sábado, 31 de julho de 2021

Crônica: Abelhas, andorinhas, tico-tico-rei e rolinhas

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LV)

Sempre fui alérgica a picadas de insetos. Com os anos passados a pele muito branca deu de ficar ainda mais susceptível a tais reações. No inverno são blusas e meias a me protegerem das picadas. No verão é um sofrimento só. Repelentes servem de perfumes para atrair os danados. Cremes antialérgicos fazem parte das várias compras nas farmácias.


E vejam o que ouvi, recentemente de um colega, sobre sua mais nova aquisição. Uma colmeia de abelhas nativas. Não contente com a novidade contada, insistiu para que eu também criasse tais abelhas no meu sítio.

- “Sou alérgica a picadas. Imagine picadas de abelhas!” Retruquei com meu colega.

- “Elas não têm ferrões. São nativas. Não são as africanas.” Era ele de novo.

E o assunto continuou com as abelhas já zunindo em torno de mim.

Lembrei de um dia, já bem distante no tempo, durante um almoço num restaurante campestre, quando eu ainda tomava refrigerantes. Ao beber o resto de Coca-Cola deixada na latinha pelo meu filho fui picada por uma abelha africana que se negou a dividir o resto comigo. A danada estava lá dentro. O ferrão alojou na ponta da minha língua. Não fosse a presença de um colega médico e a pinça na bolsa de uma convidada e eu teria ido parar no hospital. Imediatamente o rosto ganhou o aspecto de uma melancia. Vermelha e gigante. Comprimidos de antialérgicos apareceram de várias bolsas por ali. O proprietário do restaurante veio em auxílio e me encaminhou para uma salinha de primeiros socorros.

Eu e as abelhas nunca nos demos bem. Elas para lá e eu para cá.

Entretanto aconteceu um imprevisto por aqui. A casinha charmosa onde coloco diversos grãos misturados com fubá grosso para atrair os pássaros da região, foi dominada pelas abelhas. O jardineiro alertou: “a senhora não pode colocar fubá. Tem que ser canjiquinha. Vem cá para senhora ver as abelhas carregando o fubá nas patas”. Lá fui eu, corajosamente, ver a cena. Dezenas de abelhas, operárias, transportando o fubá nas patinhas. Nenhuma sobra para os passarinhos que não se aventuravam a disputarem a comida. Teriam medo, como eu, dos ferrões das africanas?

Outro dia fui surpreendida com um tico-tico- rei bicando o chão, debaixo da casinha. As rolinhas levantam suas asas e rodam a baiana. Conseguem subtrair das voadoras alguns grãos. Por alguns segundos elas espantam as ditas. Os canários da terra sumiram. E hoje, enquanto fico defronte a este escrevinhador digital, vejo andorinhas dividindo a bandeja do fubá com as abelhas. Corajosas estas avezinhas ligeiras.

Ainda com muito receio delas, já estou me acostumando com essas tais. Coloco a mistura com elas farejando em volta. E não me picam. Arredam para receber o manjar.

Será que elas já me conhecem? Ou será que meu sangue já não é tão nobre?

Por essas e outras já avisei para os vizinhos:

“Caso alguma delas resolva me estranhar, corram comigo para o PA senão poderei morrer sem ar.”


Ilustração: desenho feito por meu neto, Eduardo, de cinco anos.

P.S.: E, enquanto organizo esta publicação, minhas mãos foram picadas pelos tais mosquitinhos invisíveis. Já estão vermelhas e com pruridos intensos. Oh! My God


30/07/2021



O Carcará

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LIV)

 





O Carcará

Lá estava ele. Pomposo. Equilibrando na estaca da cerca. Seus olhos de águia e seu faro de cão não perderiam a suposta presa.

- “Vejam lá o carcará! Ele é muito bonito”. Assim gritou o homem que o mostrava ao filho pequeno.

Grande e imponente carcará – pensou sem dizê-lo ao menino.

- “Ele está procurando sua namorada”. Respondeu o menino.

E o carcará, sem dar bolas para pai e filho, voou pela campina seca do inverno. Com certeza encontrou uma apetitosa presa. Um rato. Um preá. Um ninho cheio de filhotes de canária do campo. Sem culpa ou piedade o carcará devorará a todos que cruzar seu olhar.

Assim são os predadores, sejam eles animais irracionais ou sejam homens e mulheres à caça de outros limites sem lei. O prazer subjugando a honra e a lei.

- Pai, acho que o carcará encontrou sua namorada. Agora, vão viver felizes para sempre.

25/07/2021






(Tarde de domingo com o filho, a nora e o neto de cinco anos no Campus da UFSJ - Ouro Branco - MG)


Fotografia: "Não é um carcará, mãe" informou meu filho para minha tristeza.

sábado, 17 de julho de 2021

Devaneios - 1

 

“De que pode servir calar, quem cala nunca se há de falar, o que se sente? Sempre se há de sentir, o que se fala!”. 


Gregório de Matos foi poeta brasileiro. A figura mais importante da época colonial. O maior poeta do barroco brasileiro. Por suas críticas à sociedade baiana, recebeu o apelido de "Boca do Inferno" .Gregório de Matos nasceu em Salvador, Bahia, no dia 23 de dezembro de 1636. Filho de pai português e mãe baiana, frequentou o Colégio da Companhia de Jesus. Foi estudar na Universidade de Coimbra. 

Em 1661 já está casado e formado em Direito. Neste mesmo ano, é nomeado juiz em Alcácer do Sal, no Alentejo. Volta à Salvador, nomeado procurador da cidade, junto a corte portuguesa. Fica viúvo e casa-se novamente. Além de grande poeta, fez também um trágico retrato da vida e da cultura baiana do século XVII. Como não havia imprensa no Brasil Colônia, seus poemas tiveram circulação escrita e oral. 

