quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Crônica: Encontro com deus Rudá

 




“E o deus do amor na mitologia tupi-guarani, Rudá, atendeu ao desespero da menina e a transformou em pedra.”


Um convite anunciado e os aceites de nós que queríamos estar juntos de novo. Sentimentos aflorados com a possibilidade da volta aos tempos da juventude. Assim foi.

Minha viagem começou bem antes das estradas. Os traçados dos percursos nos sofisticados aplicativos Google eram menores do que aqueles traçados dentro de mim. Optar por um caminho alternativo, conforme sugerido pelo colega residente naquela região, trouxe-me mais tranquilidade e muito mais alegria. Mas gosto dos caminhos desconhecidos por onde me deixo perder pelo prazer de me procurar.

O colega motorista fez, sem o saber, exatamente como desejei. Sem correrias. Sem indelicadezas na direção. Cuidadoso, mostrando-se o avesso do colega esbaforido e ácido.

No trecho margeando o Rio Piranga uma outra viagem aconteceu dentro de mim. Eu retornei para minha infância. "São dois irmãos que nascem na Serra da Mantiqueira, um bem próximo do outro. Correm paralelos e formam o Rio Doce". Assim dizia meu pai que, sem o saber, nos ensinava geografia.

Chegamos em Muriaé. Ali deu-se nosso encontro com o primeiro colega e sua esposa. E meu coração iniciou o batuque dentro do meu peito. Seguimos juntos. Agora com um excelente guia.

Em Espera Feliz iniciamos a subida que nos levou a Pedra Menina, na estonteante Serra do Caparaó.

Estradas curvas, subidas íngremes, belíssimas construções rústicas coloridas com muito amarelo.

E tão logo nossos encontros começaram. Um grupo chegou com risadas e abraços. Chegou outra turma com mais abraços e palavras soltas.

No aconchegante chalé dos anfitriões tomamos um café do lado de fora, bem junto ao cafezal e às flores. Queijos, biscoitos, broas, doces, geleias e vinho. Muito vinho. E presentes para todos e todas. Só então entendi que estávamos no município capixaba de Dores do Rio Preto.

- “O riacho divide os estados de Minas e Espírito Santo. Aqui é o Espírito Santo” me disse nossa anfitriã. Estava explicado.

Logo percebi que o laço foi jogado. A laçada bem apertada. Não por acaso éramos 13 colegas ali, não um número qualquer. Estamos enlaçados assim desde o início dos anos oitenta.

Ali estávamos 13 estudantes que viveram nos sombrios anos da ditadura militar. Sobrevivemos cidadãos e médicos humanistas como já não existem tantos.

A magia do encontro foi se dando na contação de histórias, no compartilhamento dos perrengues, na explosão de gargalhadas, na divisão das receitas de pães de queijo, no uso de blusas emprestadas e na certeza de que nos amaremos para sempre.

- "Há quarenta e um anos não vejo ciclano nem fulano".
Era o que se ouvia de um.

- "A pousada aceita cachorro?" Era uma colega preocupada com seu simpático cãozinho com nome de jogador famoso.

- "Tem lugar para nadar?" 

E nada deixou de ser respondido com a delicadeza da anfitriã ou o arranjado do anfitrião que sempre foi tão só um desarranjo.

Para tristeza do grupo, na última hora, a colega aniversariante se rendeu aos compromissos familiares e não veio para o encontro e nem para soprar a vela do delicioso bolo encomendado.

As longas viagens não nos deixaram cansados. Nossos corpos de jovens de mais de sessenta anos estavam abençoados pelo deus Rudá. 

Na manhã de sábado entramos no Parque Nacional da Serra do Caparaó. Adentramos por trilhas acima das nuvens naquele paraíso ecológico procurando por cachoeiras. Os sons das águas e os cantos dos pássaros foram nossa trilha sonora e a vegetação da serra foi nosso cenário fotográfico. Mais adiante uma nova trilha com marcação de mil metros. Um grupo dos jovens sessentões não declinou de segui-la. Desisti nesta hora.

Foi possível perceber tristezas que salientaram as “linhas de expressão” em alguns colegas. Muitos abraços e afagos encobriram as possíveis lágrimas brotadas. Era, mais uma vez, o deus Rudá cumprindo sua missão de amolecer os corações dos indígenas e das indígenas e prepara-los para o amor.

