sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Crônica: "Holocausto Brasileiro" - CHPB - Um depoimento

                                      


Era o ano de 1978. Eu havia completado 21 anos. A escolha pela psiquiatria vinha desde sempre. Havia convivido com os loucos da minha pequenina cidade. Entre eles, muitos familiares próximos. Acho que a loucura me instigava. Meus olhos vagavam de um a outro, observando suas esquisitices e ouvindo suas palavras nuas e cruas. Tentava entender aquilo. Gostava de ouvir suas histórias.

Três crianças de uma mesma família viviam nas ruas, enlouquecidas. Jogadas fora? Eu pensava. Doía meu coração. Um dia jurei que iria estudar para ser médica e psiquiatra. Impossível jogar crianças fora, haveria um jeito de cuidar delas. Soube então que famílias de lá que acolheram as crianças. Deu casa, escola, carinho, respeito e trabalho aos adolescentes. A. C. uma menina então com sete anos, ganhou uma mãe. Não tinha mais piolhos na cabeça. Tinha vestidinho branco para ir à missa e uniforme para ir à escola.

Ainda secundarista, hoje no ensino médio, o livro “As ideias de Freud”, presente de uma prima, caiu em minhas mãos. Li o livro com avidez embora entendesse quase nada. Mas entendia e via o abandono das pessoas loucas pelas ruas. Nem sempre tinha medo dos enlouquecidos.

Um dia chegou um cadáver na casa da minha tia, perto da minha casa. Não sabia que minha tia tinha um irmão. No caixão um homem esquálido, com barba rala por fazer, poucas flores e uma história. Foi lutar na Itália, ganhou a guerra, ficou louco e foi internado em Barbacena. O hospital devolvia o corpo. Eu ainda não tinha dez anos. Outro louco, vizinho nosso, quando recebia alta em Barbacena, voltava para a casa do irmão. Ele passava várias horas durante o dia ou durante a noite, de pé, sem se mexer, como uma estátua, na praça principal de Lafaiete. Às vezes ficava agressivo e a polícia vinha pegá-lo de volta para o Hospital.

Comecei o curso de medicina da UFJF no ano de 1976 aos 18 anos. Aos 21 anos, cursando o quinto período, comecei a acompanhar psiquiatras de verdade na gigantesca Clínica Mantiqueira, num distrito de Barbacena, hoje cidade Correia de Almeida. Ali aprendi a receber os novos pacientes, a acolher os familiares e a “sedar pacientes agitados”. Ficava de plantão por 48 horas, durante todo um final de semana por mês. As anamneses bem feitas, a letra de professora, a facilidade no trato com trabalhadores e doentes e as cuidadosas prescrições foram os quesitos para que os donos da clínica me requisitassem para mais plantões. Ali conheci psiquiatra formado pela famosa escola de psiquiatria espanhola, conversei com doutores de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Mas foi com os pacientes com quem mais aprendi. Aprendi que eles queriam conversar, brincar, cantar e, sobretudo, debochar da minha crueza. Eu estava sempre entre eles.

Em finais de 1980, com as várias denúncias da Colônia de Barbacena que vinham ocorrendo nos jornais, a FHEMIG se viu obrigada a implantar reformas em todo o gigantesco hospital, incluindo estagiários de medicina em todos os dias da semana. Houve um processo seletivo. Fui aprovada. Então, em janeiro de 1981, cursando o último ano da faculdade, ainda com 23 anos, fui para o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena.

Sem carro e sem recursos financeiros eu andava de caronas ou mesmo a pé até a Assistência como era chamado o complexo dos pavilhões, da cozinha, da secretaria, da enfermaria, do necrotério, da capela e de uma casa onde nós, os acadêmicos de medicina, ficávamos. Uma campainha era usada para nos chamar caso houvesse alguma intercorrência. Não havia telefone. Não me lembro dos nomes de todos os pavilhões, mas alguns deles ainda vagueiam dentro da minha cabeça.