Sua produção poética pode ser dividida em três linhas: satírica, lírica e religiosa. Seus poemas líricos e religiosos revelam influência do barroco espanhol. Sua poesia satírica é do tipo que ataca sem compostura, toda a sociedade baiana, da qual ele se sentia um censor e uma vítima. Por suas críticas ferinas, recebeu o apelido de "Boca do Inferno".

Em 1694, por suas críticas violentas e debochadas às autoridades da Bahia, é degredado para Angola. Em 1695 recebe permissão para voltar ao Brasil, mas não para a Bahia. Vai viver na cidade do Recife. Gregório de Matos Guerra morreu no Recife, no dia 26 de novembro de 1696.

Gregório de Matos não publicou nada em vida. A totalidade de sua obra se manteve inédita, até quando Afrânio Peixoto a reuniu em 6 volumes, publicados no Rio de Janeiro, pela Academia Brasileira de Letras, entre 1923 e 1933, sob o título de "Obras de Gregório de Matos".


Devaneio 1: 

"Minha palavra vem do outro e a mim cabe a dor em não dizê-la."




sexta-feira, 2 de julho de 2021

Conto: Um homem e uma mulher.

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - LIII)


             


- Ela me acompanhava a dois passos atrás como se não houvesse me beijado na boca logo na esquina de cima. Resolvi mudar de rumo no final daquela tarde. Então dobrei a próxima esquina a esquerda. Subi a ladeira. Cai na praça Tiradentes. Ela atrás de mim. Atravessei vagarosamente dando tempo para que ela continuasse a me seguir. Desci em direção ao quarto alugado nos fundos da República dos Amores de Marília. No caminho passei no armazém do Sô Tonico. Comprei, na caderneta, duzentos gramas de mortadela, pão sovado e um pacote de Tang de pêssego, meu sabor preferido. Seria um lanche improvisado caso a moça resolvesse ficar comigo. Não a vi ao sair do armazém. Pouco depois lá estava ela. Logo atrás. Tinha desaparecido por alguns minutos. Não sei se eu estava ou não gostando daquele jogo de esconde-e-aparece. Mas, certamente, gostaria muito que ela me acompanhasse até o quarto.

Foi assim. Ela entrou logo depois de mim. Atravessamos todo o corredor lateral da casa até minha suíte barroca. Ofereci uma cadeira junto a uma pequena escrivaninha naquele espaço solitário que mantinha para imprevistos. Ela sentou com naturalidade. Ficou me observando. Preparei o suco com água mineral do frigobar. Abri o embrulho dos pães e da mortadela. Ela continuava calada. Eu também. Fizemos nosso lanche como velhos conhecidos.

De repente perguntei:

- O que você quer de mim? Quem é você? Por acaso já nos conhecemos? Confesso que tenho gostado de saber que uma bela mulher anda me perseguindo por essas ruas e ladeiras.

Queria saber de onde ela havia surgido. Na minha ânsia de controlar a situação quase tropeçava nas minhas palavras. Sentia desesperadamente que, se continuasse o interrogatório, a perderia. E eu não queria perde-la. Ela já tomava conta dos meus pensamentos e dos meus desejos.

Roberto continuava matutando e conversando consigo mesmo. Estava em Ouro Preto havia mais de vinte anos. Nunca vira aquela mulher por lá. Era professor de introdução à filosofia no IEF da cidade. Conhecia quase todos os alunos e alunas. Não era uma delas. Mesmo porque ela aparentava ter mais de trinta anos.

Chegou a pensar que, na sua triste solidão após desfeito seu casamento de quase quinze anos, algum amigo quisesse ajudar ajeitando-lhe uma companhia.

Os pensamentos faziam festa na sua cabeça. Ele passou a contar os dias para esperar por ela.

Um dia, estando no intervalo das aulas, pegou o celular e viu uma chamada não atendida. Um número desconhecido. Não deu atenção. No meio da aula, veio a dúvida.

- Seria ela? Mas não trocamos nossos contatos.

Logo após a aula retornou à ligação. Era ela. Jamais deixaria de reconhecer a voz pausada e suave daquela mulher.

- Meu carro estragou na chegada da cidade. Poderia me ajudar?

Naquela noite conversaram muito. Estava casada. Tinha dois filhos. Vivia na capital. Conhecera-o numa videoconferência quando foi convidado a falar sobre Alberto Camus. Ela já havia lido dois de seus intrigantes livros. Queria saber mais acerca do escritor franco-argelino premiado com o Nobel de Literatura. Não perderia a conferência.

Através da tela sentiu algo no professor. Queria conhece-lo. Conversar com ele. Procurou informações. Encontrou-as poucas. Não desanimou. No final de alguns meses, apaixonada com o desconhecido, foi encontra-lo vagando pelas ruas ouro-pretanas.

Naquela noite ela o convidou para dormirem no hotel onde já havia feito as reservas. Uma luxuosa suíte os aguardava. Uma fina garrafa de champanhe. Jantar sofisticado. Luz de velas. Ela havia preparado tudo com o apoio da recepção do hotel.

Mais tarde, enlevados pela bebida, ela beijou-lhe a fronte. Acariciou lhe os braços. Suas mãos brancas deslizaram pelo corpo negro de Roberto. Isto o deixou sem palavras. Fechou os olhos e sentiu. Apenas sentiu.

No meio da madrugada ela partiu. Roberto nem percebeu que ela havia ido.

Mudou o número do seu celular.

Ainda hoje Roberto sonha com aquela mulher que levou embora seu coração.

Uma alma solitária caminha pelas ruelas de Ouro Preto.



Fotografia: Arquivo pessoal - Café Havana em Haia (Holanda) 2018

01/07/2021