E, na última noite do nosso encontro, contaram-me que o deus Rudá é responsável pela lua cheia – Cairê – e pela lua nova – Catiti, junto com Guaraci (o deus sol) e Jaci (a deusa da lua), sua esposa e irmã. Conta a lenda que os índios deixaram o litoral e foram morar nas montanhas. Até que um dia o local foi invadido e os invasores ficaram deslumbrados com a beleza da pequena menina índia e um deles procurou seduzi-la. Porém a menina havia consagrado sua virgindade a Rudá. Desesperada, pediu ao deus Rudá que a transformasse numa pedra e a deixasse bem no alto, entre as nuvens. Lá fica ela deitada para que todos possam apreciar sua beleza e para que ela possa proteger a montanha.

Fiquei pensando que nossos anfitriões escolheram aquelas alturas, não por acaso. Dali, bem do alto, ficamos em contato com o deus Rudá, com sua amada menina da pedra e saímos de lá com nossas juventudes refeitas.

Agora que venham outros reencontros banhados por Guaraci e Jaci, acolá será sob a insígnia da liberdade.

30/11/2022


Observações:
Fotografias feitas pelo grupo 
Assim deu-se o encontro com 13 colegas médicos, formados pela UFJF no ano de 1981, nos dias 24,25 e 26 de novembro, com a companhia de três esposas, dois maridos e o mascote Zico, na Pedra Menina, em Dores do Rio Preto – E.S.)


















segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Postagem do Facebook, dia 20 de novembro



"20 de novembro”




Há exatos trinta e seis anos nascia meu primeiro filho. O nome já escolhido desde sempre. Por acaso do destino teria o mesmo nome do pai; Francisco. Ontem, dia 19 de novembro, acordei-o do outro lado do planeta para dar-lhe meu abraço de “Feliz aniversário” uma vez que por lá já era hoje por aqui. Lembrei-lhe que, quando olhei para ele pela primeira logo após o parto, era como se estivesse me vendo. Seus olhos e todo ele era eu de novo. Desde então meu filho tem sido meu grande companheiro e amigo. Um estudioso apaixonado pelas relações humanas, políticas, internacionais e filosóficas. Para lá se foi ele com sua família em busca de novos voos e sonhos. E cá ficamos nós a celebrar este dia Nacional da Consciência Negra.

Pois bem, hoje quero falar do poeta mineiro de Santo Antônio do Itambé, Adão Ventura, que de forma tão bela nos trouxe as dores dos negros escravizados.

“Um
em negro teceram-me a pele.
enormes correntes amarram-me ao tronco de uma Nova África.
carrego comigo a sombra de longos muros tentando impedir que meus pés cheguem ao final dos caminhos.
mas o meu sangue está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras que os meus avós
carregaram para edificar os palácios dos reis”

Hoje também quero falar do escritor Laurentino Gomes que, em seus livros, nos conta acerca das atrocidades vividas pelo povo negro escravizado nas três Américas para enriquecer seus “donos”.

Escravidão:
(Do primeiro leilão dos cativos em Portugal até a morte do Zumbi dos Palmares – vol I)

Hoje também quero falar de Nossa Senhora do Rosário cuja história nos remete aos nativos africanos que encontraram a imagem perdida numa de suas praias desertas. Fizeram um belo altar rústico para coloca-la junto ao povo em sua aldeia. Enfeitavam-se, dançavam e cantavam em sua homenagem. Até que um dia veio a notícia de que a referida imagem pertencia a uma senhora da nobreza portuguesa que a exigiu de volta. Foi edificada uma capela riquíssima e a imagem foi entronizada dentro dela onde os religiosos colonizadores a adoravam.

Entretanto, misteriosamente, a imagem de Nossa Senhora do Rosário, seguindo os sonos dos tambores, aparecia todas as noites no altar junto aos nativos. E eles tocavam, cantavam e dançavam em volta dela que sorria junto da folia. 

Assim se deu o amor entre a virgem do Rosário e os negros que a tornaram sua protetora juntamente com Santa Efigênia.

E o acaso também me levou, ainda menina, a morar numa rua cuja maioria dos vizinhos eram negros, trabalhadores mineiros do manganês, em Conselheiro Lafaiete.

Eu e meu nome Maria do Rosário.