sábado, 31 de maio de 2014

Uma blusa para ela



Uma blusa para ela


   Ela conhecia o querer dela. Queria uma blusa nova. Sabia qual tecido escolheria: algodão. Sempre gostara da textura do algodão junto ao seu corpo. O tergal chegou e agradou a todos pela praticidade da lavagem, por não necessitar do trabalho odioso de passar, pelo fato de não amarrotar e pelo custo inferior ao algodão. Ela bem que tentou usá-lo. 

   Ainda se lembra das calças pantalonas nas cores vinho e preto do tal tecido americano. Não gostou. Ele era quente, feio e as cores pareciam desbotadas.

  Sua mãe gostava de costurar. Tinha uma máquina de costuras, ainda de pedal. Um presente do pai de Lucinha. Fazia pequenos remendos e, de vez em quando, uma roupa nova para os filhos menores. A menina ao lado, sempre observando. Adorava tocar o pedal e se orgulhava do controle no ritmo dos pés e das mãos com o tecido em direção a agulha. 

  Não passara despercebido à mãe o interesse daquela filha em aprender o ofício. Tratara logo de colocar as duas filhas mais novas numa aula de corte e costura.

  Lucinha adorou as tais aulas que eram dadas por uma tia muito elegante e que sabia das coisas.

   Uma vez a tia levou-a no andar de cima da casa, foram até o terraço e, lá, ela mostrou-lhe seu objeto precioso: uma luneta para ela ver as estrelas.

  -“Aquela é a estrela Dalva, o planeta Vênus. Aquela é a constelação de Câncer. Veja lá o Cruzeiro do sul. Olha a constelação de Escorpião. As nebulosas”.

   Lucinha ficou encantada. Jamais vira o céu tão de perto. Ficou pensando no tanto que sua tia chique conhecia dos astros do céu. Nunca mais deixou de contemplar as noites, aprendera as fases da lua, os nomes das constelações, os planetas, a importância da lua nas marés e pescarias, nas viagens marítimas e muito mais. 

  Em casa, sempre tiveram a folhinha “Mariana” e ela lia e relia tudo que havia escrito nela, desde receitas de bolos, santos do dia, épocas boas para plantio e colheita de um ou outro produto agrícola e tantas outras novidades. 

  Quanto mais a sobrinha se interessava pela costura e pelas historias do céu, mais a tia gostava de contar sobre o espaço e seus astros. A danada da menina aprendia com muita facilidade, gostava de saber de tudo que a tia ensinava, até de ler os livros que a tia emprestava.

  A tia era de uma cidade do interior de São Paulo e, sempre que ia lá visitar os parentes, voltava com muitas histórias da viagem. E a sobrinha ouvia tudo atentamente.

   Mas a mãe adoecera e Lucinha abandonara a costura e as estrelas para ajudar nos afazeres da casa. Entretanto, alguns aprendizados da costura, ela nunca esquecera, como a leveza dos tecidos, o caimento de cada um deles e a agradável sensação na pele em usar este ou aquele tecido ou modelo. Aprendera a importância de sentir-se bem dentro de uma roupa e que a elegância passava pelo conforto de uma roupa bem talhada.

   A menina, então com seus quase quinze anos, queria uma blusa. Não seria uma blusa qualquer. Pela primeira vez ela escolhera tudo; o algodão, as cores, uma costureira muito especial para uma ocasião também muito especial. 

  O tecido era uma bandagem, nome dado por ser parecido com as ataduras e as fraldas daquela época, mas isto não era tão importante. O que contava era o prazer da escolha. Ela vira tal retalho do tecido numa banca em oferta por uma bagatela. O dinheiro era das aulas particulares de matemática que ela deu para as irmãs gêmeas. As duas foram aprovadas e os pais, satisfeitos, pagaram prá mais. 

  Tecido escolhido, comprado e pago, lá fora ela escolher o feitio. Uma blusa de mangas compridas, afinal naquela cidade sempre fazia frio. Teria botões azuis para combinar com o azul das estampas. A costureira seria a vizinha que também aprendera a costurar e aceitou a encomenda. 

