Acordei hoje no mesmo horário de todos os dias. Havia decidido dormir mais um pouco. Afinal é dia vinte e quatro de dezembro. Escureci o quarto e continuei na cama. Então um pesadelo me fez acordar de novo. Levantei, preparei meu café e fui lavar roupas. Na máquina. Sempre gostei de cuidar das lavações.
Enquanto a água do meu café fervia, meus pensamentos foram tomados pela lembrança dele.
Todos os anos uma árvore nova. As casinhas do presépio eram reparadas e a manjedoura cuidadosamente colocada lá. Vazia ainda. Aguardaria a meia-noite para a chegada do Menino Jesus.
Doces feitos na semana anterior. Cartinhas escritas e alegrias nos ares.
Nos tempos de muita dureza ele sempre dava um jeito para essa ou aquela boneca. As primeiras bonecas eram de papelão e nos decepcionavam quando, ao lhes dar banho, elas desfiguravam e morriam.
Um ano aventurei e pedi um livro. Um clássico. Ao acordar lá estavam Jean Valjean, Cosete e Fantini. Fiquei o resto do ano e as semanas seguintes debruçada sobre Victor Hugo. Era o ano de 1968.
As madrinhas e uma Tia linda nunca nos deixavam sem um presentinho. Um ano ganhei Silvinha e Andréa e brinquei com elas durante vários anos seguidos. Acho que foram aquelas minhas únicas bonecas de plástico. Minhas duas adoradas filhas.
Outro ano foram pulseiras. Um tecido para um vestido. Estava virando mocinha.
Quando meu irmão, ainda muito jovem, fora trabalhar na sapataria de um turco, ganhamos sapatos.
Mas a festa era menos dos presentes do que o entusiasmo dele com sua família. Eram muitas palavras sábias ditas com lágrimas nos olhos. Ele sabia o que dizer, como dizer e que horas dizer. E isto fazia toda a diferença. Jamais depreciou um filho, um vizinho, um amigo, um chefe. Talvez sofresse calado pelas desilusões ao longo da vida.
Num dado ano morreu-lhe o filho aos quarenta e dois anos. Era inicio de fevereiro. Um enfarto agudo do miocárdio matou-lhe sem o merecido recurso médico. Na cidade que ele tanto amava. Metade dele morrera também. Acolheu os três netos como se filhos seus fossem. Em novembro daquele mesmo ano morrera-lha a esposa. Vitimada por um câncer. Então ele faria setenta e nove anos na véspera do próximo natal. Reuniu todas as suas forças e convocou-nos para a grande festa do natal. Choramos a alegria do irmão ausente e a mãe que tanto sofrera naqueles últimos meses.
No ano seguinte àquele ele passava seus dias sentado no passeio a esperar pelo filho morto que poderia virar a esquina e vir lhe tomar a benção. Isto era feitio daquele. Em todas as suas viagens jamais deixara de passar por ali para a benção do pai. E, obviamente, grandes gargalhadas.
Naquele próximo ano ele faria seus oitenta anos. Exigiu uma grande festa com direito a banda de música, aluguel de espaço adequado e convites. Seu neto mais novo nasceria naquele dia no interior de São Paulo.
Chamou-me a parte. Falou de suas várias pretendentes a um novo casamento. Pediu reserva de convites e apoio para seu intento. Disse-me que naquela festa escolheria sua nova esposa. Foram doze as suas convidadas especiais e onze delas compareceram a tão grandiosa festa. Casou com aquela que não fora. Ela então com trinta e nove anos.
Mais festas de noivado e casamento nas vésperas do natal do ano seguinte. E ele ajudou sua jovem esposa a educar e cuidar dos dois filhos adolescentes do seu primeiro casamento.
E a família continuava crescendo. Agora a chegada dos bisnetos deixava-o cada dia mais feliz e a contar e anotar datas de aniversários e nomes. Jamais deixara de telefonar ou de presentear um de seus vinte e dois netos. Sabia das diferenças e dos gostos de um cada um deles.
Atleticano desde sempre, contava histórias dos tempos do onça e ria. Seu riso era sua marca patenteada.
Vaidoso fora a vida toda e tinha motivos estéticos para tal. Estatura acima da média, cabelos louros, olhos azuis e nome inglês.
