sábado, 19 de dezembro de 2020

Carta para Papai Noel

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXXIV)

Carta para o Papai Noel

Boa manhã de sábado senhor Papai Noel.


Estou falando com você de uma cidade do interior do estado das Minas Gerais, no Brasil. Isto mesmo papai Noel. Aqui onde as terras são ricas em diversos minerais e, por isto, os olhos avarentos dos senhores do capital viajam por dinheiro. 

Hoje amanheci muito triste pois ontem li, aturdida, que mais um mineiro morreu soterrado na mina do Córrego do Feijão, aquela mesmo onde houve o rompimento de uma represa de rejeitos que soterrou 272 trabalhadores. Naquele dia eu estava lá pertinho, à beira do Rio Paraopeba. Meu coração parou junto com as mães, pais, namoradas e namorados, filhas e filhos e eu morri com todos eles. Até quando?

Papai Noel, neste Natal de 2020 quero pedir que voltemos nos tempos quando nossas alegrias se davam ao colocarmos nossos sapatinhos debaixo das árvores de Natal feitas com galhos colhidos no quintal; quando nossos olhares se iluminavam na expectativa da sua passagem pelos telhados ou chaminés; quando tentávamos vencer o sono para não deixar escapulir nenhuma emoção; quando nos esbaldávamos com os doces caseiros, com o arroz à grega, o frango assado, o tutu de feijão e o Crush, aquela bebida alaranjada cheia de gás.

Sabe Papai Noel, na minha rua o natal era comemorado com todas as famílias juntas. Dividíamos os pêssegos do quintal da dona Dulce para o doce, a sopa dourada da minha mãe, a farofa da tia Maria de Lourdes. Até os brinquedos eram divididos com aqueles amiguinhos de quem você esquecia. Eu nem podia imaginar os sapatinhos dos meus vizinhos que amanheciam vazios. Já naquela época eu sentia muita raiva do fato de haver diferenças entre as pessoas por causa do dinheiro. Cresci com isto dentro de mim.

Papai Noel, infelizmente, sei que meu pedido nestes tempos de isolamento, de soterramentos, de doenças e mortes, é descabido. O tal bichinho chamado Coronavírus ameaça a todos nós, sem piedade. Além do mais temos um presidente muito mau. Ele não aprendeu o que é humanidade. Acho que não brincou na minha rua quando criança senão teria aprendido o que são os valores mais importantes entre os povos. Teria aprendido a respeitar nossos antepassados, a amar nossos próximos, teria aprendido a sorrir nas brincadeiras e a chorar com os amigos. Nosso presidente nem se importa com as tragédias que veem se abatendo sobre seu povo. Ele até ri e faz piada de nossas tristezas.

Ah, Papai Noel, nesse Natal eu lhe peço apenas dois presentes: leve embora nosso presidente da morte e traga de volta nossos sonhos. Só isto.

E, enquanto aguardo os presentes pedidos, continuarei chorando pelos familiares que perderam seus entes amados tanto por esta terrível Covid19 quanto por aqueles soterrados pelo dinheiro maldito.

Mas quero agradecer por minhas doces lembranças daquelas noites quando aguardávamos a chegada do Menino Jesus na manjedoura carinhosamente confeccionada por meu pai.

Quero agradecer também, Papai Noel, o olhar do meu netinho a me convocar para brincar. Agradecer as mãozinhas dele a me arrastarem atrás de uma bola e gritar “gol” quando a bola passa debaixo das minhas pernas bambas.

Papai Noel, obrigada e, por favor, atenda aos meus pedidos.

E sem abraços porque você é do grupo de risco para a Covid19.

Assinado

Maria do Rosário Nogueira Rivelli

Conselheiro Lafaiete, 19 de dezembro de 2020.



terça-feira, 24 de novembro de 2020

Conto: Carta da Casa 156

 (Pand&mia XXXIII)



Campo dos Carijós,julho/2020


    Bom dia leitores

Quero começar esta carta dizendo a vocês que nestes tempos de pandemia fui ocupada por uma antiga moradora e suas duas filhas. Desde então lembranças de outros tempos passaram a povoar-me.

- “Já te falei pra respeitar os mais velhos e você foi comprar chup-chup na dona Guta com as moedas antigas do seu pai! Quando seu pai chegar vou contar tudo prá ele!”

Foi assim que vi Dona Mariinha gritando e quase arrancando as orelhas do filho quando este chegou todo serelepe dentro de casa chupando aquele gelo colorido e fazendo inveja no irmão mais novo.

Numa outra vez Zeugênio, com seus amigos da rua, após jogarem pelada num campinho próximo a uma escola primária, resolveram atirar pedras nas janelas da referida escola. Disputavam quem conseguiria quebrar o maior número de vidraças. Devo lembrar que o prédio daquela escola acabara de ser construído. Então, depois de alguns minutos, ouvi o tilintar do telefone. O juizado de menores estava com todos os meninos no fórum e queria a presença dos responsáveis. Naquele momento antecipei a dor no estômago do pai que se preocupava sempre em dar bons exemplos aos filhos. Mas Zeugênio parecia que tinha o diabo no corpo. A mãe não parava de rezar para que o menino criasse juízo.

E, por falar em telefone, eu ainda era bem pequena quando ele chegou. Foi uma festa. Todos queriam vê-lo e assustavam com o som de suas chamadas. Eu prestava atenção em tudo. Foi o maior alvoroço na rua. Tive a honra de ser a primeira casa daquela rua a ter um telefone. Todos queriam falar naquele aparelho. Eu ouvia tudo. Amores desfeitos; encontros marcados; avisos de doenças e até de mortes. O número era de conhecimento de todos os vizinhos. Ainda hoje o “dois cinco sete meia” soa doce dentro de mim. Dona Mariinha e Sr. Nelson ficavam sabendo de todos os acontecimentos da vizinhança uma vez que, as pessoas se fazendo agradecidas, concluíam que era de bom grado contar as conversas e as novidades. Eu ouvia tudo. Ficava calada com minhas paredes.

Passado mais de meio século, aqueles que me frequentaram, ainda sorriem lembrando-se do aparelho bege acinzentado do tilintar estridente. E, para minha alegria, ainda hoje ele é peça de minha decoração.

Entretanto, bem antes do telefone, fui agraciada com dois outros aparelhos eletrodomésticos, cuja ordem de chegada não me recordo. Acho que tantos anos vividos embaralharam minhas reminiscências. Mas lembro-me bem da geladeira. De tão grande quase não coube dentro da minha cozinha. Era no tom rosa claro, da marca Hotpoint. Dona Mariinha não fez tanto caso daquela aquisição. Acostumada que estava com os alimentos fresquinhos e com os modos de guardar as carnes dentro de enormes panelas de pedra ou latas de vinte litros, muito usadas naqueles tempos.

As crianças amaram em especial as formas de fazer de picolés. Zeugênio nem precisou mais comprar chup-chup da dona Guta com as moedas antigas do pai. E toda a criançada se lambuzou com os picolés.

Festa mesmo se deu foi com a compra da televisão. Minha sala de menos de dez metros quadrados chegava a acomodar até vinte pessoas e a disputa por um lugar ao chão era imprescindível. Todos queriam ver aquelas imagens de chuviscos em tons preto e branco, que falava, cantava e dava notícias. Até dona Guta que nesta época já estava ficando surda, atravessava a rua e, sendo a mais velha vizinha, tinha seus privilégios. O volume devia ficar no máximo e uma cadeira lhe era reservada.

“Simplesmente Maria” foi a novela mais querida e, em seus trezentos e quinze capítulos, por quase um ano de duração, trouxe muitas alegrias e muitas lágrimas a molharem meu chão de tacos encerados. Todos calados defronte daquele cubo falante para ver e ouvir as dores e amores de seus personagens.

Porém meus melhores personagens foram aqueles que habitavam em mim. E devo confessar que um dia muito especial para mim se deu justamente numa data dedicada aos mortos quando nascera o filho mais novo do casal. Ainda estávamos em 1963. Ganhou um nome duplo. Luiz enquanto nome de rei francês e Paulo assim como o apóstolo de Jesus Cristo, nascido na Cilícia (atual Turquia). Fiquei muito lisonjeada e me enchi de calor para acolher o meu primeiro filho.

É óbvio que acompanhei todo seu desenvolvimento. Ele cresceu rápido e acho que, entendendo os significados dos seus nomes, tão logo se formou em nobreza e ética. Até hoje agradeço aos deuses pela felicidade de tê-lo concebido dentro de mim.

Mas, leitores, quero falar de outras situações presenciadas por mim durante todos aqueles longos anos em que abriguei toda a família mais algumas moradoras temporárias e outras tantas visitas. E quero contar também dos tempos dos teatros no meu pequenino espaço entre a porta de entrada lateral e a casa vizinha a mim. Palcos enfeitados, ensaios rigorosos, fundo musical de flauta, trombone ou violão, arranjos sonoros com folhas de zinco, cortinas feitas com lençóis e colchas coloridas e textos com atos de histórias religiosas. Tudo impecável. Eu ficava ainda mais orgulhosa com a chegada de moradores até de ruas próximas.

