terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Crônica: Um agricultor/escritor

                       

                            


No final do ano passado, 2022, conheci uma pessoa que muito me chamou a atenção. Estávamos numa Primeira Mostra de Arte e Cultura na cidade de Mário Campos, onde moro atualmente e éramos expositores de “nossos talentos” no caso as escritas. 

Éramos quatro escritores convidados. Um jovem portador de sofrimento mental grave, acompanhado de seu pai, que levou vários poemas e teve uma excelente interação com todos da feira. Outro homem, um adulto jovem, que ornamentou seu espaço, cuidadosamente, com flores. Um terceiro homem que já havia conhecido num Café da cidade quando apresentava seus dois livros já publicados. Naquele dia comprei os dois livros e devorei a leitura de um deles tão logo cheguei em casa. Deliciosos contos à beira de um fogão a lenha. E eu com meu livro autoral e outro livro de coletâneas onde tive participação.

Após as apresentações ficamos ali por perto a falar um pouco de nós e de nossos trabalhos nas escritas.

O autor dos livros “De um rabo de fogão” e “Sem dó e sem piedade” é de Brumadinho, é professor, estudioso e com formações superiores em administração de empresas, teologia e licenciatura em matemática.

O outro auto intitulou “um agricultor/escritor”. Presenteou-me com seu livro “Reflexões cotidianas” e falou do grande desejo de continuar escrevendo. Nascido em Mário Campos onde trabalha como mais um agricultor da cidade que é responsável por mais da metade das verduras consumidas em Belo Horizonte. No seu livro ela fala de Bonfim, cidade onde cresceu como forasteiro: “Perambulei pelo território amado em seus caminhos suaves, degustando sua primavera em flor e perfume. Em tuas águas correntes, entre imóveis pedras, purifiquei-me de maneira sublime.”

Obviamente que a história desse agricultor me chamou atenção. Sua vontade de traduzir em palavras aquilo com o que lida no seu dia a dia, a natureza, faz dele um sujeito inquieto. Ou o sujeito inquieto que ele carrega faz dele um escritor agricultor.

Se eu pudesse dizer algo para ele, como nos propõe a oficina de escrita desta semana, diria tão só, “continue semeando e colhendo. Leia bons autores e bons livros e nunca deixe de escrever”. Penso que já o disse, atrevida como eu só, pois na dedicatória do seu livro para mim, assim ele escreveu:

      “Para Maria do Rosário,

        do menino livre e que voava nas letras.

        Me conforta tuas palavras e eu as levarei

        No profundo da minha gratidão” (10 de dezembro de 2022)

Mal sabe meu novo amigo que ele já é um escritor-agricultor.


(27 de fevereiro de 2023)


"Terra que amo...cio que alimenta"

                              "Ajeitar o colo da terra"

           

               
                    "Penso, vivo, amo...logo existo"


Foto de abertura é a capa do livro, "Reflexões cotidianas" de Ernani Silva Campos, produtor rural e escritor de Mário Campos, M.G.

Fotos e frases gentilmente cedidas por Ernani Silva, nosso agricultor - escritor.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Conto: UM POBRE HOMEM RICO

               


A Cherokee azul marinho comprada recentemente faria parte dos novos fetiches para a conquista de uma mulher. 

Um primeiro convite já havia sido negado por ela.

- Comer peixe num boteco na periferia?!

Seria demais para ela que nunca arredava pé do seu confortável apartamento no centro da cidade. Uma amiga vinha tentando aproximar os dois. Naquela noite ela percebeu que as cinco convidadas eram belas mulheres. Por um lado, sentiu-se envaidecida por ser uma delas. Por outro lado, percebeu a artimanha. O amigo do marido, patrocinador da festa, iria escolher uma nova namorada.

Ela negou o convite para o tal peixe frito. No depois avaliou que a negativa nem se deu pelo prato na periferia. Na verdade, se deu porque não queria um romance iniciado na exposição de mulheres como se fosse um leilão de vacas holandesas.