  Apesar de sua tão pouca idade, Lucinha já tinha um corpo pronto. Os cabelos e os olhos eram castanho claro. Era uma menina muito bonita. Estava apaixonada pela primeira vez. 

   O goleiro do time de futebol do bairro lhe encantou.

   Haveria uma festa na rua e, aquela blusa, ela usaria para ser vista por ele. Ficara ainda mais bonita dentro de suas escolhas. O tecido era suave e suave era ela vestida com aquela blusa. Antes fora à igreja com a mãe, condição para ir à festa.

  Um vizinho não entendia a recusa do seu pedido de namoro. Todos diziam do tanto que ele era apaixonado por ela. Saberia depois que ser amada, às vezes, poderia ser tão difícil quanto amar uma pessoa.

   Naquela noite ela estava esplendorosa nos tons azuis. Mas o seu escolhido não aparecera na festa. Seus olhos, agora, escureceram de tristeza. Era um gostar demais e Lucinha ainda nada entendia de amor.  

   Ele não a viu com aquela blusa tão dela.

   Voltara para casa antes da hora marcada pelo pai.

  Durante toda aquela longa noite mal dormida, olhava as estrelas com seus nomes e sonhava acordada. Imaginou que ele poderia ter sabido daquela blusa tão bonita, afinal a costureira era uma de suas irmãs.

   Mas ele teria vista uma blusa qualquer, desvestida dela.

   Então seu coração apertou no peito e ela chorou de amor.


Janeiro de 2014

sábado, 24 de maio de 2014

Uma história do meu pai




Meu pai nasceu em 1919. Sempre se orgulhou em dizer do nome escolhido por sua mãe. Uma homenagem ao grande lorde inglês que lutou bravamente contra Napoleão Bonaparte na famosa batalha naval de Trafalgar. O que meu pai não deve saber, penso eu, é que, apesar da vitória da marinha inglesa, o destemido almirante fora ferido mortalmente naquela batalha. Mas isto não importa para meu pai nem para as grandes histórias da sua vida.

Com seus noventa e quatro anos é um homem lúcido, alegre e cheio das lembranças de sua infância, da sua adolescência e da sua vida adulta, já enquanto pai de família, músico, político, motorista e funcionário público.

Meu pai nunca escondeu o amor pelo teatro, por Dalva de Oliveira, por Ataúlfo Alves, por Ari Barroso, por Vicente Celestino e tantos outros artistas de sua geração. Nascido quarto filho de uma prole de oito homens e uma mulher, o menino crescera fazendo pequenos mandados para sua mãe. Seu pai, caixeiro viajante pelas cidades distantes, aparecia de vez em quando para fazer mais um filho e levar o dinheiro que a esposa arrecadava na venda da geleia de mocotó que ela fazia, dos ovos e dos frangos que criava.
    
Meu pai era o escolhido para fazer as entregas, receber os pagamentos e dar o troco. Aprendeu rápido a fazer contas e nunca errava. Entretanto, se, por um lado tinha as responsabilidades de menino grande, por outro lado era o mais endiabrado e vivia se metendo em confusões. Naquela época os castigos e as sovas eram proporcionais às diabruras. E não foram poucas as varas de marmelo que minha avó quebrara nele.

No desespero da educação daquele filho, a mãe acabara pedindo bênçãos especiais ao Padre, tão amigo que era dela. Ele dera conselhos e uma ideia brilhante. O filho, já na idade para o catecismo, seria um de seus coroinhas. Lá se foi o menino Nelson ajudar o padre nas missas em latim, nas limpezas da igreja, nas comunhões aos doentes, nas extremas-unções aos desenganados, nas visitas às zonas rurais, na confecção de velas, nos velórios e por ai afora.

Minha avó ficou feliz com a desenvoltura do menino e o caminho da retidão. Mas isto era o que ela pensava. Seu filho continuava com a via sacra de artimanhas, agora bem mais esperto, conseguindo livrar-se dos castigos apontando um irmão ou primo como responsáveis por seus atos. E sempre saia bem nesta tarefa. Já era um santo de tanto conviver com a comunidade religiosa. 

