sábado, 28 de dezembro de 2019

Crônica: JUDAS, O OBSCURO / UM LIVRO E DUAS HISTÓRIAS


Em meados do ano de 1986 ganhei um livro cujo autor me era desconhecido, Thomas Hardy. Foi um presente de aniversário dado pelo colega de profissão e grande amigo.  Obviamente que se tratava de uma obra prima. A leitura do livro me marcou profundamente. Não sei como o exemplar não se perdera junto com tantos outros durante as inúmeras mudanças de casas, apartamentos e cidades. 

No ano passado, 2018, quis ler o livro novamente.  Enquanto psiquiatra e eterna estudante da psicanálise, havia levantado uma hipótese diagnóstica do personagem e queria sustenta-la com a releitura do romance. Encontrei o livro amarelado, com forte cheiro de pó, folhas soltas, capa arrancada. Mas inteiro. Talvez ele fosse a própria encarnação de seu personagem. 

As anotações feitas durante a primeira leitura me proporcionaram mais uma viagem. Agora para dentro de mim. Embrenhei numa Inglaterra do século XIX acompanhada de Judas e seus sonhos. Um menino abandonado, escravizado pelo único parente vivo, uma tia velha e doente, que lhe cobrava preços altos pela falsa caridade em sustentá-lo. Mas a obstinação de Judas pela leitura e pelo conhecimento lhe fizeram procurar um mestre das letras. Assim os sonhos de Judas criam asas. E a desventura de uma criança ganha sua sina.

Além das belas descrições, feitas pelo autor, dos caminhos percorridos pelo interior da Inglaterra, o que mais me impressionou em Judas, o Obscuro, foram as descrições dos caminhos percorridos pelo interior de si mesmo. Ele encontrará outras tantas “tias” pelos caminhos. Mas sua conduta ética não o abalará mesmo diante das inúmeras artimanhas que a vida irá lhe preparar. Ele acreditava na verdade e na bondade das pessoas.

Na nota preliminar, assinada apenas pelo tradutor Octavio de Faria, lemos que: “Desconhecido, incompreendido, enganado, só poderá responder aos golpes da vida com a pureza do seu gesto, tantas vezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos o seu coração de homem. Os que o rodeiam viram então a face, porque suas feridas ferem a eles próprios.”

Pois bem, a recente releitura veio corroborar com minha hipótese diagnóstica do caso clínico de Judas.

E esse personagem tão marcante me trouxe de volta outro menino. Este outro de carne e osso.

Estava de plantão na urgência psiquiátrica quando me coube o atendimento de um jovem. Ao ler seu prontuário, mesmo antes do atendimento, reconheci sua história. Nosso paciente não tinha mais que vinte e cinco anos. Apresentava a face edematosa, com hematomas e ferimentos recentes por todo o corpo. Dissera que não conseguia parar de beber e que vinha bebendo mais de dois litros de pinga por dia. Nos bares e nas ruas era espancado por colegas e supostos desafetos. Seu olhar estava vazio. Não havia nele nenhum sinal de vida senão um corpo morto a carregar. Por outro lado havia nele uma enorme doçura. Respondia às perguntas com delicadeza e respeito. Sem ódio ou ira pelos seus algozes. Havia apenas resignação. Naquela hora segurei minhas lágrimas que escorreram para dentro do meu coração.

Lembrei que o havia atendido há poucos anos noutro serviço de urgência psiquiátrica com o mesmo quadro clínico. Era mais jovem e sem tantos estragos pelo corpo. Jamais poderia esquecer um caso tão singular e grave.

Neste último atendimento chamei a mãe, ainda muito jovem, que me disse o que eu já sabia. Também lembrou que eu o havia atendido e informou que fizera como havia orientado na época uma vez que não estava indicada a internação. Naquela época, o menino precisava de tratamentos psiquiátrico e psicológico permanentes, entretanto junto da família. A mãe também deveria procurar ajuda. Tratava-se de um grave e raro quadro psiquiátrico. Mas naquele segundo atendimento minha conduta fora outra. 

Apesar do prognóstico sombrio, pedi à mãe que ficasse com o filho por uns dias em “observação” naquela unidade de urgência até que ele se desintoxicasse da bebida alcoólica e a enfermagem cuidasse dos ferimentos. Ou seja, fizemos o necessário para aquela situação tão desumana. Enquanto isto outros profissionais fariam contatos com a rede de saúde mental de sua cidade para a continuidade do tratamento após a alta hospitalar.

Nunca mais o vi. Porém, o meu jovem paciente e Judas, jamais sairão de dentro de mim.