Outra feita, em épocas de inverno e férias, eu me tornava local de reuniões para as festas juninas. Distribuição de tarefas; arrecadação de prendas para as barraquinhas; confecção de bandeirinhas coloridas; escolha dos pares para a quadrilha. Eu ficava orgulhosa e atenta a tudo. Foi assim que presenciei muitos namoros acontecerem, noivados e casamentos. Jamais esquecerei os fatos que por ali compartilhei.

Mas quando, às vezes, minhas janelas e porta não viam o sol, eu fechava meus olhos, tampava meus ouvidos e me recolhia. Era o tempo em que Dona Mariinha se entristecia. Deitada por longas semanas ela achava que era culpada por todas as injustiças, por toda miséria, por todos os pecados do mundo e carregava aquela culpa no seu corpo que, a cada dia, se encolhia mais. Nessas ocasiões todos os filhos deitavam ao redor dela. Pediam que ela levantasse. Tentavam tirar dela aquelas ideias de ruinas. Ou silenciavam. Apenas queriam estar juntos dela. Toda a rua ficava sabendo e também se recolhiam entristecidos. Assim ela ficava até o chegar da primavera. Então, de forma exuberante, seus olhos brilhavam, sua face ganhava vida e seus gestos ganhavam atitudes. Cuidava dos filhos e de mim com tal esmero a me deixar toda encantada. Parecia querer recuperar o tempo perdido. Ela se enchia de forças, cantava, plantava flores nos meus canteiros e toda a rua resplandecia com ela. Voltava aos terços à noite (eu achava o rosário e as ladainhas desnecessárias) com o marido e os filhos e a igreja de Nossa Senhora da Conceição passava a vê-la com a frequência de antes. Eu ficava quietinha com ela por ali. Sabedora que tudo voltaria a acontecer nos próximos anos. Resignada com o meu dever de protegê-la para sempre assim como o marido, funcionário público e músico que, apesar das dores de uma úlcera gástrica a lhe tirar o sossego, dedicava todo o amor àquela mulher.

Agora quero lhes contar outro fato que marcou minha história. Lembram-se do palco do teatro, que era tão só o estreito espaço de terra? Pois bem, ele acabou virando uma bela garagem durante a primeira reforma que foi feita em mim. Mais quartos, uma cozinha grande, um banheiro moderno e eu ganhei ares de uma nova e bela casa embora me mantendo bem pequenina.

Ainda me lembro da compra de uma Rural Wyllis nas cores branca e azul. Foi a consagração da família. Muitos passeios com todos dentro dela. Às vezes ainda levavam um ou outro vizinho além dos sete filhos. Foi assim que conheceram uma fazenda em Gagé, uma prainha nas curvas do Rio Paraopeba próximo a Ouro Branco, o arraial de Crockat de Sá, as histórias da Inconfidência Mineira e tantas outras localidades aqui por perto.

Numa noite escutei o choro de uma das meninas e ela confessando à irmã que sentira muito dó dos inconfidentes e de Felipe dos Santos que tanto lutaram por nossa liberdade e foram cruelmente assassinados. Não sabia se chorava com ela ou se ria daquilo. Continuei muda.

Pois bem, se eu crescia em tamanho e elegância por ouro lado, com os filhos crescendo, estudando, trabalhando, uma filha já caminhando para o casamento, eu ia me esvaziando.

Quando a filha mais nova saiu para estudar numa cidade distante, rezei com dona Mariinha por muitas noites ao pé de Nossa Senhora do Rosário, ou de Nossa Senhora da Conceição, ou do Sagrado Coração de Jesus. Ela acendia velas e, em silêncio, pedia a Deus proteção para a menina. Calei-me diante do seu pressentimento de que aquela filha não voltaria mais. Logo a seguir mais uma filha iria embora. Esta se casou. Meus quartos foram ficando vazios. Confesso que também chorei naquelas ocasiões.

E como dizem os poetas, o tempo é implacável.

De repente todos os filhos cresceram e cada um voou no seu pedaço de céu. Sr. Nelson e dona Mariinha ficaram sós.

Tenho sobrevivido de minhas lembranças nestes tempos de isolamento, de pandemia e de mortes. Entretanto não me furtarei à constatação de que este Coronavírus se, por um lado tem sido tão impiedoso, por outro lado tem promovido inúmeras transformações dentro das pessoas. Sou testemunha. Hoje acordei com o colorido de flores no quintal. Dentro de mim exalava o cheiro de rosas. O som de uma gargalhada ocupava-me por inteira. Raios de sol iluminavam todas as imagens dos Santos e Santas espalhadas em minhas paredes, em oratórios ou em mesinhas delicadamente preparadas para recebê-las.

Então acompanhei o espectro de Dona Mariinha pelos quartos onde as netas dormiam e, a seguir, pelo quarto onde ela dormira por quase quarenta anos. Ali, encolhida como ela própria o fazia, dormia a filha que havia ido embora. Neste momento presenciei os afagos da mãe sobre o corpo da filha enquanto entoava canções de ninar.

Abraços amorosos da

       Casa 156

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Ela podia voar...

 

(Delicadezas em Tempos de Coronavírus XXXII)



 
A menina acordou no meio da noite.

Nunca havia visto até então uma campina. Mas ela estava lá. Era uma campina verdinha como nos filmes de TV que gostava de assistir. Lembrou da campina onde o Bambi pastava com sua mãe. Então ela começou dando largas passadas por entre o capim. De repente sentiu que seus pés não estavam mais sustentando seu corpo. Não havia mais o solo úmido e macio sob seus pés. O capim esbarrava nos joelhos. Uma brisa fria tocou seu corpo pequenino.

A menina plainava a meio metro do chão. Acordou dentro do sonho e concluiu num sorriso de felicidade: “Eu estava sonhando”.

Entretanto a sensação era tão real que logo reconciliou o sono dentro do sonho para continuar seu voo. E tão logo fechou seus olhinhos já estava novamente plainando nas campinas de seu sonho. Abriu os braços num instinto de equilíbrio como as aves e voou. Voou longe.

Na manhã seguinte não quis contar aquela experiência para ninguém.


“Foi verdade. Eu voei. Eu posso voar. Eles não vão acreditar. Melhor ficar calada”.

A sensação trazida pelo sonho continuou na menina que teve a certeza de poder voar. Bastava correr, abrir os braços, dar largas passada e fechar os olhos.

Mas um fato estranho aconteceu num dos seus voos. Num trecho do caminho encontrou com dois cavaleiros. Um deles estava montado num pequeno cavalo e tinha uma das pernas quase encostada ao chão. A menina parou de plainar para cumprimenta-los. Logo ficou estarrecida ao ver que a perna pendente estava descoberta e era exageradamente grande. A perna estava escura, com muitos pelos que faziam pensar em carrapatos ou outros insetos, alguns deles voadores. Curiosa feito ela só a menina foi logo perguntando o que era aquilo. O acompanhante, até então quieto, respondeu que “O Sô Tunico tem uma doença na perna que chama pata de elefante. Por isto ele não consegue mais andar. Eu ajudo ele”.

Era demasiada pouca aquela resposta. Aquela perna, mais parecendo um cupinzeiro, deixou a menina voadora cair por terra. Perguntou o que eles estavam fazendo por aquelas bandas de campina e teve como resposta “estamos procurando quem nos dê de comida e de pouso”.

Deram bom dia e continuaram a viagem nos passos lentos de uma perna maior que todo o resto do corpo.

A menina sentou-se por ali e ficou a pensar. Pensou. Pensou.

Levantou num repente. Abriu os braços. Deu grandes passadas e voou. Passou acima dos dois cavaleiros. A tarde logo chegaria. Era preciso chegar em casa antes do fim do dia. Queria pesquisar sobre aquela doença tão esquisita. “Uma perna de elefante?”

Ligou seu PC de última geração e digitou “doença perna de elefante” e, num piscar de olhos encontrou a resposta.



“Elefantíase é uma doença rara, transmitida por mosquitos infectados com larvas do parasita chamado Wuchereria bancrofti que entram na corrente sanguínea e se instalam nos vasos linfáticos, daí outro nome da doença de “Filariose linfática”.
Às vezes são tão grandes os edemas que podem dificultar os movimentos.
Na maioria dos casos a doença é assintomática. Mas podem aparecer edemas nas pernas e braços, edemas nos testículos e mamas. Dores musculares e de cabeça, calor e vermelhidão nos membros inferiores, coceira na pele e mal estar generalizado.
A doença aumenta o risco de infecções bacterianas que endurecem e engrossam a pele (elefantíase).
A elefantíase já foi encontrada em mais de 80 países principalmente na África, Ásia e Américas Central e do Sul.
Existe tratamento, mas se houver demora para o diagnóstico e início do tratamento, a doença pode causar sequelas permanentes de elefantíase.
O tratamento é feito com antiparasitários e, em caso de infecções secundárias, há necessidade também de antibióticos.”