E, naquele dia, deu-se um velório e a meninada queria saber quem havia morrido. Queriam ver o defunto. O filho santo-do-pau-oco da minha avó nada contou do que havia visto antes de encostar a enorme e pesada porta da igreja. Só devia deixar uma fresta para evitar a entrada de gatos, cachorros e outros animais indesejáveis àquele recinto santo. Afinal havia um caixão, mesmo que muito pobre, e uma falecida sem familiares. 

Meu pai sabia que a defunta era a Banguela. Uma mulher que vivia nas ruas, não porque seus familiares a tivessem abandonado. Fora ela que, após perder um grande amor nos seus dezessete anos, perdera também o juízo e ficava errante pelas casas.
      
Ele não tinha medo dela como os outros meninos que, era só ela aparecer nas ruas, para eles desaparecerem. Aquele pequeno almirante dava-lhe quitandas e gostava de sua loucura. Mas a mulher fora ficando entrevada e já andava arrastando as pernas. Os joelhos ficaram arqueados. Os dentes foram apodrecendo e caindo. O protético da cidade bem que lhe prometeu uma dentadura. Ela dizia que aquilo era risada do diabo e não aceitou. Era uma figura muito feia de se ver. 

Banguela morreu e meu pai soube que tiveram que esticar as pernas e amarrar os joelhos para tampar o caixão. Um coroinha vê de tudo. No final da tarde daquele dia como sempre acontecia, a meninada se acocorou na praça da igreja. Queriam ver quem havia morrido. Esperaram a noite chegar. Fizeram apostas para testar a coragem uns dos outros e lá se foram alguns ver o falecido. Vencida a primeira dificuldade para empurrar aquela porta tão pesada e barulhenta, seguiram rumo às velas. 

Então precisaram abrir o caixão. Com as pequenas mãos trêmulas alguns conseguiram desfrouxar os parafusos. Ai aconteceu o imprevisto do pavoroso. 

Os joelhos mal amarrados da Banguela dobraram e, num só golpe, jogaram a tampa do caixão para um lado e ela caiu para o outro. Só se viu menino chorando, gritando e correndo. 

Segundo meu pai, que assistiu de camarote, ainda tem menino correndo até hoje.


Observações:
1 - Peço, àqueles que fizerem comentários, que  escrevam seus nomes e de onde residem. Obrigada.

2 -Versão em inglês: 
http://www.contosderivelli.com/2015/09/my-fathers-name.html

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O HOMEM QUE AMEI



           O homem dos meus sonhos 
       era doce e amável,
       inteligente e gentil
       e  me escrevia cartas de amor.

       O homem que me veio 
       era doce e amável,
       inteligente e gentil,
       e me escreveu cartas de amor.

       O homem que desejei 
       era bonito e elegante,
       forte e companheiro.

       O homem que me veio 
       era mais bonito,
       mais elegante, 
       mais forte e companheiro.

       O homem que dizia me amar 
       era misterioso,
       fugidio e distante .

       O homem que amei
       era igual a todos os outros homens.

       Mas era o homem que eu amei.

       O homem que amei não existe mais.
       Ele vive impermeável,
       dentro de um outro homem.

      Este outro homem 
      feito do amor que era meu.


sábado, 10 de maio de 2014

A MÃE



A    MÃE


  Mais uma noite de plantão e lá vou eu atender uma paciente encaminhada dos confins das Minas Gerais.

  Antes de convidá-la ao atendimento leio os dados de seu prontuário, uma rotina minha que sempre considerei imprescindível. Vejo que, junto ao mesmo, está anexado um relatório. A referida paciente já era esperada naquele dia, uma vez que o município de origem fizera o contato acerca da possibilidade de vagas para a internação da mesma.  

  Leio o documento, feito com profissionalismo, objetividade e muito cuidado, então vou até a nossa mulher e a convido a entrar no consultório daquele hospital onde trabalho há mais de uma década. Era quase meia-noite.

  Tratava-se uma moça muito jovem, acompanhada da mãe que também é convidada a participar do atendimento. 