SOBRE O AUTOR DO LIVRO: Thomas Hardy nasceu em 2 de julho de 1840, no condado de Dorset e morreu em 1928. estudou arquitetura porém dedicou toda a sua vida à literatura.

"Seguindo o mesmo critério de excelência, ninguém negará que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertence a uma categoria absolutamente ímpar, junto com Dickens, Meredith, Galsworthy, Lawrence e alguns poucos outros."(O.F.)

Funil, 07/10/2019 dia de N. Sra do Rosário




sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Crônica: "Então é Natal"

Nesta manhã de 24 de dezembro ao temendar, à mão, uma peça de roupa, lembrei-me dos carrinhos feitos dos pequenos e antigos carretéis de madeira com tirinhas de câmara de ar, palitos de fósforo, pedaços de vela e um clips ou pedacinho de arame.

Os danadinhos andavam sozinhos sobre nossa mesa ou nas estradinhas dos barrancos e nos enchiam de emoções ao vê-los enfrentando obstáculos à frente e subindo montanhas imaginárias.

Neste natal espero que continuemos fabricando carrinhos imaginários e que consigamos vencer os obstáculos que nos tem sido colocados à frente pelo desgoverno deste presidente que ai está.

Abraços fantásticos a todos e todas.

(E, se alguém se lembrar deles e tiver uma foto destes carrinhos, me ajude a ilustrar esta mensagem)

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Crônica: Do verão e do meu pai


                   


Tenho acordado por volta das cinco e trinta. Antes do despertar do meu celular (que saudades do trimmmm dos relógios de antes!). O calor intenso, o avançar da idade, as terríveis apneias e os atuais deveres de dona de casa são os responsáveis por este sono em uma só etapa. Não me importo em acordar cedo. Sempre gostei de assistir o amanhecer. A vida recomeçando a cada manhã e o frescor da natureza perfumando meus pensamentos valem a mudança. 

Esta manhã não foi diferente. O calor insuportável me acordou mais uma vez. Às cinco e meia o sol já despontava. Em trinta minutos realizo os afazeres necessários no entorno do meu chalé. O pior momento é a vassoura de piaçava em minhas mãos. Ela dança e não aceita o meu comando. Ciscos pra lá e prá cá. Prefiro usá-la apenas quando viro bruxa e faço voos rasantes pelas montanhas. Sempre fui uma esculachada dona de casa. Prefiro os livros e as melodias.

Mas, nesta semana, dois acontecimentos me chamaram a atenção. A entrada do verão na madrugada do dia vinte e dois de dezembro, exatamente a 01:19h e, neste mesmo dia, meu pai faria cem anos. O primeiro fato me causa irritação. Não gosto do verão e seus calores infernais. O segundo me deixa cheia de saudades. E comecei toda esta história para falar dele.

Meu pai, portanto, nasceu no dia 22 de dezembro de 1919. Morreu poucos dias antes de completar noventa e seis anos. Obviamente que a festa para toda a família já estava encomendada. Uma dissecção de aorta abdominal o matou em setenta e duas horas. Tabagista desde os onze anos de idade contava entusiasmado que tinha um pulmão “limpinho”. Não era bem assim. Sua trama pulmonar já estava toda comprometida. Mas estas coisas não interessam. O que conta são suas aventuras contadas e recontadas ao longo de sua vida.

Nasceu em Rio Espera, uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, localizada na Zona da Mata Mineira. Quinto filho dos nove de minha avó. Recebeu o nome do famoso almirante inglês que derrotou Napoleão Bonaparte na batalha naval de Trafalgar entre França e Espanha contra o Reino Unido que saíra vitorioso, em 1805. Não sei se minha avó sabia disso, mas, provavelmente, o nome Nelson, havia virado moda depois que as noticias chegaram ao longínquo Brasil.

E o menino fez jus ao patrono de seu nome embora sua estatura fosse bem maior que o baixinho almirante britânico. Desde jovem, além de sua beleza física, lembrando os europeus, havia também a inteligência e as estratégias nas brincadeiras que o levavam sempre às vitórias.

Um dia, quando ainda criança, foi vender geleias de mocotó que minha avó fazia para aumentar a renda familiar. Algumas caíram na estrada. Ele limpou-as e resolveu ir vendê-las ao padre. Mais tarde, quando a mãe encontrou com o padre, este comentara que as geleias estavam deliciosas, principalmente aquelas com a canela em pó sem cheiro.

Foram tantas as travessuras que a mãe resolvera, depois de várias tentativas, entrega-lo ao filho mais velho que, já casado, fora morar em outra cidade. Se o rapaz não consertara pelo menos apaixonou pela música e pela flauta. Tornou-se um grande musicista, chegando a transcrever partituras para diversos instrumentos musicais. Afinava violões e pianos e tocava vários instrumentos de sopro.