A menina leu. Releu. E muito pouco entendeu. Seus entendimentos eram outros e suas dúvidas eram muitas.

“Como pode o homem viajar pelo espaço, pisar na lua e ainda ter tantas doenças evitáveis?”

“Como poderia haver tantas pessoas sem teto e sem alimentos?”

“Como pode haver tantas crianças passando fome nos países pobres e tantos desperdícios nos países ricos?”

Acabou adormecendo de tanto pensar.

E nos seus sonhos ela estava novamente sobre uma campina. E a noite já quase engolia o dia. Lembrou do Sô Tunico e seu companheiro. “Onde estariam naquela hora?”

Com uma varinha de condão fez aparecer uma casinha iluminada com lampião na porta e foi para lá que os dois viajantes caminharam. 

Chegaram; bateram à porta. Ali morava um casal de idosos. Os filhos já haviam partido para outros pousos. O casal acolheu os dois desconhecidos.

Havia um fogão onde a lenha verde crepitava. O cheiro bom de broa de fubá com rapadura e canela pairava pela casa. O casal deu-lhes de comer, ofereceu duas camas com lençóis limpos e água morna para limpar a “pata de elefante”.

Nesta hora, a menina sentou-se no galho de uma árvore a observar o encontro ajeitado. Viu as sombras bruxuleantes do fogo nas paredes da casa.

Acordou com o cheiro de broa de fubá que sua mãe havia feito. Era hora de ir para a escola.

A menina sentiu algo diferente em seu pequenino ser. Esboçou um sorriso, abriu os braços e, pela primeira vez, sentiu-se livre no seu querer. Ela podia voar.

E nessa hora entendeu seu sonho.









 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Um amor para Teresa



(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXXI)

Teresa havia se apaixonado outra vez. 

Desde que fora contratada como motorista terceirizada junto à secretaria de turismo na prefeitura de sua cidade vivia fazendo viagens com assessores da mesma. Foi então que conheceu Pedro. Era um homem com seus sessenta anos, charmoso, divertido e muito inteligente. Quando soube que era divorciado, deu asas à sua imaginação embora ficasse muito tímida perto dele. Fazia seu trabalho com respeito e eficiência. Acabou ficando como motorista exclusiva da referida secretaria.

Em junho daquele ano fora convidada para levá-los numa viagem à cidade de Santo Antônio do Itambé. Imediatamente respondera com um sim e com o desejo de que ele fosse também. E ele foi. Alguns convidados, não integrantes da secretaria, também foram e viajariam em veículos próprios. Um total de doze pessoas em três carros.

Viajaram na quinta-feira, finalzinho de tarde. Aqueles caminhos eram novos para Teresa que há muito gostaria de passar por eles uma vez tratar-se de uma extensa região de ecoturismo. Teresa sempre fora amante da natureza, mais ainda pelas cachoeiras.

Pois bem, lá se foi nossa moça apaixonada com seu príncipe encantado nada novo. Ela ao volante, ele ao lado. Dois olhos foram poucos pra tanta beleza aos arredores das estradas. A Serra do Espinhaço se estende por todo o leste de Minas Gerais, do centro do estado chegando até a Bahia, cobrindo toda o Vale do Jequitinhonha.

Um jantar esperava o grupo. Tudo arranjado pelo secretário que já havia feito aquela viagem outras vezes. Frango ao molho pardo, angu, feijão e arroz foram apresentados em suas panelas de pedra sobre um enorme fogão a lenha na cozinha da anfitriã daquela primeira noite.

Depois cada um que teve a noite livre, mas com a orientação para que dormissem bem e acordassem dispostos. Na manhã seguinte, haveria um café reforçado e a subida ao Pico do Itambé que iniciaria às sete horas. Teresa, após ser liberada de seu trabalho, quis dar uma volta pela praça, afinal era noite de 13 de junho e a comunidade fazia festa para seu padroeiro.

Entrou na pequena matriz, procurou um banco e sentou-se. Olhou bem nos olhos de Santo Antônio e pediu proteção para aquela paixão que a arrebatara. Não gostou do silêncio do santo. Aquilo seria mau agouro? Pensava assim enquanto um homem bêbado, falante e sorridente aproximou-se dela. Estava vestido com extravagância, gestos amplos, hálito etílico e muito amistoso. Aquele homem lhe daria sorte, concluiu ela. Então Teresa sorriu de volta. Logo saiu dali. 

Vencida pelo cansaço caminhou de volta ao pequeno hotel e deitou. No meio da noite acordou e não conseguiu conciliar o sono novamente. Levantou, saiu do quarto e caminhou lento pelo corredor cheio de portas. Sabia qual era o número do quarto dele. Bateu e chamou-se baixinho pelo nome. Ele abriu a porta, deixou-a entrar e se rendeu ao pedido dela. Teresa caminhou até a cama estreita e deitou ao lado dele.

Todos muito bem dispostos na manhã seguinte. O sorriso de Teresa foi revelador. Mas, se alguém viu ou ouviu, nada comentou. Estava na mesa um café com muitas quitandas, queijos e leite fresco. O guia aguardava do lado de fora, no meio da ladeira. Mochilas nas costas, muita água e frutas, calçados adequados, roupas leves. A caminhada até o início da trilha estava apenas começando. O grupo era heterogêneo nas idades. Jovens e não tão jovens. Uns dando mãos aos outros em trechos de erosão ou subidas pedregosas. Teresa logo sentiu-se exausta. Mas não queria fazer feio.

Ainda no pé da serra muitos bois e vacas obstruíam a passagem.

- “É um fazendeiro que se negou a sair daqui quando a região se tornou Parque Estadual do Pico do Itambé. Ele mora sozinho com o filho.” Informou o guia.

Pai e filho não aceitaram o “bom dia” da turma. Teresa observou que ambos estavam muito envelhecidos e parecia que um era a sombra do outro. Guardou essa imagem na sua cabeça.

Atravessada a propriedade privada o grupo continuou a subida. Num descampado pararam para descansar, tomar água e fazer um breve lanche. Já passava do meio dia quando retomaram a andança. Por volta das treze horas as mulheres começaram a pedir arrego. Ainda estavam na metade do morro. Teresa aliou-se aos desistentes. E Pedro não se intimidou em se unir aos desertores da escalada.

Apenas quatro homens continuaram a trilha. Disseram que não perderiam a lua cheia no ponto mais alto do Pico. Entre eles um médico ortopedista, esposo de uma das assessoras, falou ao grupo da importância de um cajado funcionando como um terceiro joelho vicariante, principalmente na descida. Teresa nunca mais esqueceria de levar seu cajado nas caminhadas futuras.

Na volta, o grupo desistente foi surpreendido por um casal de jovens de aparência escandinava que, com suas longas pernas brancas, musculosas e magras, davam enormes passadas. Disseram, com gestos e poucas palavras em português, que estavam atrasados pois a lua cheia nasceria em poucas horas. Levavam barracas e demais utensílios para dormiriam lá em cima.

“Eles n
ão tem medo dos animais silvestres nem do frio”, pensou Teresa. 

Após o banho e um descanso, alguns do grupo desceram a ladeira e se misturaram aos demais visitantes e moradores da pequenina cidade. Havia uma feirinha. Teresa encantou-se com os trabalhos manuais feitos pelas mulheres de lá. Chamou-lhe atenção os coloridos exuberantes dos bordados. Lembrou do homem na igreja na noite anterior. Riu sozinha.

No dia seguinte, domingo, um requintado almoço num restaurante rústico, regado com deliciosos sucos de frutas locais. Um breve descanso e a volta para a cidade de origem.

Ainda hoje, quando Teresa se lembra daquela viagem, não consegue colocar os fatos e os sentimentos em ordem. Tal desordem lhe foi acometida por aquela paixão. Entretanto alguns fatos acontecidos marcaram-na de forma deliciosa.

Mas agora uma outra paixão lhe trouxe o desejo de voltar lá. Estudante de letras e amante da literatura brasileira, conheceu a obra do cidadão e poeta, Adão Ventura, nascido ali, em Santo Antônio do Itambé, com seus versos traduzindo as dores pela cor da sua pele negra, por seu nascimento negro, por sua história negra, e por sua morte negra.

Lembrou de um de seus poemas:


Das biografias

em negro

teceram-me a pele.

enormes correntes

amarram-me ao tronco

de uma Nova África.

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

mas o meu sangue

está cada vez mais forte,

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis.



E Teresa já começou os arranjos para sua viagem.

Obviamente que não irá sozinha.







31/10/2020

domingo, 1 de novembro de 2020

Biografia ao reverso


 


(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXX)



À beira da morte dei um sorriso

Pouco antes havia decidido gargalhar

Com oitenta anos queria nadar

A água me levou de volta

aos quarenta anos

Estava me divorciando

Do marido nada sabia

Era lindo e

da cor do pecado

A filha nascida antes do casamento

A cara do pai


Ele me encontrou na escada.