Passado algumas semanas a amiga ligou. Contou que ela havia sido a escolhida pelas palavras elogiosas, pela grande amizade e pela alegria demonstrada na noite do aniversário.

Rendeu-se ao tal peixe e se deliciou com a periferia. Um novo convite viria a seguir. Varias ligações durante a madrugada com palavras mudas. Até que parou de atendê-las. 

Um convite para um passeio no tal carro novo e lá se foi ela para uma cidade vizinha.

Olhava furtivamente para o homem atrás do volante. Quantos anos ele teria? A princípio não entendia sua forma de usar as palavras. Parecia que elas vinham truncadas, a serem decifradas. Ele sorria muito. Ela calada, encolhida, desconfiada, olhando para fora do carro. Num dado momento seus olhos fixaram nas mãos que conduziam o veículo fetiche. Duas grandes mãos, cheias de dedos, peludas e gordas. Os anéis quadrados de ouro deslizavam pelos dedos assim como pesadas pulseiras e correntes de ouro chapado. Tudo ali era puro ouro dezoito quilates. “Donde será que vinham tanto ouro?”

- “Mamãe do céu! Não posso nem imaginar essas mãos acariciando meu corpo tão cheio de curvas e tão bem feito. Acuda-me senhor!”

Era ela mais preocupada com o peso das mãos peludas do que preocupada com o peso dos ouros ornando o homem ao seu lado

Arrepiou diante de tal pensamento. Tudo nele era quadrado, concluiu ela depois daquela primeira investida. As mãos, a barriga, a cabeça, a cara, o corte dos cabelos, até seu carro. Quem seria aquele homem? Arriscou algumas perguntas. Respostas truncadas e quadradas.

A pizzaria num charmoso chalé quadrado na cidade aliviou o clima. O jovem garçom veio atender.

-"Marcos, deixa que esse casal eu faço questão de atender." Seria o gerente ou o proprietário, pensou ela.

Pizza escolhida, uma cachacinha "cortesia da casa", cerveja para ele e suco para ela.

A exuberância do lugar, o requinte da casa com pé direito alto, os móveis quadrados, os talheres de prata sem curvas, os pratos quadrados faziam do lugar uma escolha sofisticada bem diferente do boteco com peixe na periferia.

Terminada a pizza regada com poucas palavras dela e muita alegria dele, o gerente, pediu licença e aproximou.

- “Então, gostaram da pizza? Eu mesmo fiz questão de prepara-la para vocês. Afinal não é todo dia que tenho a honra de receber o proprietário desta casa aqui e em tão bela companhia.”

A mulher escutou aquilo. Perguntou se era verdade acerca da casa. Diante de um “sim” displicente continuou com suas indagações. A simplicidade do homem além do estilo bronco dentro do seu quadrado deixavam muitas dúvidas.

Depois dali ele deu sinais de que queria esticar a noite. Ela, ainda traumatizada com as mãos do Shrek, inventou uma desculpa com elegância e firmeza.

O convite para uma viagem à praia deixou-a, ao mesmo tempo, temorosa e desejosa. Aceitou. Saíram na madrugada de um dia qualquer.

Ele demonstrou um exímio motorista. Depois de um almoço numa sofisticada churrascaria à beira da estrada, sugeriu que ela dirigisse. Deu grandes risadas. Elogiou a segurança que ela transmitia conduzindo seu quadro azul marinho.

Ao anoitecer chegaram numa praia quase deserta. Uma casa num luxuoso condomínio aguardava por eles.

- “Fizeram boa viagem doutor?” Era o zelador da casa que aguardava por ele.

Depois de um breve descanso ele preparou um delicioso jantar para dois. Um vinho para ela e cervejas para ele. Riram muito. O tinto executou o milagre. Numa enorme cama quadrada as mãos do Sherek percorreram as não quadradas curvas da mulher.

Foi uma noite inesquecível.