  Maria da Conceição era seu nome. Estava tranquila, lúcida, bem ambientada e cooperativa com a anamnese, embora um pouco desconfiada. Disse-me ela que estava "desprevenida" quando aquele povo fora visita-la e, por isto, sua filha de 5 meses estava daquele jeito.

  -” Qual jeito ?”  Perguntei-lhe.

  Ela esquivou-se e me disse que já estava tudo bem. 

  Contou-me então que eles a estavam molestando, chamando-a de “Maria Sujeira”, expondo suas intimidades e degradando seu corpo. Ela já não suportava mais tantos insultos e desaforos. Trancou-se dentro da casa que não era sua. E, de lá, não saiu mais. 
  
  O povo ao redor observou a casa fechada e os esburacamentos  progressivos nas paredes daquele que não era seu lar. O dono da casa  chamou por sua inquilina, sem sucesso. A vizinhança tomou conhecimento e alardeou. 

  Os dias foram passando naquela agonia para todos.

  -E a criança lá dentro? - Interrogavam alguns.

  -O que será que ela tá fazendo com a menina ? - Pensavam outros.

  Maria da Conceição passou a ameaçar quem tentasse aproximar-se. Eram gritos e invocações aos demônios para que eles a deixassem em paz. Atiravam-lhes pedaços de tijolos, telhas quebradas e outros objetos que encontrava pela frente.

  A prefeitura da localidade ficou sabendo do caso e convocou reunião naquele mesmo dia com os órgãos competentes. 

  Havia uma mulher enlouquecida e uma criança em cárcere privado. Teria que haver uma solução e com a devida urgência que o caso exigia...

  E ali estava Maria da Conceição a me contar sua desventura.

 Mas outro caso, ao lado, também ia aparecendo. Meus olhos dançavam, ora para aquela que contava sua história e, ora para a outra, a mãe. 

 Esta permanecera alheia a tudo e todos até então. 

 Debruçada sobre a mesa, quase encostando-se no verso do monitor onde eu anotava aquele trabalho. De costas para sua filha. Enquanto aquela falava, esta fazia lentos gestos com as mãos. Eram amplos movimentos circulares ritmados como se obedecesse notas musicais. As mãos andavam da mesa ao chão e deste às paredes e voltavam à mesa, ao chão, à parede ... 

  Não levantava a cabeça que continuava abaixada ou em direção aos caminhos que suas mãos percorriam.

  Observei que a mulher usava um pedaço de tecido esgarçado como lenço que tentava conter seus cabelos desgrenhados e volumosos sob uma pretensa boa aparência. 

  Ela, certamente não ouviu uma só palavra do que havia sido dito ali dentro. Era só ela com ela.

  Já nem sabia para qual delas eu olhava ou atendia.

  Olhei para dentro de mim e viajei nesta hora com Guimarães Rosa, com “Sôroco, sua mãe, sua filha”.

  Então chamei aquela mulher-mãe pelo nome; ela me dirigiu um olhar doce e abriu um sorriso de contados dentes.

 Ganhou coragem, levantou-se, contornou a mesa acotovelando-se nela, bem junto a mim, apontou a tela ligada e arriscou a pergunta:

 -Isto aí é que é um computador?


06/05/2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Vozes de Marias

Era manhã do dia sete de setembro, data em que o Brasil celebra sua liberdade. De repente escutei uma música que não era o hino da independência. Uma música cantada ao vento, saída da alma, melodiosa e em altos brados retumbantes... Também não era o Hino Nacional. Atentei serem louvores bíblicos. O som enchia todos os espaços no entorno. Busquei, em vão, localizar aquele canto. Na verdade, queria mesmo era localizar o cantador. Tarefa sem sucesso. O som se espalhava por toda parte, reverberava por todos os lados.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

PALAVRAS E CARTAS






Nunca consegui me relacionar bem com as palavras faladas. Por isto ficava atenta escutando as pessoas. Achava aquilo de falar uma arte. 

