segunda-feira, 29 de julho de 2019

Quero um galinheiro


Sempre pensei em ter galinhas no meu sítio. Houve um tempo em que minha mãe conseguia criar galinhas mesmo no pequeno terreiro da nossa casa em Lafaiete.

Lembro-me dela dentro do galinheiro queimando nosso lixo seco. Dizia que não devíamos juntar lixos pois não haveria tanto lugar onde descartá-los. Achava aquele pensamento dela arcaico e nada progressista. 

Logo depois o galinheiro virou a construção de mais um quarto e um banheiro. A família crescia e faltavam espaços para os netos dormirem quando das visitas nos finais de ano. Junto a isto os lixos da casa e do mundo aumentaram e a procura de soluções para o descarte deles passou a ser uma constante preocupação dos governantes e cientistas. Minha mãe tinha razão. As galinhas comiam pequenos restos de alimentos e nos davam o esterco para a horta. E quase não produzíamos lixos não biodegradáveis. Estávamos ainda nos anos sessenta.

Mais de meio século se passou e, somado ao problema do lixo doméstico, chegou um problema ainda muito maior. Onde e como descartar os lixos químicos, biológicos, industriais e todos os lixos tóxicos de maneia geral? Já não é mais um problema apenas para governantes e cientistas. O problema é nosso.

Sem perder de vista este grande desafio da humanidade quero mesmo é falar das minhas galinhas. Há cerca de cinco anos comprei umas dez galinhas e um galo. Já havia feito um galinheiro bem simples para recebê-las. Queria colher ovos, galar ovos, conseguir tirar uma ninhada e me fartar de recordações dos tempos de infância. Para minha surpresa, entretanto, logo foram acontecendo os imprevistos. O danado do galo cismou com umas duas delas e acabou matando-as de tanto copular com as coitadas e ficar bicando suas costas. Acabaram perdendo as penas e feriram a pele. Resultado: tivemos que sacrificá-las. E um dos meus cachorros corria de um lado para outro, ao longo da tela, até elas se cansarem e acabarem feridas. Mais galinhas sacrificadas. Acabaram-se as galinhas. E o galo virou uma saborosa panelada de galope.

Agora voltou o desejo de um novo galinheiro. O vizinho, muito habilidoso, tem construído no entorno de sua casa um verdadeiro zoológico para os dois filhos menores. A menina de apenas cinco anos
 entra no galinheiro como se também fosse uma moradora de lá. Lá, além das galináceas, tem um casal de ganso – o macho não gosta de mim. Basta eu chegar por perto para logo vir me bicar - um cabrito e coelhos.  Ou ficando passeando entre as mexeriqueiras, laranjeiras, mangueiras e outras frutas. Próximo da entrada do terreno ele construiu um canil muito ajeitado e um pequeno parquinho com brinquedos ecológicos. E é aqui que fica o menino de dois anos quando desaparece dos olhos da mãe. Meu vizinho ainda cuida da jardinagem no entorno da bela casa. 

Bem, voltando ao meu desejo de ter um galinheiro, hoje conversei com meu  construtor. Deu ideias boas. Tudo dentro dos planejamentos. Eu, calada, só ia pensando nas dificuldades para construir meu galinheiro. Lembrei-me da “Galinha da Gigi”(*) que pulou a cerca e fugiu se escondendo no terreno da casa da minha irmã. Depois de muitos dias procurando pela tal fujona eis que foi encontrada sob um ninho. Estava chocando seus ovos. Acho que é isto que eu quero. Desaparecer e encontrar meu galinheiro prontinho para eu possa tão só admirar seus viveres e chocar meus sonhos.

Pois, nestes tempos de um Brasil sombrio, teremos que encontrar saídas para nos manter bem vivos. Além disto, atire a primeira pedra, quem não precisa de outras vidas, mesmo que sejam das galinhas, para dar preenchimento às nossas faltas?





(*) A Galinha da Gigi é uma crônica escrita por mim e postada neste blog em 13/07/2017

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Enquanto assa a broa




Ela comeu um pedaço de broa na casa do irmão quando de sua última viagem a tão distante cidade. Ficou só pensando no tanto que gostou da mesma.

Morada Nova de Minas é uma linda cidadezinha na região central de Minas, às margens da Represa de Três Marias, do nosso querido Rio São Francisco. Sempre achou estranho o nome da padroeira do lugar, Nossa Senhora do Loreto. Foi procurar sua origem. Descobriu que a santa é protetora dos aviadores e com muitas histórias e lendas envolvendo a cidade de Loreto, na Itália. 

Mas não é disto que Maria Luísa quer falar embora não queira deixar de salientar os dotes culinários da cunhada. Nem da broa que a esperava para o café da tarde. Embora quisesse logo anotar a receita. Estava há muito tempo sem conseguir fazer uma broa assim. Apenas aquela de farinha de milho, sua preferida. Não se esqueceu das palavras da cunhada: “tem que colocar muito queijo. Queijo curado e dos bons”. 

Pois bem, ela havia feito uma primeira vez para receber seus familiares e foi um sucesso. Agora teria convidados para o café da tarde e, enquanto almoçava, a broa assava. E o aroma já invadia toda a casa.

Entretanto outra situação não saía de sua cabeça. Ontem, ao acaso, cruzou na rua com uma mulher que lhe deixou entre risos e lembranças. Não acreditou no que viu. 

Suas lembranças voltaram para mais de quatro décadas quando via algumas amigas tentando esticar os cabelos. Se eram afrodescendentes passavam um pente de ferro aquecido na brasa. Havia um tal de “henê”. Colocavam rolinhos e outras tantas maneiras. Era um sofrimento danado para cuidar dos cabelos. Aquelas que tinham cabelos corridos tentavam encaracolá-los com papelotes, principalmente nas vésperas das coroações a Nossa Senhora.