Eu saia de outro casamento

Um filho pequeno


Formei médica bem jovem

Nada da vida sabia


Sai de casa menina

Cresci mais do que devia


Criança

senti-me desamparada

Foi preciso esvaziar o bucho da mãe

Nasci chorando



31/ 10/ 2020 

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Menina de família



(Delicadezas em meio ao Coronavírus - XXIX) 



Menina, 

vá limpar a casa

Menina,

bota a roupa de molho

Menina,

vai apanhar a roupa

Vem chuva


Menina,

pare de ler esse livro

Só tem o que não presta aí

Vai rezar um terço 

Menina,

não vai à escola hoje

Tem missa na capela


Menina,

não fica aí parada

Mente vazia é oficina do diabo

Feche essa janela menina

Rua não é lugar de gente decente

Menina,

toma benção a seu pai

Menina,

vá tomar banho,

olha a piolhada


Menina,

levanta dessa cama


Menina

foi embora

Virou mulher

de rua.


30/10/2020

Foto acima da coleção particular da autora. (exposição dos trabalhos feitos pelas pessoas portadoras de sofrimento mental de BH.)




sábado, 3 de outubro de 2020

Crônica: A construção da minha casa


(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXVIII)



Amo viajar. Mais que viajar amo as janelas dos veículos por onde viajo. Por isto não gosto de viajar de avião. Aquelas janelinhas que, por vezes, estão no assento do outro passageiro. Prefiro ônibus, trens e carros. Melhor seriam as charretes e os carros de bois, pois assim viajo nas primeiras assistindo o rebolado dos cavalos e com uma visão de trezentos e sessenta graus e, no segundo, apesar do som triste dos chiados das rodas e os cabrestos da junta de bois, aprendo sobre o boiadeiro solitário a guiar seu caminho. Mas são através das janelas dos ônibus por onde faço minhas grandes viagens.

Foi me vendo morar naquela casa de janelas altas, ou naquela de portas largas, ou quem sabe naquela toda colorida, ou naquela onde o sol entra nas tardes ou nas manhãs, que fui decidindo como queria minha casa. Já morei em mais de duas dezenas de casas e apartamentos. Mudar sempre me foi necessário. Talvez tenha sido a maneira que encontrei de estar no mundo. Ou a maneira de mudar externamente já que não conseguia mudar cá dentro de mim. Só sei que morei em muitas cidades, em muitos bairros e amava fazer assim. 

E foi assim que comecei a construir minha casa ao longo da vida, como uma colcha de retalhos tecida no percurso dos anos com cada peça da estrutura física que eu vim colhendo através da beleza no olhar e da alma.

Dos quintais da minha infância trouxe as amoreiras, o abacateiro, as mangueiras, as bananeiras, as parreiras de maracujá foram presente de um amigo de Nova Era, os pés de limão galego, de limão-capeta ou limão-rosa foram plantios meus e, mais recentemente uma amiga me trouxe uma muda de cajueeiro. Das montanhas do Espírito Santo algum passarinho trouxe semente de café que, nesta semana, floriu e perfumou tudo em volta.  Do cerrado trouxe pés de ipê e da estrada para minha terrinha na Zona da Mata Mineira trouxe uma muda de cedro. Aqui já estavam o magnânimo jatobá e dois pés de angico. 

Depois vieram os hibiscos, a buganvília alaranjada, as orquídeas nos troncos das árvores, a grama em volta da casa. E ainda virão muitas outras flores.

A decisão de retomar a obra da minha casa viera com a visita à casa de um amigo em Muriaé. Nunca havia me encantado tanto com uma construção. Parecia que a casa havia sido feita com os retalhos da minha vida. Dela, além do desejo de construir minha casa, vieram retoques importantes como a sala com pé direito alto para refrescar todo o ambiente, as janelas no alto para entrada de claridade, os tapetes de ladrilhos hidráulicos, a grande quantidade de vegetação no entorno, a rusticidade dos materiais empregados na construção. E por ai afora. A casa do meu amigo virou capa de revista e já é famosa também fora do Brasil. Meu amigo pneumologista virou paisagista por profissão. Ele e sua esposa completam a elegância da casa.

Pois bem, continuemos com mãos à obra porque aquela é a casa do meu amigo e esta será a minha casa.

Da casa do primeiro homem libanês que conheci na minha vida, no Bairro de Bom Clima em Juiz de Fora, eu trouxe o clima bom do pé da serra e a coalhada no café da manhã.

Dos apartamentos apertados do centro de Juiz de Fora eu não trouxe as janelas voltadas para o interior dos prédios. Sem privacidade e sem passagens para o vento correr pelos espaços. Quero amplos corredores para me esbaldar correndo com o vento.

Já do primeiro apartamento em Betim trouxe o exagero na largura e altura das janelas. E do segundo trouxe o estilo e o som mineiro dos trens de ferro a correrem pelos trilhos. Daqui da minha obra ainda posso ouvi-los apitar e chacoalhar lá embaixo serpenteando o rio Paraopeba.

O fogão a lenha veio comigo de todas as casas das Minas Gerais onde não recusei os cafés com rapadura, as broas, o queijo e a deliciosa rosquinha de sal amoníaco. Entretanto, pensando bem, este fogão sempre morou dentro de mim desde a casa onde vivi entre os dois e cincos anos de idade. Era pequeno, feito com barro branco ou pintado de vermelhão, não me lembro.

Mas o construtor do meu fogão colocou nele melindres de cidade grande e eu coloquei nele as panelas de pedra de Santa Rita de Ouro Preto.

Já a churrasqueira não trouxe de lugar algum. Foi um agrado para o filho, a nora e as filhas. Mas devo confessar que ela ficou jeitosa e caprichosa.

Durante a realização do projeto arquitetônico, há mais de dez anos, insisti com o arquiteto para que todos os quartos tivessem janelas abertas para o sol nascente. Não foi possível. Apenas meu quarto terá o sol da manhã. Os dois outros não terão sol. As janelas estão voltadas para o sul e, segundo os modernos aplicativos dos raios solares durante todo o ano, apenas nos dias 30 e 31 de dezembro de cada ano, a rotação do planeta propiciará a entrada do sol neles. Não vou me entristecer com esse fato.

Já o espaço social não tem paredes. Todo aberto como se fosse o belíssimo barracão de fundos onde morei no bairro Floresta em BH no início dos anos oitenta. O projeto aproveitara um pequeno terreno nos fundos da casa e construíra um bucólico barracão de dois andares. Embaixo, num desenho em “L”, todo aberto, estava a sala, a copa, a cozinha, um pequenino banheiro social debaixo da escada, e uma lavanderia minúscula. Em cima dois quartos e um banho social. O bom gosto da arquiteta deixou sua marca registrada. Jamais esqueci daquele mini barracão encantador. 

No chão da minha sala, todo em cimento queimado da cor natural, coloquei um enorme tapete de ladrilho hidráulico nas cores azul, vermelho e amarelo que trouxera, bem antes da visita à casa do meu amigo, das igrejas por onde passei, da casa e do salão paroquial de Brás Pires, das antigas fazendas de Minas Gerais e de tantos outros lugares quando meus pés sentiam o frescor da temperatura hídrica. Sempre tirava meus sapatos para aproveitar aquela sensação.

Os cobogós foram um pedido meu. Eles me trarão privacidade. Sempre os via por ali e por aqui e nunca havia lhes dado importância. Devo dizer que a parede feita por eles ficou perfeita e ficará ainda mais quando eu enchê-la de flores.

Ainda não sei como será minha estante. Minha arquiteta e designer, hoje minha nora, tem me tranquilizado. “Farei sua estante”. Quero uma estante onde eu possa guardar e proteger meus livros. Quero espalhá-los ou deixa-los à mão e a vista. São os livros que me deram, gentilmente, todos os conhecimentos que carrego comigo. Tem sido, através deles, que choro ou alivio minhas dores. Dentro deles estão os personagens com os quais venho me interagindo por toda a vida. Certamente que terei uma vasta biblioteca.

Para segurança da casa e minha proteção tenho os cachorros de rua que me adotaram. Antônio, quando veio viver comigo, além de sua delicadeza, do gosto pelo vinho e dos pratos deliciosos, me presenteou com um casal de filhotes pastores-belgas, minha raça preferida. A família canina cresceu e toda ela vive em perfeita harmonia nos latidos e nas travessuras. 

Agora faltará a confortável poltrona da vovó – uma vovó bem moderna - onde beberei meus vinhos, lerei meus livros e de onde verei o por do sol. Entretanto não faltarão os familiares em dias de festa. Não faltarão meus vizinhos e vizinhos para a “jogatina do buraco”. Nem faltarão os amigos e amigas que trouxe comigo ao longo dos tempos.

E fico esperando que meu filho, minhas filhas, minha nora e meu neto, em seus voos, façam muitas e demoradas conexões por aqui.