Na manhã seguinte ela se vestiu para o mar. Ele, raivoso de ciúmes, brigou com ela. Não suportou negar sua idade avançada e, no seu quadrado azulão, voltou para a estrada. Deixou-a só. Ela, já apaixonada, chorou no mar. Voltou para a casa aberta pelo zelador e começou a ler “O Senhor dos Anéis”.

Tempos depois soube que ela fora tão só o vértice de um quadrado amoroso. A amiga, cujo marido falido e melhor amigo do Shrek, era amante dos ouros do mesmo. Precisava de outra mulher para não trazer desconfianças ao marido.

Assim se fez o quadrado amoroso dourado.

(20/02/2023, segunda -feira de carnaval)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Olhos de Lorenzo




Para Lorenzo

Ainda não sei para onde vai toda a água que cai do céu e escorre pelas telhas da minha casa e de todo seu entorno. Mas sei que aquele menino tão lindo e tão gentil nem percebeu que, ontem no tardar da noite festiva, bem no meio do estacionamento de um grande pequeno “mall”, sentou-se ao meu lado.

Um sorriso daqui uma brincadeira dali e eles não paravam de correr, de sentar, de rir e de começar de novo. A coleguinha, amiga de sempre, não renunciava aos convites de mais folias. De repente, como quem não quer nada, o menino aproximou um pouco mais. Convidei-os a ver uma mágica que eu sabia fazer. E pronto. A folia continuou. Mais tarde o menino sentou ao meu lado novamente. Desta vez, sem se dar conta, encostou seu corpo no meu ombro. Enquanto eu lhe transmitia amparo, segurança, respeito e demais coisas de avós, o menino me passava, por osmose, sua folia, sua alegria e vitalidade. 

Minha noite estava salva. Nada mais seria preciso. 

Fui dormir e acordei menina de novo.

09/02/2023



Desenhos: feitos por Lorenzo para ilustrar a cartinha que lhe enviei.

Foto: gentilmente cedida por Lorenzo

Comentário do mestre  da Oficina de Escrita em B.H., o poeta e escritor mineiro, Ronald Claver:
"Lorenzo é o espelho, só ternura, o menino que nos faz crescer e descrescer. Lorenzo é a própria resposta de vida, muito bom e terno o texto. Texto de se guardar no lado esquerdo do coração, nos olhos que vislumbram nuvens de bem querer."

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Conto: Querelas com um Pacífico

 



- “Por que seu nome é Pacífico?”

Nas minhas memórias de estudante de geografia do ginásio e do científico, você foi definido como algo cheio de terror, de monstros marinhos e de profundezas abissais. (Até me lembrei agora do National Kid, super-herói japonês que saía voando de dentro de você. Ele vinha proteger as crianças e o planeta Terra. Será que ele morava nas suas águas profundas?)

- “Por acaso você sempre foi assim, paradoxal, contraditório?”

Deveria ter outro nome. Talvez um nome que delatasse os terríveis animais marinhos que vagam por suas profundezas.

Pacífico coisa alguma!

Suas arraias assassinas espetam os homens e os matam com dores absurdas e hemorragias, cobras-dragões - essas foi meu neto quem me apresentou no seu videogame novo - seus tubarões-martelo devem martelar as presas até estraçalha-las, suas gigantescas orcas que derrubam até navios. Chega! Não quero mais saber de seus habitantes.

Ainda tem os maremotos! E as ondas gigantes! E as tsunamis engolindo cidades, vomitando seus destroços e suas populações!

- “Ah, Oceano Pacífico! Faça jus ao seu nome e aquiete-se! Por favor! Não vê que tem uma avó murchando de saudades do neto que foi morar numa de suas ilhas? Como conseguirei vencer todos esses temores de que me falam sobre você? Como voar em cima de suas águas escuras e aterrorizantes?”

- “Pois bem! Está decidido. Viajarei. E nem precisa mais mudar seu nome. O dicionário me disse que:

- Pacífico enquanto aquele que ama ou almeja a paz”


Assim também sou eu: uma mulher aguada que sempre ama e que morre de medo de contendas.