No pavilhão infantil era por demais doloroso entrar. Queria pegá-los todos no colo e cantar cantigas de ninar. Seus olhares pareciam ver nada. Ficavam nus, dentro de um único espaço. Alguns tentavam subir nas janelas altas e gradeadas para ver lá fora.

O Pavilhão Zoroastro Passos, talvez fosse um dos primeiros a ser reformado com a instalação de brinquedos de madeira e pneus. Eu, cá comigo, a observar os pacientes que se arrastavam no chão e não conseguiam subir nos brinquedos. Ali era o pavilhão dos aleijados.

O Pavilhão Crispim Jacques Bias Fortes era o mais distante da área central da Assistência. Ele ficava bem próximo do grande portão “dos fundos” que dava para a estrada entre Barbacena e a cidade de Barroso. Ali ficavam os “homens mais perigosos”. Alguns em celas de um metro por um. “Cuidado com aquele ali, não chegue perto dele que ele arranca seus olhos” era o aviso de uma auxiliar de enfermagem para um daqueles que ficavam nas celas. Ali estava um jovem nu, de pé, cabelos compridos, claros e desgrenhados. Lembrou-me um leão. Lembro que não gostava de ir ali.

A cozinha havia virado um SND (Serviço de Nutrição e Dietética)de última geração com mais de cinco mil refeições diárias.

Eu tinha medo do então gerente, Senhor Manoel. Porte militar, duro com os pacientes e funcionários. Havia muito falatório sobre o tanto que ele era mau. Eu tinha medo dele e não ficava na casinha durante a noite. Ia sempre para a enfermaria onde passava as noites conversando com as mulheres internas ou com as trabalhadoras.

Algumas vezes éramos chamados na Colônia, distante três quilômetros do complexo central, a Assistência. Sem ambulância, sem carro, descia a pé pedindo carona. Lá embaixo conseguia ser ainda mais tenebrosos que lá em cima. Ali centenas de mulheres gritavam, outras tantas deambulavam nuas pelos pátios e outras tantas ajudavam na rotina dos pavilhões. Foi ali que conheci Sueli e Flor de Liz. A primeira, loura, muito jovem, esbravejava pelo lado de dentro do pavilhão gradeado. Sueli me chamava atenção pela gravidade de sua voz, pelos gritos de justiça e destilava ódio contra o Sô Manoel. Flor de Liz era morena, mais velha e era uma artista cujas performances sempre exigiam que andasse muito bem vestida e maquiada. Foi nela que vi, pela primeira vez, emendar as unhas com esparadrapo. Ela se recusava a cortá-las.

Ainda hoje sinto o perfume das flores de maio que floresciam às margens da estrada de ferro que cortava a imensa área do CHPB. Lembro da pequena ponte sobre a mesma.

Já escrevi algumas crônicas sobre Barbacena.

Lembro que uma colega não suportou aquilo e, tão logo entrou, pediu para sair.

Depois de cinco décadas, tenho me interrogado sobre o porquê eu ter apagado tantas lembranças daqueles anos de Barbacena, seja dentro da Clínica Mantiqueira ou dentro do CHPB.

Não tenho respostas. Talvez, o instinto de sobrevivência sobrepujasse o que vivia lá.


27/11/2025 

P.S. Lembrei-me no depois da crônica escrita e lida que, logo após a residência médica em psiquiatria, fui convidada pela direção da FHEMIG a participar do gigantesco projeto de desospitalização dos pacientes do CHPB. Um grupo interdisciplinar de profissionais da FHEMIG ia, alguns dias em cada mês, para fazer um amplo trabalho na tentativa  de desinstitucionalizar aqueles pacientes que, por ventura, pudessem sair dalí. 


Observações: 
- A foto inicial é a capa do livro "Holocausto Brasileiro" da jornalista Daniela Arbex, lido e trabalhado pelo grupo da Tertúlia Literária de Betim.