03/10/2020


Toda semelhança não é mera coincidência



Ainda do livro "Canção Inacabada - A vida e a obra de Victor Jara" morto no golpe pela ditadura de Augusto Pinochet em 13 de setembro de 1973. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

"Ao mesmo tempo, a ideia do diálogo estava se tornando difícil, senão impossível...................... Até em nível pessoal ou com os nossos vizinhos era quase impraticável uma maior aproximação com gente que procurava sabotar o governo* e fechar as portas às melhorias que estavam sendo feitas para as maiorias menos favorecidas; essas pessoas chegariam a qualquer extremo para manter seus confortos e privilégios, inclusive conspirar lado a lado com os fascistas." (pag.290)


* A autora está se referindo ao governo de Salvador Allende eleito democraticamente pelo povo numa das maiores manifestações populares no Chile.



quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Crônica: Aniversários



Setembro chegando ao fim e tive um susto ao ouvir de minha filha que mora longe que virá para o meu aniversário, no comecinho de outubro. Só que este ano resolvi pular a data e não fazer aniversário. Talvez porque a época não esteja mesmo favorecendo alegrias, talvez porque, antes de chegar aos setenta, eu tenha resolvido por em prática a mágica do Chico Adrião, nosso folclórico personagem que, já velhinho, dizia, sempre sorrindo, que sua idade estava minguando, que estava contando seus anos pra trás. 

Chico Adrião, de batismo Francisco Adriano, acho que realmente descobriu a mágica, porque povoa a memória de várias gerações sempre do mesmo jeito: baixinho, de barba e cabelos muito brancos, um sorriso largo em que se percebia a falta de dentes, carregando nas costas um velho saco cheio de latas de vários tamanhos, entre tantas, as azuis de gordura de coco Carioca, com um coqueiro no meio, as amarelas de óleo de cozinha Salada, de doces em compotas Cica, presentes que ganhava nas casas onde passava pra tomar café. 

Não raro, estendia a mão com uma lata dentro de outra, porque podia parecer, mas não era bobo: café quente servido em lata queima a mão. E as latas eram sempre limpas e redondas: não aceitava presente de lata em outro formato, talvez porque era mais fácil arrumar as redondas certinhas, uma dentro da outra, sem fazer muito volume no saco. Junto com as latas, muitas vezes vinha também um vidro ou uma lata com tampa, onde ele trazia água da mina do Pau d’Alho, água benta porque, segundo ele, havia uma imagem de Nossa Senhora em cima do morro onde brotava a mina, uma santa fujona que levaram para a igreja e que voltou sozinha para a morada antiga. 

Ninguém nunca viu tal imagem, mas todos viam quando ele aspergia a água em alguns cantos da cidadezinha, repetindo rezas que ninguém entendia. No fundo de minha imaginação de menina, achava que ele já nascera assim, velhinho, e que realmente conseguia fazer a idade minguar, mágica que vou tentar reproduzir esse ano, porque não estou vendo graça nenhuma em comemorar 68 num ano com uma cara tão fechada.

Não me lembro de nenhuma festa de aniversário de criança na minha infância: na minha casa, nada de bolos, docinhos vários ou presentes. Mamãe matava um frango, que era servido ensopado, acompanhado de arroz e angu. Em volta da mesa os irmãos se reuniam, rezavam juntos pelo aniversariante, oração que sempre terminava com um pedido: Nossa Senhora do Rosário, rogai por ele. 

Depois que todos almoçavam, servia-se a sobremesa: doce de leite picado em pequenos losangos, três para cada um, falta de educação pedir mais. O que não queria dizer que bastasse: a gente sempre surrupiava muitos, às escondidas, da lata de doce guardada em cima do armário. E na primeira quinta-feira do mês, dia de todo mundo confessar, os ouvidos do velho padre deviam ficar cansados de ouvir o pecado comum: peguei umas coisas escondido lá em casa. Não era uma questão de miséria, de regrar o que comer: era apenas um modo de educar para a sobriedade, para evitar a gula e o desperdício. Afinal, uma família grande, que crescia a cada ano, precisava aprender a ter moderação à mesa. O que não impediu minhas duas irmãs do meio de comerem quase dois quilos de doce de leite, de uma só vez, bem escondidas no quarto da mamãe.

Mas ainda assim éramos privilegiados. A maioria dos meus amigos de infância nem sabia o dia do aniversário.

Alguns adultos, sim, comemoravam a data: pessoas com certa representatividade naquela pequena sociedade do interior. E os adultos convidados levavam os filhos, não sem antes passar um bom tempo ensinando boas maneiras: não vai pedir nada! Não mexa em nada da casa dos outros! Fique quieto, perto de mim! E olha a esganação: só pode comer três docinhos; depois não aceite mais, só agradeça! E a gente via as bandejas passando com pés-de-moleque, doces de coco, de mamão, de cidra, de leite, delícias com cheiro de cravo e canela e, educadamente, dizíamos: obrigada, estou satisfeita. E lá se iam as bandejas, acompanhadas por nossos olhos compridos e gulosos . 

Essa era a regra, toda boa mãe ensinava a mesma coisa, a mesma medida. O que não impediu minha prima de comparar o que cada um comia e, no meio da festa, falar alto e bom som: "Aí, mamãe, fala com a gente pra comer três, mas já comeu quatro, né?"

Pois eram assim os aniversários dos privilegiados que podiam comemorá-los. E como disse o poeta, a gente era feliz e não sabia.
E agora que não há mais a regra de três docinhos, há a de regular os amigos: três, quatro, evitar aglomerações, usar máscaras, álcool gel, nesse pandemônio que estamos vivendo, mas,graças a Deus, ainda vivendo. Mas resolvi pular a data, resolvi fazer a mágica, voltar no tempo, minguar a idade. 

Com sua licença e sua bênção, Chico Adrião!!!



Beth Lima (Professora de Língua Portuguesa, Literatura e Redação) - Barbacena M.G.

Observação: Ao ler esta crônica não tive dúvidas de que gostaria de publicá-la neste Blog e fiquei muito honrada com a autorização de Beth Lima, minha prima, conterrânea  e contemporânea. 
Beth, obrigada pelo presente.

24/09/2020






sábado, 19 de setembro de 2020

Crônica: Que encantos tem aquela blusa?

                                   


(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXVI)



Mariângela abriu uma das portas do seu guarda-roupas. Várias blusas, vestidos, saias, calças compridas e écharps, dependuradas numa variação de cores e modelos. Abrindo espaço entre elas seus olhos foram imediatamente convocados por uma das peças.

Teria ido procurar um creme, talvez seu desodorante preferido, um brinco ou algum objeto para limpeza e cuidado das unhas? Já nem se lembrava mais o porquê de ter escancarado aquela parte do seu guarda-roupas.

Mas, despretensiosamente, fixou os olhos naquela blusa. Então uma enxurrada de lembranças lhe chegou através dela.

Quando e onde teria comprado aquela blusa? Não lhe vieram quaisquer lembranças. Mas, com certeza, teria sido um amor à primeira vista. Corte e costuras perfeitas. Tecido leve e em cores ao mesmo tempo fortes e discretas. Poderia usá-la em dias de temperatura mais baixa ou em noites mais frescas. Parecia que a blusa fora feita sob medida para Mariângela.

Tirou o cabide e viu  poeira nos ombros da mesma. Nesta pandemia não saiu de casa e, portanto, não usou nem lavou a mesma. Rodou o cabide nas mãos. Voltou com ele e a blusa para o local de antes.

Neste momento um barulho do lado de fora chamou sua atenção. Correu o olhar na direção e ainda pode ver o voo de uma ave grande bem perto da janela do seu quarto. Caminhou até o quintal e viu outro voo. Eram dois jacus que pousaram nos galhos do enorme pé de ipê no terreno do vizinho. Seria um casal? Mariângela ficou ali por alguns instantes. Sempre que via aquela ave se reportava ao “Café Jacu” com sua história de preservação da natureza e agricultura com sustentabilidade.

Estava já escurecendo. O sol acabava de se por bem a sua frente num belo espetáculo. Ela voltou para dentro de casa e seus pensamentos voltaram a viajar em companhia da blusa.

Na foto com as colegas do curso de pedagogia, num evento bienal de aniversário de formatura, noutra cidade, levou a blusa e usou-a no jantar. Ainda vê as fotos e percebe o quanto ela e a blusa formaram um visual bonito.

Numa outra ocasião Mariângela recebeu o telefonema de um antigo namorado enquanto trabalhava no primeiro turno de uma das escolas. Nesta ocasião estava se divorciando do marido e sofria muito, pois até então, nem desconfiava que ele já estivesse com uma namorada bem mais jovem do que ela. Talvez, naquele dia, tenha vestido a blusa como sua companheira de leveza e combinação. Sentia que a blusa lhe deixava menos só.

-“Estou na sua cidade. Vim resolver questões administrativas do Banco. Gostaria de te ver. Seria possível?”

E logo ele chegou. A blusa presenciou um afetuoso encontro. Ele lhe falou do trabalho junto à gerência bancária e depois quis saber como ela estava. Trocaram telefones pessoais e combinaram novos encontros.

