quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Crônica: As chuvas da minha vida




Há alguns anos um jovem estudante de arquitetura me falava acerca da maneira, de nós brasileiros, construirmos nossas casas de costas para os rios. Ele dizia que, nas antigas grandes cidades imperiais europeias, as casas eram construídas de frente aos rios. Fiquei lembrando da casa onde vivi ainda menina, na Zona da Mata Mineira, cujo imenso terreno terminava na beira do rio Xopotó (em tupi-guarani “rio dos cipós amarelos”). Da janela do meu pequenino quarto podia vê-lo majestoso serpenteando lá embaixo. Nas épocas das chuvas ficava ouvindo todos falarem das águas que desciam e das apostas de gente grande: “o rio vai ou não cobrir as traves do campo?” A única ponte que atravessava nosso rio era de uma madeira empretecida. Talvez braúnas. Por aquelas matas, ouvia dizer, havia muita madeira boa.

Quando as chuvas passavam brincávamos nas terras barrentas ou ainda tínhamos tempo para fazer nossas caravelas de papel manilha. Eu viajava para longe naquelas embarcações coloridas. Ou então andávamos descalços, pelas valetas feitas pela enxurrada, chutando as águas. Jamais me esquecerei da satisfação sentida no contato dos pés com a água correndo cheia de lama.

Outras vezes, durante nossas idas à Fazenda dos meus avós e, mais tarde do meu tio, não desviava meu olhar da lentidão do rio por uma das margens da estrada ou das matas nos barrancos e ribanceiras da outra margem. Uma légua de encantamentos. Lembro-me ainda que havia por toda a margem oposta ao rio, veios d’água, que desciam das encostas em direção ao rio. Alguns deles, mais volumosos, formavam riachinhos que atravessavam a estrada e deixavam bancos de areia que mais pareciam açúcar refinado. Aquilo brilhava nos olhos da meninada. Eu junto.

Ainda hoje há o Córrego do Inferno, cujo nome tentaram mudar para Córrego da Glória, mas obviamente que não pegou. Todos os significantes já estavam dentro de cada um de nós. De longe já ouvíamos o som da pequena cachoeira dentro da mata densa. Não conseguíamos vê-la. Aquilo já nos deixava atentos. De onde viria tanta água para fazer tanto barulho? O barulho estava dentro de nós. Ficava bem no trecho mais escuro do caminho. Grandes árvores se encontravam no alto. Era uma curva após uma forte descida onde, caso o rio subisse nas chuvas, ele viria se encontrar com as águas da cachoeira. Fogoso o rio. Nem esperava pelos beijos borbulhosos da queda d’água. Entrelaçavam e, portanto, fechava a estrada. Nada nem ninguém passavam ali.

Lamentavelmente, cresci e o “progresso” veio junto. Cortaram as árvores. Mudaram as estradas. Tiraram os barrancos. O rio, desamparado dos abraços das raízes da mata, adoeceu e apequenou.

A humanidade se desfez do seu laço com a natureza ao vislumbrar o poderio adquirido pelo dinheiro à custa de novas e tóxicas técnicas na lida com a terra.

E nasceram os agronegócios.

Os ribeirões e riachos passaram a ser usados como esgotos nas cidades onde não havia planos decentes de ocupação. Nasceram as cidades periféricas. Nos centros das cidades onde riachos e ribeirões incomodavam os governantes em seus projetos faraônicos, estes foram encaixotados como defuntos mortos. E as cidades brilhavam com o progresso da engenharia sobre capilares d’água que ainda tentavam respirar buscando suas revivescências.

Não tem sido sem dor que, nas últimas cinco décadas, venho assistindo o desespero dos rios para se manterem vivos diante da covardia dos homens em usá-los como depósitos dos mais variados lixos.

E este ano as águas afogadas em lágrimas deram seus gritos de misericórdia, até então resignadas.

Elas subiram aos céus e voltaram ressuscitadas.

Desceram a Terra para mostrar aos homens sem boa vontade que nada se impõe à natureza.

Ave água. Ave Terra. Ave mar

E tenho dito.