Contava ele que, no dia marcado para noivar minha mãe na vizinha cidade de Brás Pires, deveria fazer um concurso do Banco do Brasil em Belo Horizonte. Pediu ao irmão de nome também inglês, Vitório, (teria esse nome sido também moda na época em homenagem à vitória inglesa na referida Batalha de Trafalgar ou pela Rainha Vitória?) para viajar até lá e, em seu nome, pedir a mão da amada. E assim foi.

Dizia sempre que nos dois anos e onze meses de noivado viu a moça apenas três vezes. Casaram-se no dia 22 de maio de 1947 defronte o oratório de São José do Porto na fazenda do mesmo nome onde morava com toda sua família de descendência italiana. Maria José era a primeira filha mulher. O irmão mais velho, José Maria, já padre, oficializou o casamento. Desde então um dos quartos da fazenda ficaria conhecido como o “quarto de Nelson e Mariinha”. O mais bem localizado e maior quarto da fazenda. Duas grandes janelas voltadas para o norte e outra voltada para o oeste. A frente uma várzea que encontrava com o céu.

Lembro que minha mãe era uma mulher calada, às vezes solitária, às vezes exuberante enquanto meu pai estava sempre bem humorado. Tudo eram motivos para se divertir. Dizia que era a cabeça da casa e que minha mãe era o pescoço. "Eu só vou pra onde o pescoço virar" brincava ele nas verdades.

Amava e respeitava a todos. Quando mudamos para Lafaiete, no início dos anos sessenta, recebia com a mesma alegria em nossa casa todas as pessoas que nos visitavam ou passavam por lá em direção à capital, Belo Horizonte. Viravam noites contando piadas, relembrando outras épocas.

Em tempos das vacas magras meu pai colocou os filhos menores para trabalhar. Levar marmitas para os mineiros do Morro da Mina (extração de manganês), limpar uma sapataria, vender pães num balaio pelas ruas afora. Nós, as filhas, éramos poupadas do trabalho externo e ajudávamos a mãe nas tarefas domésticas. Foi então que aprendi a lavar roupas e me encantei com os processos de esfregar, quarar, enxaguar e torcê-las. E me encantei muito mais com as lavadeiras na distante fontinha de pedra onde elas lavavam muitas trouxas para as famílias que podiam pagá-las.

Se era minha mãe a ditar as ordens da casa, era meu pai a desditá-las e a brincar com os filhos. Entretanto exigia que estudássemos. Dizia que não tinham bens para nos deixar de herança e que nos deixaria nossos estudos. “Conhecimentos ninguém tirarão de vocês e não ocupam espaços”, argumentava ele. Formou todos os filhos exceto uma das filhas que preferiu se casar mas que iria se formar mais tarde.

Quando o filho mais velho teve um infarto fulminante aos quarenta e um anos minha mãe, já bastante debilitada por um CA de intestino, pediu que levássemos flores e meu pai comandou toda a cerimonia fúnebre. A pedido do meu pai uma das bandas presente tocou uma música enquanto ele cantava para despedir do filho. E ele cantava muito bem.

Passados alguns meses minha mãe também faleceu. Meu pai ficou só na casa que construíram com tantas dificuldades. Os netos, acolhidos para estudar, haviam formado e ido embora. Agora era só ele e suas tristezas.

Aos setenta e nove anos ainda guardava no corpo a beleza da juventude. Nos olhos azuis, a partir de então quase sempre encharcados, ainda brilhava a docilidade paterna. Amava receber seus vinte e dois netos, alguns poucos bisnetos, genros e noras. Dizia que era uma alegria quando todos chegavam e um alívio quando iam embora.

Um dia ele também foi embora.

Meu pai era assim e muito mais.



Fotografia: arquivo familiar, anos 40(?)


Dez/2019









segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Crônica: Atravessando montanhas de Minas




Já havia previsto minha viagem a Ouro Branco, cidadezinha do interior onde mora meu netinho. Desta vez decidi cortar caminhos. Ao invés de atravessar um pedaço da BR Fernão Dias, pegar um trecho do terrível Anel Rodoviário em Belo Horizonte e entrar na BR 040, optei por subir as montanhas de Brumadinho. Assim o fiz.

Só não havia previsto os inúmeros caminhões carregando nossos minérios, os muitos trabalhadores ainda vasculhando e refazendo estradas, as chuvas e o lamaçal. Tentei retornar. Já não havia mais tempo.

Logo na entrada de Brumadinho uma longa fila de carros chegando de duas direções diferentes. Carros indo. Carros voltando. Não fosse a educação de alguns motoristas o caos teria se formado pelos apressadinhos e maus motoristas.