Mariângela e a blusa sentiram-se, por alguns instantes, que tudo havia valido a pena – nesta hora riu sozinha e lembrou-se do poeta português, Fernando Pessoa.

Outra feita, uma amiga lhe telefonou e lhe convidou para uma “happy hour”, após o trabalho, com as “Espaçosas”, apelido carinhoso que haviam se dado. Eram sete amigas de longa data, supervisoras pedagógicas na mesma cidade. Mais uma vez a blusa lhe vestiu naquele dia. Elas riram, brindaram os sucessos de uma, as desventuras de outra, a separação de uma, o novo namorado da outra, os problemas nas escolas de cada uma, e tantos outros casos. E mais uma vez a blusa lhe fizera ficar bem nas fotos.

Mariângela hoje, enquanto aguarda o fim do isolamento imposto pela pandemia ao Coronavírus, decide lavar a blusa, perfumá-la e esperar pelo próximo encontro ao acaso. E sabe que sua blusa continuará sendo sempre sua fiel testemunha pela vida afora.

19/09/2020


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Delicadezas em tempos de Coronavírus XXVII - "A Mãe"



Ainda com os olhos fechados ela tateou a cama até encontrar o celular que despertava insistentemente e o desligou. Continuou dormindo. Não conseguira pegar no sono na noite passada e acabou dormindo muito tarde. Tinha alguns planos para as semanas anteriores. Aulas, estudos, eventos sociais e, até mesmo uma pequena viagem. Queria visitar seu irmão num outro estado. Tudo adiado. Ou tudo suspenso por enquanto? Ninguém tinha as respostas para suas dúvidas. O mundo passando pela pandemia do Coronavírus e, em tempo real, todos assistindo às centenas de mortes, que sem nomes, serão apenas complicados gráficos com pontos, colunas, curvas e números.

Viúva de um soldado que morrera durante uma operação militar, Leila está cumprindo rigorosamente o isolamento social orientado pelos médicos e estudiosos de todo o mundo. O casal de filhos adolescentes lhe surpreende com a resignação de ficarem dentro de casa. Aceitaram a rotina que a mãe e eles próprios vêm construindo, sem discussões ou relaxamentos. Cada um, depois de alguns dias, estabeleceu sua rotina incluindo os serviços da casa. Ficou decidido que a filha mais velha faria as compras necessárias aproveitando essas raras saídas para fazer tarefas indispensáveis como, levar o pagamento para a diarista que mora em bairro distante com o filho pequeno, alguma cesta básica para uma família conhecida ou fazer os pagamentos no banco.

Assim os dias de Leila vêm passando, indiferente a quaisquer outras pessoas que se vissem acatando a tal quarentena cujo nome ela pensava não estar apropriado a este confinamento. Esta denominação lhe remeteu à quarentena de Jesus no deserto, à quarentena das mulheres após o parto, ao jejum de carne que a mãe lhes impunha no período da quaresma. Quarentena para Leila eram quarenta dias. Quarenta dias?! Assustou com a possibilidade de assim ser.

Leila é professora de história do ensino fundamental. Gosta muito do seu trabalho enquanto educanda. Conhece seus alunos tanto no que se refere aos rendimentos escolares quanto naquilo que pode interferir negativamente nos aprendizados. Sabe bem que adolescentes precisam, para além das normas pedagógicas, de carinho, atenção e acolhimento. Leila é desse jeito. Respeitada e adorada pelos alunos.

Hoje recebeu telefonemas de alguns pais preocupados com os filhos em casa, com as perdas dos conteúdos das disciplinas, com a falta da rotina deles e querendo saber quando voltariam às aulas. Recebeu também, pelo whatsapp, o texto de uma educadora interrogando a mesma questão para um futuro próximo. Leila tem bem claro para si que, em quaisquer que sejam as séries cursadas pelos estudantes, as perdas programáticas serão bem menor do que esses tempos estão ensinando aos alunos. O Coronavírus, para além dos sintomas e das pneumonias, traz consigo também informações em história, em geografia, em ecologia, em preservação do planeta, em matemática e estatísticas nos gráficos, biologia e ainda traz noções de epidemiologia, medicina sanitária, cuidados de higiene e solidariedade. Para ela, se os pais aproveitassem os acontecimentos advindos da pandemia, já estariam cumpridos todos os conteúdos e toda a carga horária. E nenhum aluno perderia o ano letivo.

Mas nesta manhã algo mais que a dita quarentena, lhe apertava o coração.


Logo cedo, após comer sua fruta predileta, lembrou-se da sua mãe sentada sempre no mesmo lugar da cozinha descascando melão. Nunca soubera que melão fosse a fruta favorita dela. Nem mesmo sabia que na sua cidade daqueles tempos encontravam-se melões nas quitandas. Mas sabia que seu pai satisfaria todos os seus gostos e que, portanto, daria um jeito de encontrar a distinta fruta.

E, uma pontada no peito lhe trouxe de volta às discussões com sua mãe. Lembra que até seus quinze anos acompanhava a mãe pelos desfiladeiros, tanto geográficos quanto da religião católica, para acompanha-la às missas, às reuniões do apostolado da oração, chegando até mesmo a participar do grupo das “filhas de Maria”. Porém este tempo acabara e Leila teve novos entendimentos da vida e na vida. Não aceitara que o Deus de sua mãe, tão adorado e generoso, pudesse ser corrompido pelas atitudes contrárias aos ensinamentos da Santa Amada Igreja. Fora lentamente distanciando do catolicismo embora soubesse do tanto que sua atitude abalasse a mãe. Na universidade, os estudos do obscurantismo da Idade Média quando a igreja, se misturando politicamente aos reinados, teria praticado tantos horrores em nome de Deus, fora a gota d’água para o corte definitivo com sua religião. Aprendeu que o capital sempre falava mais alto que qualquer virtude cristã. Entretanto o amor pelos rituais, o apreço pela arquitetura das igrejas, catedrais e tantas outras engenharias, permaneceram nela. Ainda hoje um de seus passeios preferidos, continua sendo conhecer as igrejas e as histórias dos “santos”.

Fora também a partir de seus estudos e de sua história pessoal, sem que percebesse o que lhe vinha acontecendo, que acabou adotando posturas de defesa às pessoas mais pobres e vulneráveis. Começou a fazer vários estudos acerca das formações das civilizações; adentrou através dos povos do continente africano e dos aborígenes australianos e entendeu muito mais do que as muitas discussões com sua mãe. E é isto que tem lhe trazido tantas pontadas no peito.

Agora, enquanto saboreia o mamão, vem-lhe as inúmeras negativas em resposta aos pedidos da mãe para que a acompanhasse ao Santuário do Sagrado Coração de Jesus. Fecha seus olhos e vê a mãe indo, sozinha pelos ditos desfiladeiros geográficos de sua cidade em direção ao templo de Deus, todas as primeiras sextas-feiras do mês ou, até mesmo, em todas as sextas-feiras. Porém, hoje, Leila reconhece que, para aproximar da sua mãe, aqueles “nãos” foram preciosos. E reconhece também que aqueles “Nãos” ainda doem mais nela do que teriam doído na sua mãe.

Leila, de uns tempos para cá, vem reconciliando com seus santos e santas deixados de lado. Não nega o fato de sua reaproximação com a igreja ter se dado com o papado do argentino, Francisco, cujas ideias coadunam com as suas. Não é por acaso que esse é o nome também do seu filho.

Entretanto nem todos esses saberes, reconhecimentos e reaproximações, nestes tempos de isolamento social, serão suficientes para apagar nela as delicadezas da mãe comendo o melão.

- Mamãe! Eu estou pensando que a vovó estava certa quando se preocupava com os lixos que produzimos na casa. Ela sempre dizia que não devíamos comprar nada que não pudesse voltar para a natureza. Você lembra?

A filha havia entrado na cozinha e Leila nem percebera.

Sim. Ela se lembra disto.

Olha pela janela e, nas suas lembranças, vê a mãe colocando cascas de frutas e restos de verduras nos dois pequeninos canteiros que ainda sobreviveram após a reforma da casa.

Teve a certeza que amara tanto a sua mãe quanto fora amada por ela. Apesar das diferenças.




Observação: Este conto foi escrito no mês de abril deste ano e concorreu no "Concurso de Contos da Pandemia da TV 247".

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Crônica infantil: Um flagrante da vida

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXV)

Na semana passada, em visita ao meu neto, este me pediu para que eu construísse uma nave e viajasse com ele pelos espaços siderais. Assim disse ele com todos as letras e muitos detalhes para que se dessem nossoas viagens. Obviamente que não recusei o pedido que, naquele momento se fazia como uma ordem. Ele já estava em grandes empreendimentos pelo espaço com suas duas naves, a X-Wing e a Tie-fighter, construídas pela ajuda dos pais, com as peças do fantástico brinquedo LEGO.