Mário Campos, Funil, 30/01/2020

domingo, 26 de janeiro de 2020

Crônica - Tieta foi operada



Levanto os olhos da minha leitura para observar Tieta deitada próximo à porta, na varanda. Está calma, elegante, sóbria e suja da terra vermelha do quintal.

Quem a conhece sabe que este é um momento ímpar da atrevida Tieta. Mandona, inquieta e gulosa. Chegou ainda filhote para minha vizinha que mandou fazer um canil com uma jeitosa casinha de alvenaria aproveitando a tela divisória de nossos terrenos. E foi ai que a coisa não deu certo. E, ainda por cima deu-lhe dar o nome da espevitada personagem do nosso genial baiano, Jorge Amado. Tieta ficava presa e latindo o dia todo para a liberdade dos meus cachorros.

Meus três cachorros viviam soltos e brincavam - ou brigavam? – enquanto a vizinha Tieta latia no desespero da segregação. A dona dizia que “ela é impossível, matou algumas galinhas, todos os pintinhos e vive estragando minhas plantas”. Isto é verdade. Suas plantas são lindas e sempre muito bem cuidadas. Para evitar tantos desastres a cachorrinha deveria se sucumbir nos quatro metros quadrados que lhe foram reservados. De vez em quando o marido da dona a levava para dar um passeio pelos arredores do sítio. Mas, para Tieta, aquilo não era o bastante.

Vendo o desespero da Tieta, meus filhos viviam pedindo que eu a adotasse. Prometi a eles e à dona dela que, quando  Duquesa viesse a falecer - estava com CA de mama avançado - eu a adotaria. Duas fêmeas no mesmo espaço seriam brigas constantes.

Duquesa faleceu e a Tieta veio para nós. Brava. Muito brava. Beligerante como só ela. Caçava briga todo dia com o velho Neguinho – meu cachorro também adotado das ruas - que acabava apanhando da feroz fêmea. Protegeu o pequeno Dexter, um caramelo adotado por minha filha ainda filhote, como se fosse sua cria. E assim a família foi restaurada. Neguinho, o senhor dócil. Dexter, o pequeno brincalhão. E Tieta, a tal briguenta.

O que fazer?

Não queríamos deixa-la sempre presa no canil como vinha acontecendo. Todos tentávamos aproximar dela. Nada adiantava. Ela, arisca, vinha sem modos e abocanhando quando lhe fazíamos um agrado com algum alimento.

Eis que, de uns tempos para cá, ela passou a pedir carinho, ficar mais perto, olhando de longe para o Neguinho, que nem se aproximava mais dela. Pensei que algo poderia estar acontecendo. 


Devo dizer que minha vizinha, ex-dona da Tieta, sempre me ajudou nos cuidados com meus cachorros. Com um carinho especial pela Tieta. Foi ela quem, durante minha última e recente viagem, chamou a veterinária e providenciou todos os medicamentos para os carrapatos. Penso que temos a guarda compartilhada da Tieta.

Preocupada com a braveza da Tieta, a veterinária sugeriu a castração que, talvez e sem garantias, poderia deixá-la mais calma. Agendada a cirurgia Tieta ficou em jejum para os procedimentos necessários.

Durante a castração, há menos de quinze dias, viu-se que ela estava com a tal Piometra (uma infecção bacteriana do útero, pouco conhecida embora comum, grave, que pode levar à morte se não tratada rapidamente). Estava explicada, em parte, a ferocidade da Tieta. Ela vinha sentindo dores e muito desconforto.

Pois bem, hoje ela me olha como que agradecida pelos cuidados e cuida de mim, quando às vezes, fico arisca também. Inda agora me olha com seu olhar soberbo de “dona do pedaço”.


Funil, 26/01/2020

sábado, 25 de janeiro de 2020

Carta de amor III

Meu amor

Nesta manhã ainda na cama, vejo enviada por nossa amiga de outros tempos, sua foto estampada num convite onde você fará uma palestra neste Natal. Nada do assunto me trouxe desejo de ouvir tal conferência. Entretanto a possibilidade de ver você me deixou em dúvida. Neste momento em que, tão perto e tão distante, nos encontramos nós.

