quinta-feira, 28 de abril de 2022

Salve o Funil / Mineração! Aqui não!

 


Da MG -040 o que se vê às margens são belos empórios de móveis rústicos. Este trabalho vem sendo levado a vários lugares do estado, quiçá do país. São trabalhos artísticos feitos pelos moradores daqui e que passam de pai para filho.

A kombi com o milho verde, sendo cozido dentro de um caldeirão num fogão improvisado, já se tornou patrimônio e referência da entrada do bairro.

Dobrem a esquerda, saiam da rodovia e logo chegará numa bucólica pracinha rodeada por espécies de mata Atlântica. A Igreja é de Santo Antônio, o santo casamenteiro com seu dia celebrado pela comunidade que aproveita para fazer novos pedidos e agradecer aqueles alcançados. Uma escola pública com arquitetura local, algumas casas e um ponto de ônibus. É daqui que partem e voltam os moradores para seus muitos afazeres.

Seguindo em frente deparem-se com o recém calçamento de pedras pé-de-moleque, ladeado por grandes árvores que tornam o clima ameno e fresco. Parem para escutar o som das águas do Córrego do Vinho que desce pela montanha. Deixe-se embriagar com suas curvas. Agradeça o milagre de suas quedas tocando moinhos d’água para transformar o milho em fubá. O Córrego do Vinho desce solitário dividindo terras e trazendo delicadezas cristalinas.

Agora comecem a subir o morro e deslumbrem-se com as casas da comunidade – como será que deveria chamar o gentio do Funil? – Floristas talvez seria um nome adequado já que, em todas as casas, o que se vê são flores de vários coloridos durante todo o ano.

Continuem subindo mais um pouco e, no cruzamento do antigo orelhão, virem à esquerda. Mais alguns passos e verão o Cruzeiro, local de orações, de rezas no dia 3 de maio, dia da Santa Cruz e de pedidos de chuvas em tempos de seca. Aqui deem uma pausa para seu descanso. Não se envergonhem se lágrimas brotarem dos seus olhos. Elas irão aliviar seus pesares. Aproveitem e chorem pelos filhos, pais e amigos que já se foram. Respire fundo e continuem se encantando com a região.

Dizem que o Funil teria sido formado por uma única família e seus descendentes. Aqui seria o berço do município de Mário Campos com os primeiros moradores chegando ainda no final do século XIX e início do século XX.

Sagrado berço para uma cidade.

Aos pés de montanhas e matas onde podem ser vistas galinhas d’Ângola, saracuras, seriemas, as ferozes corujas, tucanos, jacus comedores de grãos de café, bem-te-vis, canários da terra, tico-tico -reis, anus, carcarás, rolinhas, micos, lontras, tiús, comedores de ovos, as terríveis cascavéis, algumas raposas atrevidas já passeiam por aqui e até uma jaguatirica teria aterrorizado alguns moradores.

Não assustem se ouvirem uma gritaria por perto. Certamente assustaram um bando das escandalosas jandaias saboreando as amoras nos quintais.

Os ipês amarelos predominam por toda a região e, quando chega o inverno, eles enchem as matas de amarelo ouro. Há também os ipês cor de rosa e roxos. Canelas, angicos, aroeiras, salgueiros e tantas outras nobrezas olhando para o céu.

Ou seja, no Funil, a grande biodiversidade mantém-se em harmonia com seus moradores.

E há mulheres por aqui que ainda fazem a farinha de mandioca com técnicas primitivas como foi ensinado pelos africanos escravizados. Uma imagem para ser vista e lembrada por toda a vida quando elas se reúnem e transformam a mandioca na farinha mais saborosa de toda a região. Outras vezes elas se reúnem para assar biscoitos do padre, roscas de cenouras. É a tradição dos fornos e fornalhas a lenha se perpetuando através de sábias mãos femininas.

Do alto do Funil pode-se ouvir o xique-xique do trem correndo pelos trilhos margeando o Rio Paraopeba. Aqui uma pausa para duas tristezas. São nesses trens que as montanhas de Minas se vão para o outro lado do planeta. E foi no rio Paraopeba que a lama de Brumadinho foi derramada e acabou com sua vida de rio.

Considerando como referência o centro de Mário Campos, tem-se mais próximo o Capão, região de mata preservada, de fazendas produtoras de verduras, e de muita água brotando do chão e formando veios sobre a terra.

Mais distante tem-se a Vila das Amoreiras, há quase meio século recebendo moradores. A Vila está bem aos pés da última formação da Serra do Espinhaço que desce desde o nordeste de Minas Gerais. Do outro lado do Rio Paraopeba tem-se o início da Serra da Mantiqueira que continuará pelo sudoeste até o estado de São Paulo. Eis aqui a formação geológica chamada Funil.