Eu fiquei com o que sobrou das peças. Uma metade de uma capsula transparente flexível sobre duas rodas que ele chamava de Barrigudinha. E esta ficou sendo a minha nada potente nave espacial. 

- Vovó repete comigo: SU – PLAI – ERRE. 

- De novo vovó: SU – PLAI - ERRE. 

- Entendeu vovó? Você está de aparelho? 

- Agora o nome do outro robô. Repete comigo: BORN – I. 

- Entendeu? 

Não! A vovó não entendia aqueles nomes ingleses que não fazem parte do seu vocabulário. Então pediu ao neto que escrevesse pra que ela pudesse ler. Assim ela iria ler e não precisava ouvir aqueles nomes. Ele a levou até o muro onde a sua mãe já havia escrito os nomes dos tais robôs. De qualquer forma, a vovó teve que aprender na marra. 

Dado o meu cansaço, não tive dúvidas. Enquanto Dudu viajava com suas potentes naves, fazendo reparos com os ultra inteligentes robôs, Supply-R e Burn-E, nas avarias causas por pedaços de gelos, a Barrigudinha abria-se ao sol para capturar energia e ganhar forças extras para alcançar as naves do neto.

Dudu ficava rindo das atrapalhadas da Barrigudinha que não conseguia nem acompanhar o palavreado técnico, em inglês, usado por ele. Por isso ela acabou virando um Jeep e ficar passeando pelas crateras da Lua enquanto Dudu dava várias voltas pelos anéis de Saturno ou encontrando com seus tantos amigos espaciais imaginários.

Apesar do cansaço com as viagens espaciais, dos trabalhos de reparos com técnicas robóticas em pleno espaço, dos cuidados para não cair nos buracos negros, foi uma tarde de grandes emoções e de muitos aprendizados sobre naves espaciais, robôs e os sons e escritas de outra língua.

A Barrigudinha serviu para a vovó se deliciar com as risadas do neto vendo os desarranjos de uma nave espacial gorda, velha e surda.



Ouro Branco, 31 de agosto de 2020

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Meninas dos Espíritos Santos

 (Indelicadeza em Tempos de Coronavírus - I)


- Vó acordei com vontade de vomitar...

- Vou fazer um chá de boldo pra você.


- Vó tô com dor por baixo

- Vou preparar umas ervas prá você se banhar


- Vó tô muito cansada

- Deixa de manha minha neta e vai logo pegar água na cisterna


- Vó minha barriga tá inchada.

- Deve de ser os vermes. Coma semente de mamão que mata tudo


- Vó tem uma coisa mexendo dentro da minha barriga

- Deve de ser as tripas. Cê anda enchendo muito os buchos.


- Vó você viu minhas bonecas que tavam aqui?

- Levei tudo para seu quarto. E não deixe seus brinquedos esparramados por ai


- Vó, vou esconder debaixo da cama. Não diz pró tio onde estou

- Deixe de bobagem minha neta. Ele te traz tantas coisas gostosas


- Vô, nós vamos tirar este trem que está machucando minha barriga?

- Vamos de avião? Obá! Eu nunca andei de avião.

- Quando voltar vou querer jogar futebol...


Observação: Minha homenagem a esta e a tantas outras meninas do Brasil vítimas do machismo na sua forma mais cruel e da hipocrisia de alguns fundamentalistas religiosos.

 

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Mini-conto: EL GUAPO

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXIV)


   EL GUAPO

Ele era lindo. Alto, moreno, olhos verdes, andar solto e o sorriso mais lindo que Ana já havia visto. Com pouca conversa fisgou o belo. Mas a vizinha de cima também ficou encantada com o rapaz que já se tornara namorado da outra.

“O que ela tem prá fisgar esse peixe?” “Como ela consegue manter este namorado tão lindo?” “Será que ela não tem ciúmes de tanta beleza?”

A vizinha pensava, perguntava e não conseguia respostas. Até que resolveu jogar todo seu charme prá cima do jovem da outra e, para sua surpresa, nada fora difícil e o peixe caiu na sua rede.

Nos primeiros dias o encantamento tomou conta do namoro. Porém, passado este tempo, veio a resposta para suas tantas perguntas. O fantástico, o belo, aquele dos olhos verdes era totalmente desprovido de palavras. Ele não sabia nada de coisa alguma e se achava o filé mignon da boiada. 

Passando defronte a casa da outra percebeu um risinho sarcástico na cara da moça. 

O mais difícil de tudo foi desfazer daquele peixe que apaixonou de vez pelas palavras da segunda.

Há quem diga que até hoje ele fica tentando comer a minhoca do anzol dela que acabou indo pescar noutras freguesias.


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Lenda: A Noiva do Morro de São Pedro

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - XXIII)



Lamentavelmente, até então, nunca havia me interessado pela história contada e recontada na cidade de Juiz de Fora sobre uma. Ainda falam-se da  noiva que aparecia aos desavisados nas noites de lua nova (ou seria cheia?) no Morro do Cristo, até então era o único acesso à região do São Pedro.

Pedi ajuda aos colegas médicos que estudaram comigo e um deles gravou um áudio me contando o que sabia da lenda. Relatou-me ele que morava no Bairro do Morro de São Pedro desde a época do cursinho e, por isto, sabia da história daquela noiva. Ele ainda lembrou-se da existência de lagoas pelas estradas. Mas não me lembro das águas pelos morros. Só lembro-me da beleza de toda a região e da visão fantástica daquelas alturas.

A estrada que liga, ainda hoje, o Bairro da Glória, no centro de Juiz de Fora, ao bairro de São Pedro é toda estreita e sinuosa. De um lado, as pirambeiras. Do outro lado o morro. Toda a região, coberta pela Mata Atlântica, deixando penetrar apenas alguns raios de sol.

Quantas vezes eu subi por aquele morro durante os seis anos do meu curso de medicina. Também não sei por que cargas d´água a Universidade Federal de Juiz de Fora estava plantada naquela região. Mas devo confessar que recentemente fui revisitar “minha UFJF” e qual não foi minha surpresa ao vê-la ainda mais bela, moderna e revitalizada com um arrojado projeto paisagístico de reflorestamento. Estava toda florida e totalmente integrada à comunidade da cidade que, nos finais de semana, passeia por suas belas praças de lazer. Atualmente as estradas do Campus são usadas como integração do Morro de São Pedro aos novos e luxuosos bairros na região sul da cidade.

Mas minha história de hoje é sobre a lenda que conta ter havido um acidente com um casal de noivos em lua de mel. A porta do passageiro do carro se abriu e a noiva rolou pelas ribanceiras daquelas estradas. Deve ter morrido, obviamente, para ter constituído a história. Pois bem, a partir deste fato, o espectro da noiva vem aparecendo nas encostas escuras do morro para um ou outro que passe por ali.

A moça apenas aparece com seu vestido de noiva, de pé, entre as árvores, causando arrepios em alguns, desafios em outros, encantamentos e amores nos mais solitários.

Até hoje a aparição da noiva no Morro de São Pedro continua circulando no inconsciente coletivo das pessoas de Juiz de Fora. E, sempre que aparece, as histórias reassumem novos contornos. Quem vê jura que a visão da noiva é verdadeira.

Essa história já faz parte do folclore da cidade.

10/08/2020

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Crônica: Moradia Compartilhada




(Delicadezas em Tempos de Pandemia - XXIII)





Moradia compartilhada

-“Se trouxeram o Rio Xingu até a Baia da Guanabara eu juro que fico com vocês”

“Pois não foi que uma vez eu, único médico daquelas florestas amazônicas, tive que viajar com o tal general, presidente do Brasil na época, só porque o digníssimo queria sobrevoar a região de Tefé. Eu calado, ele cheio de fardas e de distintivos coloridos na lapela. O homem tremia de medo. A chuva caía sem compaixão. Eu, quieto no meu canto, afinal quem está na garupa não governa rédea, já dizia meu pai. Tinha ido atender a um chamado de uma tribo onde a malária atacava sem dó”.

- “Por favor vamos atentar ao nosso objetivo senão não sairemos daqui.” Esta era a Menga, sempre muito objetiva, a colega pediatra aposentada, casada com um canadense prá lá de gente boa e bebedor de finos vinhos.

Vamos ouvir o idealizador do projeto. Fala ai King.

- Pois então, na qualidade de anfitrião e proponente do projeto, gostaria que o meu Fogão ganhasse o campeonato...

- Oh não! Desculpem! Me ajuda ai Jéssica (a bela companheira de King).

- Então amigos e amigas, vamos lá. Eu e King temos conversado muito sobre nosso grupo. Estamos envelhecendo e, em alguns países da Europa este sistema já vem sendo efetivado, ou seja, queremos convidar vocês para vivermos todos juntos?

- Mas o verdureiro próximo a minha casa, na Baia de Guanabara, entrega coisas deliciosas de Minas e eu não sei se conseguiria que ele levasse as frutas e verduras para todos nós.

- Espera ai Jéssica, você está sugerindo que façamos uma comunidade tal e qual os novos baianos? Seríamos assim como “os velhos comunistas”? Gostei da ideia. Poderia até levar minhas cuecas velhas de algodão. Elas me dão muita sorte no amor.