Como em todos os anos, a proximidade do natal, me traz uma saudade imensa do tão pouco que vivemos e do tanto que deixamos de  viver. Digo-lhe que, tanto no amor quanto noutros sentimentos, nossas lembranças não situam num tempo cronológico mas se dispõem no aqui e agora. E nossas escolhas foram tais que nos deixaram à mercê de nós outros. Eu, tão só, infantilidade e desejo. Você, tão só, razão e defesa. Um encontro impossível.

Não irei assistir a sua palestra. Irei ver você. Afugentar seu espirito e afoguear sua carne. E, antes que terminem suas palavras, sairei “à francesa”. Sei que minh'alma ficará estraçalhada e sei também que, embora fique impassível a minha presença, não deixará de me olhar. Pouparei você disto? Ainda não sei. Sei que você buscou um deus misericordioso para abrigar as angústias de suas contradições. Suas epifanias certamente são resultados daquilo que não lhe convém.

Ah! Quanto amor guardado! Quantas palavras por dizer! Quantos gestos por fazer!

E você estará na cidade ainda nesta semana.

Vou ou não vou? 

Ah! Dúvida atroz!

Certamente você não virá para “destruir a lei”. Afinal você vive ao abrigo desta lei para não se haver com seus quereres. Confortável sua posição. Queria ver você sem a imposição de suas leis. Pois assim sempre eu estive. 



                      
Lafaiete, 19 de dezembro de 2017

domingo, 19 de janeiro de 2020

Homenagem a uma amiga



Acordei menor hoje.

Nesta manhã uma folha em branco me convocava a preenchê-la.

Escrevi:

Valeska  Juraci  Simões  Coelho  da  Matta    Machado.

Plagiando nosso compositor mineiro da alma, digo que nossa amiga era “doce e atroz, mansa e feroz”. Entretanto não demonstrava que fosse caçadora de si. Mas, certamente, era uma caçadora indomável. Caçava outras preciosidades.

Amante da boa literatura, Valeska lia compulsivamente nos intervalos de seus atendimentos, embora quase nunca lhe faltasse tempo uma vez que seus pacientes preenchiam todos os horários. Por causa deles eu sempre ficava à sua espera para um café e uma boa prosa.

Nossos assuntos?

Nossos filhos. Dani e Bela sempre estiveram ao nosso lado pelos restaurantes e comércios de Betim. Andávamos pelas ruas da cidade desfilando como se estivéssemos em Londres ou Paris. Melody e Chanel nos seguiam inseparáveis de sua dona.

Comíamos feijão com arroz, peixe e saladas como se fossem nosso caviar de todos os dias.

“Vamos dividir o pudim?” Era eu, gulosa como sempre, pedindo a amiga para não me deixar engordar sozinha.

“Será que tá bom?” Era ela aceitando minha oferta.

A elegância da Dra Valeska, para além de suas roupas tão bem escolhidas, era visto no trato com seus pacientes e amigas. Eles e nós a amávamos.

Cristiano, o marido, ela guardava bem dentro de si. Respeitava-o e amava-o como se estivesse cumprindo fielmente os ditames do padre no casamento. Não. Ela foi além. Foi sua cúmplice na vida acima de quaisquer dogmas religiosos.

Não vou negar que sentia ciúmes da relação dela com Dra Aparecida, a amiga das viagens e da vida clínica. Mas sei que gostava também muito de mim. Ainda bem.

Aproveito para agradecer sua secretária, Valería, que, como bem disse Dra Aparecida, foi sua fiel companheira nestes últimos e dolorosos tempos.

Agora Valeska junte-se aos seus pais e irmão e voem pelas cidades que você tanto amou. Vá a San Andrés, tome aqueles drinks que me encheram de inveja e vontade. Beba os néctares dos deuses.

Agora, Valeska, vire anjo e cuide de nós.

Vire estrela e brilhe para nós.

Adeus.