Maria Luíza tinha os cabelos compridos, brilhantes, castanhos claros e ondulados. Sem os shampoos de hoje, lavava-os com o que tinha às mãos. Cada dia passava o que lhe dava na cabeça. Abacate, sabão de coco, sabão caseiro. Quase vomitou quando passou babosa. O cheiro lhe deixou nauseada. Aprenderia muitos anos depois porque não gostava dos shampoos de Aloe vera. Tratava-se da sua babosa babona e fedorenta. Até que um dia resolveu, literalmente, passar seus cabelos com o ferro elétrico debaixo do papel de pão. Eles brilharam e arrepiaram. Ficaram totalmente eletrizados. Enquanto a mãe ria, ela chorava de raiva. Nunca mais quis fazer isto.

Mas a mulher com quem cruzou na rua trazia seus cabelos enrolados e cheios de grampos. Antigamente chamávamos de “tôca” a este processo de alisar os cabelos uma vez que o penteado lembrava uma touca, peça do vestuário em tempos de frio.

Maria Luísa lembrou que, nas raras vezes que tentou enrolar e grampear seus cabelos com uma “tôca” quase morreu de dor no couro cabeludo. A sensação era de que os cabelos, que deveriam ser enrolados por algum tempo para um lado e depois para outro lado, levavam junto todo o couro cabeludo que obedecia àquela manobra e ficava todo espichado. Ainda pode sentir a dor que aquela “tôca de grampos” lhe causava. Até que resolveu deixar seus cabelos serem eles mesmos. Ficaram lindos e felizes para sempre.

Agora ela fica pensando naquela mulher:

"Será que a mulher dormiu de 'tôca' e não viu o tempo passar?

Não tenho nada com isto. Ela que faça o que quiser com seus cabelos."

A broa assou e ficou muito saborosa.



18/07/2019


domingo, 7 de julho de 2019

Crônica: A VOVÓ DO DUDU


De uns tempos para cá ela vem estando muito cansada. Qualquer esforço um pouco maior no seu cotidiano já a deixa esbaforida. Deixou de criticar as ações do atual governo brasileiro – nem sequer ouvia mais as notícias de seu estado com o “novo” governador. Entretanto doía-lhe o peito cada vez que ouvia alguma notícia de violência ou ataque aos direitos humanos contra as pessoas mais vulneráveis do país. 


Nesta manhã chorou ao ver as labaredas criminosas no entorno da Aldeia Pataxó na cidade de São Joaquim de Bicas, próximo a Belo Horizonte. O medo vem sendo um dos meios usado para intimidar o povo. A violência, as mentiras, as injustiças, a força e todos os descalabros tomaram conta do país.

Um dia teve um piripaque em casa e foi levada a UPA de sua cidade. “Stress” disse o médico após constatar crise hipertensiva sem outras anormalidades. As vizinhas disseram que ela estava estranha e não dizia nada com nada. Os filhos assustaram. Ela afastou ainda mais de tudo que vinha acontecendo bem perto de si.

A tal reforma da previdência lhe deixava de cabelos em pé. O povo chileno já vinha sofrendo as terríveis consequências por terem feito tal mudança nas regras da aposentadoria. Aumentou o número de idosos desamparados e pobres. Não é possível que seu povo tão esperto não visse o buraco em que estão caindo! Lamentava ela.

Televisão ela já não via há quase um ano. Quis por bem que sua TV nova não captasse os sinais de telecomunicação da região. Optou por continuar sem ela. À noite lia seus livros ou assistia algum filme pela internet. Nada de TVs.

Mas estava atenta a cada pedaço de seu país vendido para os países imperialistas. Sentia como se arrancassem um pedaço de sua alma toda vez que ouvia falar sobre as estatais despedaçadas. Envergonhou e não quis ver o presidente apresentando as bijuterias de nióbio no encontro dos vinte países mais importantes do planeta.

Apesar do filho dizer e acreditar numa saída honrosa para tudo isto ela não tinha mais esperanças. Ele até emagreceu de tanto trabalhar, estudar, discutir e argumentar contra tudo que o presidente e sua corriola têm aprontado.

Para a vovó do Dudu o ódio e a ignorância haviam vencido os sentimentos mais nobres do ser humano. A dignidade, o amor, o respeito, a generosidade, a educação e a justiça sucumbiram. Haveria de começar tudo outra vez.

Ela que cantou “Maria Maria” via agora as Marias serem perseguidas e ultrajadas. Ela que cantou “caminhando e cantando e seguindo a canção. Somos todos iguais...” assistia agora os caminhos sombrios e emudecidos. Ela que gritou por ”Diretas já” vinha agora a jovem democracia adoecida. Ela que acreditou que “dias melhores virão” via agora um futuro sem futuro.

Enquanto ela vive tudo isto ainda consegue lembrar-se daquela noite fria quando o filho, a nora e o neto foram dormir na barraca. Dudu caminhou até ela, pegou na sua mão e a pediu para deitar com ele e sua mamãe no colchão improvisado dentro da barraca. Silenciosamente ela aceitara o convite. Não sem alguma dificuldade ela deitou num extremo do colchão, a mãe no outro e ele no meio. Ora tocava com as mãos o corpo da mãe e com os pés acariciava o corpo da vovó. Ora invertia as posições sem perder uma ou outra.


Dormiu o netinho. E a vovó ficou pensando em como sair dali. Saiu com a ajuda do filho que veio em seu socorro. Ela olhou para o menino e pensou em todas as crianças neste país tão desigual. 

Não conseguiu evitar uma lágrima teimosa.

07/07/2019