- Atenção pessoal! Temos várias etapas a pensar, estudar e partir para a execução. Quem gostaria de viver numa comunidade assim?

- Eu não tenho nem cartão bancário mas adoro cantar e, se necessário, poderei atender alguns amiguinhos que aparecessem pela vizinhança.

Era Tonico Feliz que logo levantou a mão em sinal de aprovação da ideia e continuou:

-“Mas tenho que perguntar prá Tita antes. Se ela concordar eu topo.”

- Vamos voltar aos projetos. Alguém mais quer falar alguma coisa?

- Eu não quero ficar em quarto perto da Tereza. Nem com porta a prova de som. Ela ronca e parece que tá morta. E vou fazer muitas calcinhas de filó prá vender na feira. Poderia fazer cuecas de filó também. Acho que faria o maior sucesso.

- Companheiros e companheiras temos que eleger o presidente dessa associação para defender nossos direitos a serem conquistados com a implantação deste sistema de moradia. Eu me candidato a presidente.

- Mas se trouxerem o Rio Xingu até cá eu não terei tantos problemas com o entrelaçamento de raízes das vitórias-régias. Gostei dessa ideia. E Ravi e meu filho, chef de cozinha famoso no mundo inteiro, poderão fazer muita comida árabe para nós. Mas já adianto que ficarei por conta dos jardins.

- Pessoal alguém teria sugestão onde seria implantada esta nossa casa? Pois bem quero sugerir a cidade de São Paulo, pois não consigo viver longe dos espetáculos e do glamour das garndes metrópoles. E minha filha poderia nos presentear com sua bela voz e suas performances.

- Tô aqui calado mas pensando nas minhas viagens aos Estados Unidos para meus congressos de endoscopia e tantas “cositas más”. Gostaria que fosse perto de um aeroporto internacional.

Nesse momento foi dada uma pausa para o lanche devidamente organizado por King e Jéssica.

Bananas assadas com mel, canela e queijo, pasteis de guaraná, suco de umbu, vinho para quem é de vinho e uma cachacinha para os mais corajosos.

Todos haviam dado suas opiniões e, quem se absteve, deixava implícito que concordava com o grupo.

A partir dai a empolgação tomou conta da reunião. King era puro fogo.

Alguns queriam morar na Serra do Cipó, sob a proteção ambiental do querido Juquinha. Outros queriam que fossem viver nas alturas da Pedra Menina na Serra do Caparaó. Tonico pediu uma oração prá Nhá Chica abençoar e iluminar aquele projeto.

Chegando ao fim do horário previsto todos concordaram que a alegria foi o tom do encontro. Agora que cada um retornasse para sua casa e pensassem na viabilização do projeto.

Menga pediu que fosse feita a ata desta primeira reunião e assinada por todos com a seguinte introdução:

- “Nesta data de vinte e um de julho do ano de 2020, perdido pela pandemia do Coronavírus, o grupo de médicos sessentões, aposentados e sem ter o que fazer, foi convocado por um deles, King, para uma primeira reunião com o objetivo de apresentar seu projeto de “Moradia compartilhada”. Após discussão e nenhum consenso cada um voltou para sua casa com todas as saudades do mundo dentro do peito.”

21 de julho de 2020

 

 


terça-feira, 21 de julho de 2020

Poema: Vermelhou...

(Delicadezas em tempos de Pandemia - XXII)

Um vento súbito avançou
sobre meu quintal
uma chuva de folhas secas 
dançou no ar
coloriu de outono o chão


Ontem pela manhã
um Tico -Tico - Rei 
me honrou com sua visita
acompanhado da sua rainha

Ontem a tarde
um pássaro grande 
de linhas retas
penacho vermelho na cabeça
agarrou-se no tronco do ipê
da minha cozinha

então um som ôco 
repetitivo
invadiu meus ouvidos

Pica-pau

19/07/2020

domingo, 19 de julho de 2020

Redação Infantil: Biribim



BIRIBIM

Um dia eu estava vendo um vídeo na internet, nesse vídeo aparecia uma cadelinha que se chamava Biribim, ela era uma cadelinha treinada que fazia muitas coisas legais.

Ela fazia tudo que seu dono falava. Ela pulava obstáculos, ficava em pé e deitava quando o seu dono pedia. Era uma cadelinha muito brincalhona e alegre. Eu e meu irmão mais novo, o Lucas, assistimos o vídeo várias vezes, pois gostamos muito de animais, principalmente de cachorrinhos.

Alguns meses depois meu pai encontrou um cachorrinho parecido com aquele do vídeo. Nós ficamos tão felizes, que nem pensei duas vezes e já coloquei o nome de Biribim, só que o nosso cachorrinho é macho, então chamamos ele de “o Biribim”.

Estamos tentando treinar o Biribim, mas ele não nos obedece, mas a gente ri se diverte com ele assim mesmo, acho que ele parece comigo e meu irmão, por isso é um pouquinho bagunceiro. Ele nos passa alguns sustos, mas nós amamos ele demais.

Pedro Otávio dos Santos




Observação:
Pedro e Lucas, com a ajuda da mamãe, Eunice Aparecida, fizeram a redação e o desenho conforme eu havia pedido. Confesso que fiquei muito feliz. E, conforme combinado, compartilho aqui com todos vocês. Abraços Pedro e Lucas e muito obrigada.
19/07/2020

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Crônica Infantil: BIRIBIM

 (Delicadezas em tempos de Pandemia - XXI)

 BIRIBIM



Ainda nem tinha nome. Estava nas ruas. Tinha o pelo da cor da estrada. Seria sujeira? Pó do asfalto. Cristiano freou o carro e viu aquilo se mexendo. Um cachorrinho perdido. Parou o UNO no acostamento, aproximou lentamente do cachorrinho e viu que ele estava assustado.

-Não vou te machucar. Só quero ver se está tudo bem com você.

Assim o homem falou com o cãozinho. Logo viu que se tratava de um filhote. Nem pensou duas vezes. Convidou-o a acompanha-lo e perguntou se ele queria uma casa e dois amiguinhos. E todo sujo entrou no carro.

- Vejam o que eu encontrei na estrada!

Os filhos olharam e aconteceu aquilo que os adultos chamam de “amor à primeira vista”.

Pedro e Lucas logo foram brincar com o mais novo companheiro.

- Podemos ficar com ele, papai?

- Como vai ser o nome dele?

- Ele está sujo ou tem esta cor de cinzas?

E foram tantas as perguntas que Cristiano nem conseguia responde-las. Mas disse:

- Primeiro temos que conversar sua mãe. Se ela aceitar, vamos leva-lo ao veterinário para nos orientar sobre os cuidados e as vacinas.

Pedro e Lucas sabiam que iriam convencer a mãe para deixar o cachorrinho com eles.

Deram banho no cãozinho e logo viram alguns pelos brancos entre todo o resto acinzentado.

Estava feita a amizade entre os três e com o consentimento dos pais.

Biribim foi o nome escolhido e logo Biribim já ocupou seu lugar na casa. Mas ele queria mais que o espaço da casa e, um dia no descuido, ele saiu pelas vizinhanças. Entrou no primeiro portão que viu aberto.

Ali não Biribim! Ali não!

Ali, naquele sítio, havia quatro cachorros com fama de serem muito bravos. Eles cercaram o Biribim que os enfrentou com muita coragem. Os meninos escutaram a confusão e vieram logo em socorro.

Biribim estava acuado num canto da cerca e tremia de medo. Parecia ferido.

Eunice, a mãe, chamou a vizinha que veio em socorro. Desajeitada feito ela só e mais apavorada que o Biribim, ela tentou afastar seus quatro cachorros, aproximou e o pegou no colo. Ele esbravejava de medo, de dor e de defesa. Tudo durou um segundo, mas o tempo suficiente para que ela visse lágrimas nos olhos dos meninos.

Foi neste instante que Biribim acabou caindo e, Pedro num reflexo de amizade, pegou Biribim no ar, do outro lado da cerca. A vizinha havia esquecido o arame farpado sobre a cerca que arranhou os dois e Biribim tentando se soltar daquela desajeitada deu-lhe uma leve mordida no dedo.

Mas a vizinha ficou muito preocupada de ter ferido o cachorrinho. Pediu desculpas aos meninos. E uma coisa não lhe saiu da cabeça: de onde Pedro e Lucas tiraram aquele nome para seu cachorrinho?

Então resolveu pedir-lhes que, cada um, fizesse uma redação sobre o BIRIBIM e que eles enviassem-lhe para que ela pudesse saber e contar para todo mundo.



BILHETE

Pedro e Lucas

Por favor, escrevam sobre o Biribim e me enviem suas redações.

Peço também que, se quiserem e seus pais autorizarem, que eu possa publicá-las no meu blog, Contos de Rivelli.

Abraços e me deem notícias do BIRIBI

16/07/2020

Da vizinha

                      Rivelli