Já contabilizava um atraso de dez minutos nos oito quilômetros percorridos até ali.

Finalmente consegui chegar à estradinha estreita que me levaria pelas curvas e montanhas. Mais caminhões. Mais trabalhadores e muitos carros pequenos. Será que todos tiveram a minha ideia?

Mas, à medida que distanciava da cidade, ia deixando os caminhões por suas estradas privativas até as minas que consomem nosso patrimônio ambiental e matam nossos trabalhadores. Isto são outras histórias. Tristes histórias. E presentes comigo desde então.

Toda esta introdução para falar das cores com as quais o tempo chuvoso e ensolarado coloriu meus olhos. Ali um arco-íris. Ou dois? E eles cismaram de brincar comigo. Numa curva ele estava à minha direita. Logo desaparecia para aparecer do lado esquerdo. Agora à minha frente.

“Estou chegando bem perto”. “Será que conseguirei passar debaixo dele?” “O que mesmo que acontece quando a gente consegue isto?”

Resolvi arriscar fotografá-lo. Sem acostamento. Vários carros indo e vindo. Fotografei. Uma. Duas vezes. Três vezes. Várias vezes. Esqueci-me de ver como ficaram as fotos. (Vi agora. Apenas uma com meu arco-íris sobre a igreja do distrito de Aranha.)

Havia momentos em que surgia também a sombra daquele. E a beleza duplicava. Água, sol, minérios, matas. A combinação perfeita para a exuberância por toda a estrada.

De repente comecei a subir as montanhas de fato. Ali estava o arco-íris a esconder de mim por entre as pedras. E logo despontava bem pertinho. “Agora conseguirei passar debaixo dele!” Acelerei meu carro no pedaço mais íngreme da região, mas ele se escondeu logo acima de mim. Cheguei ao topo da montanha. Ele desapareceu. Despedi daquele amigo colorido que havia feito a travessia comigo por quase uma hora naqueles quarenta e dois quilômetros.

Agora outra visão me deslumbrava à frente. A Lagoa dos Ingleses. Imaginei meu carro e eu flanando sobre o morro e deslizando sobre o céu azul dentro d’água.

Então cheguei à BR 040 que não estava tão tranquila quanto pensava. Agora bem perto do meu destino. Procurei o Pico do Itabirito. Majestoso sobrevivente das mineradoras. Até quando não sabemos. Sei que a população tem bravamente lutado para impedir seu desaparecimento.

Não havia ligado o rádio. Nem queria. Estava ouvindo o meu silêncio que já fazia-me bastante barulho. Cantava muitas melodias e, às vezes me lembrava dos rumos do meu Brasil. Mas eu queria mesmo era viajar. Ainda não sabia quem dirigia o carro. Acho que estava no automático.

Trânsito lento. Muito lento em Congonhas. “O que terá havido?” “Polícia Rodoviária Federal?” “Ou o estrangulamento do viaduto logo ali a frente?”

Foi ali que me apresentou um céu de nuvens acinzentadas e brancas com fundo azulado. Parecia que o Deus pintor fizera de propósito. Queria que víssemos sua obra entre a Terra e os céus. Por isto Ele quase parou o trânsito. E quem não viu perdeu o quadro por entre as gotas de chuva no para-brisa. Não sei se verei de novo. Visão única.

E finalmente cheguei ao meu destino. Encontrei meu neto com seu uniforme escolar muito sujo. Aquilo me deixou orgulhosa. O uniforme estava sujo de aventuras, de tintas coloridas (será que ele ajudou a pintar o arco-íris e o céu?), de inocência, de amizades e de alegrias.

Pedi muitos abraços explicando-lhe que, sendo ele meu único neto, queria tantos outros netos e abraços. Ele entendeu apesar de seus quatro anos e enroscou meu pescoço num demorado abraço.

Minha viagem de cem quilômetros em quase três horas fora perfeita.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

PARAISÓPOLIS

Não sou covarde
Estou covarde
Entrei na minha casa
Tranquei portas e janelas
Desliguei a TV

Fechei os olhos
Meus pés escorregaram na terra úmida
Fincaram raízes

A Amazônia incendiada não entrou na minha casa
O óleo dos mares não manchou minhas praias
As balas perdidas não furaram meu corpo

Fiz-me mulher maravilha
Coloquei vestes anti-fogo
Colori meus cabelos
Calcei botas mágicas
Bailei no funk
Mas não subi o morro

Permaneci inabalável
Foi o jeito encontrado
Para não ser o décimo menino morto
Em Paraisópolis.

04/12/2019
(Para suportar a dor pelos nove jovens assassinados pela PM num baile funk na periferia de São Paulo no último final de semana)