...e minha voz foi embora.
Deveria cumprir um plantão de vinte e quatro horas na noite de um
sábado. Eu que já vinha perdendo minha voz desde o dia anterior após uma chuva forte que caiu sobre Betim, a perdi de vez. É sempre assim. Quando as águas caem sobre a
terra seca. A poeira e seu cheiro forte sobem após
os primeiros pingos d'água e entram nas minhas narinas. Então começa a alergia... Quando não obstrui meu nariz, me traz irritações na garganta.
Ontem havia conseguido dar o meu plantão semanal, também de vinte e quatro horas. Hoje não sei...
Tento manter a calma, afinal terei que atender até amanhã a noite numa
troca de plantões feita com um colega paulista.
Já no primeiro atendimento, meu companheiro de trabalho médico, gentilmente me
diz: "Pode deixar que eu atendo". E lá se foi ele.
O telefone toca e não consigo me fazer ouvida. O supervisor de
enfermagem me pede então que atenda dois pacientes na ala tal pois estavam
nervosos e insones. E agora lá vou eu sem minha voz. Com a ajuda dos técnicos ainda me fora possível avaliar aqueles dois jovens.
Logo chega outro paciente externo para atendimento em urgência. E meu
colega mais uma vez se dispõe a atendê-lo
"Isto não está certo. Não é justo meu colega fazer o trabalho dele e o meu", pensava eu.
Então peço ajuda, via o terrível WhatsApp, e uma colega se propõe a vir fazer o plantão das doze horas do dia
seguinte. Não consegui dormir esta noite. A tosse seca, o mal estar e a
vergonha por não conseguir dividir o trabalho com meu colega tiraram meu sono.
No domingo cedo vou embora para casa e minha filha telefona para meu mais novo e
querido médico, Dr D'Ávila, meu sobrinho que estava de plantão numa UPA de BH. E ele que se dispôs a me
atender. Afirma que, provavelmente, eu não teria condições de trabalhar e que teria direito a cinco
dias de afastamento.
Decido ir até ele. No caminho a esposa telefona e diz que ele iniciara com uma violenta cólica
renal e que já estava levando-o para
outro hospital.
Eu não iria voltar para casa daquele jeito!!!
Eu não iria voltar para casa daquele jeito!!!
A quem pediria ajuda? Tenho várias colegas médicas que jamais
recusariam me atender naquela metade de manhã de um domingo de sol ardente e
eu doente.
"Vou tomar café com meu filho e sua esposa", decido eu.
Minha filha, agora motorista, faz contato com o irmão que se alegra com tal visita inesperada. Eles haviam ido buscar os filhos do primo médico para cuidar eles. Passamos no supermercado e compramos frutas e pães. Adoro pães e padaria.
Minha filha, agora motorista, faz contato com o irmão que se alegra com tal visita inesperada. Eles haviam ido buscar os filhos do primo médico para cuidar eles. Passamos no supermercado e compramos frutas e pães. Adoro pães e padaria.
E não saía nenhum som com minhas palavras.
"Repouse sua voz e beba muita água", foi a orientação do meu
sobrinho já hospitalizado.
Então começa um dia ainda mais inusitado. Havia esquecido meus óculos,
meu aparelho de audição e não conseguia falar. Eu estava deveras perdida.
Só havia uma saída: brincar com Tiago e Alice, de dois e sete anos
respectivamente. Tiago não entendia porque eu falava sem som e, ao conversar
comigo, também o fazia falando baixinho.
A mesa do café da manhã foi posta e nos fartamos de deliciosos pães, biscoitos, sucos, leite e queijo que nunca pode faltar nas nossas refeições da manhã e da tarde e do almoço e do jantar.
A seguir brincamos construindo carrinho e aviões com as peças de Lego. Fizemos
aviões de papel e fizemos várias viagens pelos espaços daquela sala. Rolamos sobre o colchão no chão. Outras vezes ficávamos observando Dori, Nina e
Spock, os gatos da minha nora, com seus pulos e olhares felinos.
Numa determinada hora me fingi de ninja e, com Tiago, ousamos dar golpes
no ar e gritos mudos em japonês e mandarim. Lutamos contra os guerreiros samurais do "mal" que, nesta hora, estavam representados por minha filha. E ela, fingindo
desespero, tentava amparar tais golpes
desengonçados de dois ninjas super poderosos.
Alice brincava e sempre estava ao lado da futura mãe de meu neto já a caminho. Meu filho
cuidava do almoço e, a todo instante, era requisitado pelo afilhado ninja e
apaixonado por carros. Minha filha, curinga, ajudava a todos.
Então chega a informação de que o pai do ninja e da princesa Alice seria operado e o pedido
para que os dois pudessem continuar ali até o dia seguinte.
A TV não fora ligada em nenhum momento e nem as crianças pediram para ver
algum programa. Fiquei orgulhosa da educação que deveriam receber em casa.
Após o almoço a ninja mais velha e sem voz apagou por algum tempo.
Efeito do cansaço, das lutas e dos chás ingleses que meu filho me dera durante todo o
tempo que estivera com eles até então.
Ao anoitecer deixei-os e voltei para minha casa. Tomei um medicamento
indicado. Tomei um banho e deitei. Mais uma vez o sono não chegou. Os
pensamentos não paravam, iam e vinham. Faziam arruaças na minha cabeça. Queria
entender aquelas últimas vinte e quatro horas.
Meu filho e minha nora enviaram
mensagens de agradecimento pela ajuda com as crianças.
Mas quais eram as crianças a quais eles se referiam?
Sem conseguir ler uma frase, sem escutar bem o que me era falado e sem
conseguir botar som nas minhas palavras, só me restara fazer mímicas e brincar. E eu brinquei
muito mais que Tiago e Alice.
Certifiquei-me que estava pronta para a chegada do meu neto.
Portanto, chegue logo Eduardo pois sua avó já se permitiu ser criança de novo.
06/10/2015
Que lindo!
ResponderExcluir