Entretanto, muito mais que uma formação geológica, tem-se aqui um povo originário cuja identidade passa pela religiosidade com as festas da folia de Reis, pelas festas de Santo Antônio e São João, pela culinária local, pelo amor ao meio ambiente, pelas relações humanas respeitosas e acolhedoras.

Salvem o Funil!




                                                           (orquídeas da Helena)

                            
                                 Abóbora d'agua ou marinda
                            (quintal da casa de Helena e João Jiló)



                   (mamoeiro nativo na região - quintal da Helena)










Agradecimentos aos moradores que, gentilmente, tem nos contado suas histórias de vida aqui no Funil e permitido as fotografias. Eles sabem que unidos somos mais fortes.



13/04/2022

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Crônica para Ana

 

       


Ela estava lá

Era um almoço de domingo com alguns poucos familiares. Comemoravam o casamento dos filhos que aconteceria em breve. Dois eventos importantes na vida da filha mais nova. Formou-se médica em meio à pandemia e já está trabalhando. E irá se casar com o “amor da sua vida”.

O almoço foi servido num requintado móvel que ora fazia as vezes de um buffet. Poucas pessoas em volta da mesa instalada no melhor local da casa. Uma ampla varanda com direito a decoração do busto da linda negra Zulmira.

O noivo apareceu menos sério que sempre, mais encorpado e com a face bem corada.

E eis que ela chega. Postura elegante dentro de um macacão de tecido amarelo com pequenas estampas pretas e brancas. Ali estava a mãe do noivo. Com o nome da mãe de Maria, sendo, pois, a protetora das mães. Cumprimentou a todos com discrição. O menino veio logo atrás. A avó e o neto de quatro anos. Ela procurou um local qualquer para sentar-se e ali ficou. Os sulcos de sua face pareceram mais profundos. Sua pele e seus cabelos apresentavam-se mais esbranquiçados. Seus passos mais incertos. Seu olhar era vago. Parecia nada ver.

A morte recente da filha levara junto muito daquela bela mulher. Um câncer maligno de mama vitimara a jovem mãe daquele menino. E agora? O que será daquela criança senão uma avó sem sorrisos na face? Que efeitos terão sobre o filho a partida tão prematura da mãe? Quem irá às reuniões das mães? A quem ele dará um abraço no dia das mães? A quem ele mostrará seus avanços na escola? (Certamente que, ao chegar esse tempo, ele terá feito suas escolhas, mesmo que escolhas forçadas.) Do pai nada se soube. Sem presença.

O menino estava ali. Inquieto andava pela casa. Certamente procurava algo que dissesse da presença ausência da mãe. Disseram-lhe que a mãe virou uma estrelinha. Será que ele terá que esperar por todas as noites da sua vida para procurar sua mãe-estrela? Talvez há que lhe dizerem que as estrelas também brilham durante o dia, mas que o sol, a estrela mais perto da Terra nunca permite que vejamos todas as outras estrelas. Dizer-lhe também que sua mãe estará sempre a lhe olhar com muito amor.

E o que dizer para essa mãe-avó? O que dizer para essa protetora das mães que, agora, está desprotegida? Nenhuma palavra irá preencher o vazio de palavras. Não existem palavras para dizer dessa falta de sentido que é a morte de um filho ou de uma filha.

A dor é maior que o mundo. No caso dessa mãe, órfã de filha, todas as palavras que lhe faltam estarão sempre no viver do neto que lhe ficou.



Figura: Pintura de Santa Ana com a Virgem Maria e São João Batista (1513), Quadro de Leonardo da Vinci 


Fotografias: Imagens de Santa Ana da Igreja de São Paulo Apóstolo de Itapetininga (S.P.) feitas pelo amigo João Ricardo a quem muito agradeço a gentileza do trabalho.

 


12/04/2022

terça-feira, 12 de abril de 2022

Crônica dos bichos: Severina e Tieta

 


Severina e Tieta – A contenda

Escuto muitos latidos ferozes. Encontro Tieta acuada, sem a valentia de sua homônima do sertão agreste. Entretanto, mesmo acoitada no chão, ela rosna mostrando os dentes como se ainda tivesse o vigor e a coragem de outros tempos. Grito para Severina deixa-la em paz. Severina que, bem mais jovem e dona de seus três filhotes, acha que agora domina o terreno. Juntou-se a Ernesto, valente guerreiro da Sierra Maestra, aqui apenas um de seus filhotes. Querem destronar Tieta de seu posto mandatário de há quase uma década.

- “Ainda não!” Grito eu com a dupla. A pequenina nordestina sobrevivente das ruas, Severina, e o guapo argentino, Ernesto, fogem da contenda.