Nem mesmo a paralisia facial traumática lhe tirou o apreço pela música. Inventou um bucal para adaptar ao seu bombardino e mandou confeccioná-lo em aço inoxidável. E continuou tocando na banda, no coral da igreja, na bandinha carnavalesca "Centrofônica" e no grupo de seresteiros. E, certamente, fora o assoprar que lhe manteve vivo com o vicio imoderado do tabaco.
Neste ano, seu pulmão tomado pelas tramas da nicotina e suas artérias obstruídas, agravaram seu quadro clínico. No telefone dizia "Eu não tenho nada minha filha. Estou ótimo". E eu cá com minha medicina e meus filhos dizia "só mesmo a música e a família para lhe manter vivo". Jamais queixou dores físicas. Suas dores eram bem outras. Saudades. Saudades dos filhos distantes, dos netos, do filho querido que se fora tão jovem e da esposa, amada companheira por cinquenta e dois anos.
Entretanto numa recente madrugada de segunda feira chorou de dor. Fora logo internado. Na mesa do meu almoço daquele dia decido fazer a viagem para estar com ele. O médico, amigo dos últimos anos, conversa comigo e fala da gravidade do quadro. Aneurisma de aorta abdominal trombosada. Morfina para a dor. Era o fim. Os filhos vão chegando de longe. Os netos enviam fotos com aquele vô lindo dos olhos azuis. Ele pede uma cerveja ainda dentro do hospital. Um irmão satisfaz seu desejo após autorização do médico. Todos acatam a sugestão . Ele deveria ir para a casa dele. Não havia mais o que fazer.
É tempo de seus noventa e seis anos. A festança já fora encomendada. O natal está chegando. Outra festa.
Mas ele vai-se dormindo, sem as festas que tanto gostava. E sem conhecer meu neto, Eduardo, que nasceria duas semanas após.
No velório ganho vários abraços. Dois deles com palavras reveladoras:
-"Seu pai nunca deixou meu filho sem presente no natal. Ele e sua mãe compravam presentes para as crianças pobres da rua".
Ao lado daquela mãe estava seu filho, hoje portador de doença mental, a me abraçar com seu sorriso infantilizado.
Outro abraço se dera pela madrugada quando sou chamada por um antigo vizinho que brilhara no futebol em sua juventude. No passeio do outro lado da rua. Estava alcoolizado. Então, chorando, me abraçou e disse: "O único presente de natal que ganhei em toda minha vida foi seu pai que me deu".
"Mas éramos tão pobres", pensei calada. Eu nunca soubera disso.
Neste primeiro Natal sem ele toda a família tem feito um enorme esforço para continuar com nossas festas. E em meio aos preparativos nasceu mais um bisneto, Artur. João, seu vigésimo bisneto, chegará em maio de 2016.
E você, meu pai, continuará no meu natal em todos os anos do resto da minha vida.
Mas ele vai-se dormindo, sem as festas que tanto gostava. E sem conhecer meu neto, Eduardo, que nasceria duas semanas após.
No velório ganho vários abraços. Dois deles com palavras reveladoras:
-"Seu pai nunca deixou meu filho sem presente no natal. Ele e sua mãe compravam presentes para as crianças pobres da rua".
Ao lado daquela mãe estava seu filho, hoje portador de doença mental, a me abraçar com seu sorriso infantilizado.
Outro abraço se dera pela madrugada quando sou chamada por um antigo vizinho que brilhara no futebol em sua juventude. No passeio do outro lado da rua. Estava alcoolizado. Então, chorando, me abraçou e disse: "O único presente de natal que ganhei em toda minha vida foi seu pai que me deu".
"Mas éramos tão pobres", pensei calada. Eu nunca soubera disso.
Neste primeiro Natal sem ele toda a família tem feito um enorme esforço para continuar com nossas festas. E em meio aos preparativos nasceu mais um bisneto, Artur. João, seu vigésimo bisneto, chegará em maio de 2016.
E você, meu pai, continuará no meu natal em todos os anos do resto da minha vida.
Betim, 24/12/2015
Observação: por favor, assinem os comentários para eu saber quem são vocês. Obrigada
Fotografia: Papai com filhos e netos em 2013, final da Copa Libertadores da América com nosso Clube Atlético Mineiro sagrando campeão.
Fotografia: Papai com filhos e netos em 2013, final da Copa Libertadores da América com nosso Clube Atlético Mineiro sagrando campeão.