toques de felicidade, flores e livros. Um grande abraço minha querida Tia.

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  4. E que dona da casa. Ah, essa casa encantada, perfumada pelos verdes naturais e colorida pela terra local. Plantas, flores, cafés, boa prosa e calorosa "sala" feita aos visitantes.
    Privilégio tenho de conhecer a dona da casa.

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  5. Memórias, vivências, companhias que fazem o tempo parar... Amei seu texto.

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  6. Lindo texto Rivelli,
    Idas e vindas da vida, sempre acompanhada de livros e amigas . Abração, Bianca

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  7. O seu quintal está muito bem cuidado e belo. A bacia de pedra sabão com água para os passarinhos me encantou! Eu sou mais dona da casa do que dona de casa, quando estou animada eu sou as duas! Lucimeire

    Lu

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    1. Bom dia Lucimeire. Sim, meu quintal tem recebido um tratamento e carinho especiais. Obrigada pelo comentário sempre carinhoso.

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