Mas eu precisava falar. Era impossível ficar calada e eu gostava muito de falar. Entretanto as palavras me traíam e eu acabava fazendo uma grande confusão. Eu sempre abria a boca na hora errada, com as pessoas erradas, no local errado e falava tudo errado.

Muitas vezes eu tropeçava nas palavras, o tombo era inevitável e deixava profundas cicatrizes. Então eu ficava acabrunhada de tanta besteira que falava e me recolhia.

Se eu tivesse que dar uma resposta ela certamente sairia ao avesso. Outras vezes eu caía das minhas próprias palavras e assim era uma queda atrás da outra.

Passei a ficar cada dia mais calada. Aprendi a escutar e a conversar comigo mesma. Viajava e tagarelava com meus pensamentos.

Mas nem tudo estava perdido, eis que me surgem, milagrosamente, duas saídas: as palavras escritas e as cartas.

Na minha infância meu pai comprava muitos livros e, antes mesmo de aprender a ler, eu ouvia muitas histórias lidas e até representadas por ele ou por minha mãe.

Aos treze anos, no colégio, participei de um júri simulado e nosso réu era o ex-presidente Getúlio Vargas de quem eu nada sabia. Coube a mim a defesa. Recorri à biblioteca municipal e li tudo que me caíra às mãos. Conversava com meu pai que fora um grande admirador de suas ações junto aos brasileiros.

“Minha filha foi ele quem criou a carteira de trabalho, foi ele quem criou e instalou a Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, em Volta Redonda, foi ele quem criou as leis trabalhistas, foi ele quem instituiu o voto feminino no Brasil e muito mais. Ele era chamado de pai dos pobres”.

Meu pai falava tudo isto se orgulhando daquele que para ele havia sido o melhor presidente do Brasil, depois de Jk "é claro" apontava ele. Mas eu precisava saber muito mais. Eu precisava saber o que ele deixou de fazer ou o que fizera de errado.

Então meu pai tivera uma grande e salvadora ideia. Pediu que eu escrevesse uma carta a um amigo advogado que o sabia getulista ferrenho. Expliquei o meu trabalho e pedi ajuda.


A resposta viera de imediato e os jurados absolveram meu cliente por unanimidade. Daí em diante passei a ter sempre uma carta nas mangas.

Então comecei a escrever cartas, muitas cartas. Cartas para minhas amigas, cartas para meus irmãos que já haviam saído de casa, cartas para artistas de televisão, cartas para quem te quero. E assim me reconciliei com as palavras, senão faladas agora escritas. Outras dessas cartas também fizeram histórias.

Aos dezessete anos, logo que saí de casa para morar em outra cidade, escrevi para minha mãe dizendo-lhe da dolorosa sensação de que eu jamais voltaria a viver com ela e minha família. A tristeza que senti diante daquela constatação era imensa.

Dois dias depois de colocada tal missiva nos correios gastei o parco dinheiro que havia levado e voltei à minha cidade. Cheguei a minha casa antes da carta. Fazia-se necessário poupar minha mãe daquela dor tão avassaladora. Guardei a carta, intacta, e o tempo encarregou de perdê-la.

Mas não perdi o interesse pelas cartas, elas constituíram uma maneira de eu comunicar com o mundo sem tropeçar e cair das palavras. O gosto por elas espalhou-se e eu passei a se convocada a escrever cartas de todo jeito.

Passados alguns anos, já quase na reta final de meu longo curso, fui morar com uma colega que viria a ser minha grande amiga e afilhada de casamento. Era uma vila com todas as casinhas iguais, por onde não circulavam veículos. Havia ali uma tranquilidade aconchegante.

O distanciamento afetivo dos meus familiares havia sido acomodado. Mau sinal. As cartas tornaram-se raras. Minhas irmãs haviam se casado e uma delas fora para São Paulo.

Eu estava deveras sozinha.

Então, comecei a escrever cartas para mim... Tornei-me destinatária e remetente de uma só vez. Fiquei amiga de mim.

E foi assim que, na solidão dos dias longos, eu esperava pelas minhas cartas.

Ainda hoje escrevo cartas...


Madrugada de 18/04/2014