Tieta, como a me agradecer, deita próximo a mim que acaricio seu pelo branco amarelado, mas ainda delicado.

Converso com Severina e Ernesto. Dou-lhes uma bronca: “Ainda chegará o tempo de vocês dominarem meu terreiro”

Eles aproximam de mim. Sentam por perto como a reverenciar a rainha Tieta.

E todos eles voltam a comer no mesmo prato. Por enquanto.

12/04/2022

Poema: O homem Verão

 

O Homem do verão

 



Ele perscrutou pela margem de lá

Ainda sereno chamou meu nome

Trazia nas mãos frutas do quintal

Procurou meus fracassos

E assim, logo esbravejou


Tirou-me o sono suas palavras

Quais palavras?

Intrigas masculinas


Amanheci verão

Fogo pelas ventas

Mensagens dele

Não li suas palavras


Tudo em vão

Apenas um homem faísca de verão

quarta-feira, 6 de abril de 2022

História Infantil

 



Vivia uma planta carnívora num campo verdinho quando um rato subiu nela e ela o engoliu.


Autor: Eduardo - 6 anos - (meu neto)

Fotografia: História escrita 


P.S. Dudu pediu para escrever que tem plantas carnívoras gigantes que comem até sapos e ratos.









Segunda oficina de março


Abertura:

A poesia é a linguagem mais sublime?

Resposta: Penso que foi preciso viver seis décadas para dizer “não” a esta pergunta. Outras linguagens também podem ser sublimes para quem é tocado por com elas. Às vezes uma palavra, um gesto, um olhar, uma cena, uma pintura, uma resposta ou um silêncio, podem ser tão sublimes quanto a poesia.


Alongamento 1: Fazer uma parábola do poema apresentado.

EU FUI LÁ

Não vem dizer que não fui lá,

Pois fui lá

E lá a formiga lava-pé picou meu pé

Chorei de raiva

Afinal quem botou ali aquela formiga?

Sabem da minha alergia por elas

E doeu muito

Doeu mais a raiva

Amanhã eu volto lá

Pisarei na formiga lava-pé

E darei um soco na cara

De quem a colocou lá.

Alongamento 2: fazer outra paródia com o famoso poema de Maiakóvski.

Exilado no purgatório


Se cair no purgatório, aproveite.

De um lado a dor,

o sofrimento, a solidão,

a perdição.

Do outro lado a esperança,

o aprendizado, a atenção.

Do lado de cá o horror,

a segregação, o abandono,

Do lado de lá a sorte dos dias coloridos,

a pele branca e limpa

Desse lado o levante, a voz,

a criação

Daquele lado a mesmice, o desencanto,

o nó

Fique no purgatório

Ali que te conheci.

E tu me fizeste gente.

(baseado num cidadão negro, portador de hanseníase, forjado na liderança de exilados em busca dos direitos mais básicos dos seres humanos: a liberdade e a dignidade.)


Alongamento 3: brinque com uma palavra iniciada com a letra M

Misericórdia

Para a igreja seria:

Ter o coração voltado para os pobres

Clemência ou piedade

Miseratio, derivado do Miserere, miséria

Cordis, derivado de COR, coração



Hoje, no popular, a palavra assumiu mais um significado sem, entretanto, estar desvinculado de sua raiz. Este outro significado, mais palatável, vem acrescido de tom debochado ou de espanto diante daquilo que causa surpresa.

“O pai da menina abandonou-a a própria sorte”

Misericórdia!!!! Disse a moça ao escutar a notícia.

Não gosto do “Miserere”, mas gosto muito do “Cordis”. O primeiro me remete à frieza dos bancos duros da igreja.

Enquanto o segundo me traz doces lembranças da minha infância fora da igreja.

Misericórdia

Serecordia

Recordia

Córdia

Cor

dia


Alongamento único:

As cores da minha bandeira

Se não há combinação de suas cores não me importo mais.

Dê cá minha bandeira. Ela tem o amarelo do meu desespero. Esse mesmo que você nem sabe do que estou falando. É preciso ser muito forte para carregar esse amarelo da minha bandeira. Não é pra qualquer um a luta diária pela liberdade de um povo.

O verde do meu ciúme está ali estampado, fulgurante. Ele contorna o meu país e o meu corpo. O verde dos meus olhos destila ódio pelos algozes do meu país.

Dê cá meu azul celeste. Ele reflete minhas calmarias marítimas. - Não me venham roubar minhas milhas - Suas águas embalam minhas noites. Suas estrelas piscam num convite aos amores por seus estados. Não escureçam meu céu de anil. Não permitirei sujeiras nas minhas terras.

Na faixa branca da minha bandeira descubro a escritura: 

“Lulalalá, brilha uma estrela”


06/04/2022