- Esta crônica foi lida por mim durante a apresentação do livro Holocausto Brasileiro no encerramento das nossas atividades na Tertúlia de Literatura de Betim, (M.G.) nesta noite de 27/11/2025.

- Por favor, deixe seu nome no final do comentário caso queira fazê-lo.

- Fotos gentilmente cedidas pelos participantes da Tertúlia Literária de Betim cujo encontro aconteceu na noite de ontem, dia 27 de novembro, na Casa da Cultura, em Btim, Minas Gerais. 

























sábado, 22 de novembro de 2025

Crônica: Cheiro de quitandas no ar

                                        




O meio do feirado prolongado e a falta de uma rotina neste tempo da minha vida têm me deixado por muitas ocasiões mais desorientada do que, normalmente o sou. Nesta manhã não foi diferente. Decidida a não ir à academia que de certa forma me localiza no tempo e no espaço, não abri os olhos ao barulhinho deste instrumento chamado celular. Apenas estiquei o braço e risquei o dedo a manda-lo calar a bocarra.

Mas eis que o ar me trouxe o nostálgico, delicioso e inconfundível aroma dos galhos verdes do alecrim varrendo as brasas do forno de barro da casa do meu vizinho. Obá! Elas estão fazendo quitandas! Falei comigo. Levantei e fui caminhar ao longo do muro que separa nossos quintais. Queria sentir mais de perto o aroma da minha infância.

Pois bem, como não fui lá desde o início da semana para um convite ao meu vizinho, deixei de lado a vergonha que não tenho, e fui até lá. Ao chegar ali deparei com a cena que, às vezes, se apresenta. Carecia de mil fotos para mostrar o que vi ali. Senhor Joel era só felicidade e sorrisos. Na jeitosa área do fogão a lenha estavam três das cinco filhas, Adriana, Rosa e Elizângela, duas netas, duas bisnetas, a irmã mais nova, e Linda, a vizinha quitandeira de mão cheia. Era lindo de se ver. Chamei meu vizinho à parte e lhe fiz o convite. Venha almoçar conosco amanhã! A resposta foi um sim recheado de alegria. Aos noventa e seis anos, meu vizinho é um homem descomplicado. Gosta de dançar e sempre se gaba que “elas brigam e fazem fila pra dançar comigo”. Desce e sobe o nosso morrão a pé todos os dias; o que, na minha opinião, é o que tem lhe dado disposição, saúde no coração e nas pernas.

E os biscoitos! Pois fui convidada a tomar um cafezinho e comer um biscoito. Eles estão lá em cima da mesa. Uma das filhas, Adriana, minha amiga, me conduziu até a mesa. Lá estavam eles cobrindo toda a extensão de uma enorme mesa. Biscoitopolvilho, como nós mineiros falamos. Sem o “s” do plural e sem a preposição “de”. Nós emendamos as duas palavras numa só. Pois ainda ganhei dois enormes biscoitopolvilho para minhas filhas.

Numa outra mesa, próximo ao forno cheirando a alecrim queimado, várias folhas de bananeira picadas em quadrados do mesmo tamanho. Estas receberiam a massa de mais biscoitos e de outras tantas quitandas como o famoso biscoito do Padre, este feito com farinha de trigo como me explicou minha querida Suely, outra das irmãs. Para mim, a quitanda mais gostosa é a rosca doce que, agora, não posso mais saborear devido aos altos índices de glicose no meu sangue.

Os trabalhos daquelas mulheres me fizeram lembrar as fantásticas formigas operárias onde cada uma sabe sua função e a exerce com perícia. Mas aqui elas riem, falam sem parar, contam casos e botam as mãos na massa.

Meninas, obrigada pelos biscoitopolvilho, pelo cafezinho fora de hora e pela alegria contagiante de todas vocês.

Obrigada Senhor Joel!

Sexta-feira, 21 de novembro de 2025.






Fotografias: arquivo pessoal