18/01/2020

(Observação: Valeska foi a grande incentivadora da criação deste blog. A ela meu muito Obrigada.)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Chegando em casa



Panelas na pia

Frutas na janela

Ovos congelados

Livros na mesa

Broa no pires

Café coado

Chuva na noite

Saudades da rua

Sem vinho tinto seco

Olhar esvaziado

Morte ao lado

Dor profunda

Revoada de ânimo

Eu aqui

Sem mim



15/01/2020

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Carta de Amor - 14

Praia dos Amores, 06 de janeiro de 2020
(Saldemos os Reis Magos)

Meu amor,

bom dia de muito sol pelas bandas de cá.

Há muito tempo não lhe escrevo. 


Hoje minha vontade, menos de saudade e mais pelo desejo de escrever, é para lhe contar algumas novidades. Talvez a mais desagradável para ti seja que passei pelo natal sem a nostalgia dos nossos tempos que sempre me acometia nestas épocas. Obviamente que não deixei de lembrar-me de ti.

Agora quero contar-lhe das minhas viagens que nem são tantas como desejava, mas que me levam para outras viagens e, essas sim, são muitas. São inimagináveis. E estou viajando por estes dias. Ontem atravessei "sua cidade". Procurei sua mesquita. Não a vi. Acho que não queria encontra-la.

Quero confessar-lhe que, recentemente, apaixonei por outro homem. Sou assim mesmo. Uma eterna apaixonada. Sempre me apaixonando e desapaixonando. Eles nem ficam sabendo. Prefiro assim. Mas, quando algum declara seu amor por mim, escondo-me feito uma danada. Ainda neste tempo assim o fiz. Tem que ter aquela tal de química. Mas não gosto das reações ácidas. Elas são insuportáveis. Prefiro as básicas. As meladas, nem pensar. Engordam e causam diabetes.(Tô brincando) 


Reações químicas muitas vezes explodem. Outras vezes queimam... E, em algumas vezes, colorem a alma. E minh’alma tem mil cores de nós.

Meu amor, como estamos envelhecendo, agora podemos brincar de verdade.

Deixemos as guerras para os imperialistas, capitalistas, terroristas, xiitas, sunitas. Sou de esquerda. Sou do lado do coração. Sou do amor extremamente genuíno. Entretanto te alerto para um detalhe: acredito em poucas coisas. Sou uma pessoa identipartária a São Tomé (adoro esta palavra latina que significa “pessoa que nasceu no mesmo dia do seu nascimento”). Obviamente que antes da conversão. 


Este "pequeno grande detalhe" me dá a certeza da impossibilidade de nossa relação. Hoje avalio que foi a forma encontrada para nos manter distanciados. Um amor impossível será sempre um grande amor. (Um dia um colega de trabalho me alertou que “a renúnia de um amor impossível também é uma forma de amar”- jamais esqueci disto)

Nesta manhã caminhei pela praia. Brinquei com meu filho e com meu neto nas areias. Aconselhei-os a pular 13 pequenas ondas e furar (mergulhando de cabeça) em 13 grandes ondas. Disse-lhes que era nossa forma de pedir às deusas e aos deuses da água que nos trouxessem de volta a paz e o amor para o Brasil. 


Agora, enquanto te escrevo, estou defronte ao mar. Daqui vejo o esplendor das espumas brancas desvirginando o verde das águas e ouço o barulho das ondas batendo nas areias calmas. 

Então viajei no passado e lembrei-me da sua Recife de meio século atrás. Lembrei-me das águas azul-turqueza do Mediterrâneo no entardecer de Fiumicino, em Roma. Lembrei-me do azul cristal dos fervedouros do Jalapão. E lembrei-me das muitas dores e dos muitos amores entre nós. Nosso tempo ficou apenas no afeto de nossas memórias. Outros casamentos. Outras reações. Algumas, na verdade, sem quaisquer químicas. Só prazer.

Ah! Meu amor... Quanta saudade de nós! Quanto medo desse amor!

Finalizando, fecho meus olhos e imagino que o barulho do mar é você sussurrando de prazer no meu ouvido ao sentir minhas ondas tocando seu corpo.

Feliz 2020 para nós.

Sua sempre amada.