09/02/2023

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

DA VOVÓ SAUDOSA - UM SONHO

 

Estávamos numa praia muito esquisita. De repente o sol desapareceu, ventos fortes e uma garoa fina atingiam as pessoas que ficaram aterrorizadas. Corri procurando meu neto. Abracei-o e o beijei. Então ele me disse:

- "Vovó você vai ter que me dar um beijo para cada dia que ficou longe de mim."

06/02/2023

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Conto: Fui numa festa esta noite


A pequena cidade estava em polvorosa. Aquela festa santa era aguardada o ano inteiro e pensada desde o final da festa do ano anterior. Povoada por  toda a gente do lugar. Minha ansiedade e eu estávamos a postos. Olhos, boca, braços, ouvidos. Era preciso antecipar os fatos para que nada saísse fora do esperado.

Tia Nini comandava tudo na casa paroquial. A louça branca de porcelana iria passear pelas mesas rodeadas de padres. Os motoristas comeriam noutra mesa também cheia de deliciosos pratos e sucos das frutas do imenso quintal. Talvez esta fosse ornada com as imensas bacias esmaltadas e pintadas de flores. 

Meus pensamentos vagueiam perdidos entre pessoas por todos os lados e de todos os tempos. 

De manhã a missa. À tarde a procissão. À noite rodas de conversas. Rodas de violões. Vozes ecoando pelas montanhas e pelos tempos. A voz mais bela e potente ainda é da Maria Helena do Hely. Será que os dois violeiros são seus filhos?

Eu continuava perdida. Levantava a cabeça entre a multidão procurando... Nem sei o quê. Vi Tia Nini e seus mandos dentro de mim. Um sorriso farto ou uma palavra dura poderiam sair dela. Imprevisível. Mas sempre presente. Não deixava espaço vazio. Tia Nini costurava, cozinhava, fazia doces, comandava as quitandeiras, colocava flores pela casa. Para mim Tia Nini era uma artista. Tudo girava em torno dela, assim podia-se pensar. Mas tudo tinha um fim. Prover a casa paroquial do silêncio necessário para que o padre, seu irmão, pudesse ler o breviário no sossego de seu quarto. Prover a casa paroquial da assepsia santa. Ali só o perfume das flores; ali só o cheiro do suco do limão galego. O padre bebia em jejum, todas as manhãs, um copo d'água com o perfume do limão. O pezinho de limão galego era visto da janela da cozinha. Eu ficava namorando aquele  pequena árvore, sempre verdinha; nem ousava chegar perto. Nossas limonadas eram feitas com o feioso limão rosa. Não poderíamos falar que era limão capeta. Meu tio padre era bravo que só ele.

-"Será que eles já saíram de lá? Será que pedi minha tia para que eles pudessem dormir na casa paroquial? Acho que eles deveriam trazer travesseiros e cobertores."  Era meu desespero e eu associados à minha desorientação. 

Meus amigos, Tonhão e Gilca, FdS e Rita, Flávia com Benício e Mirela, Ângelica e Lurdinha estão vindo de Belo Horizonte. Uns virão no Jeep - 1957 - recém pintado de azul. Outros virão no Captur da minha bela enteada. Com certeza estão trazendo colchões.

Olhei para cima e vi minha Tia Nini na janela do segundo andar da casa paroquial. Só então lembrei que ela me havia reservado os quartos escuros e de terra batida debaixo da casa. Ótimo. Eles ficam perto dos banheiros e da adega do padre. 

Eles já devem estar chegando. 

Que Nossa Senhora do Rosário abençoe todos os fiéis daqui e de lá. 

Mesmo no burburinho das pessoas na Praça Capitão Vilela escuto o som.

Eu estava no meio da minha gente de Brás Pires. 

A buzina rouca do Jeep me acorda no meio da madrugada. Viro para o outro lado da cama e continuo a dormir.

03/02/2023


Fotografia: agradecimento a Laison, proprietário  do Jeep, da cidade de Mário Campos (M.G.)