Aos domingos após o almoço a meninada insistia para que a mãe os deixasse ir à casa da tia. O pai empurrava para a mãe as autorizações ou negações de quaisquer pedidos dos filhos. Ele respondia com o mesmo tom: "Sua mãe é quem sabe. Se ela deixar tá deixado".
Assim acontecia em alguns domingos, após o almoço, na casa daquela família mineira cheia dos filhos. Glorinha, Zarinha, Paulinho e Zezinho, apesar de serem os filhos mais novos, já estavam crescidinhos e poderiam sair sozinhos na cidade daquela época. Talvez a mãe consentisse com tal pedido até mesmo para seu descanso das estafantes tarefas domésticas.
Para lá iam os dois pares das crianças. A casa da tia era muito longe, mas eles nem se importavam. Haveria muitas brincadeiras, uma mesa com café, pão com margarina em retribuição e K-suco vermelho.
Os quatro filhos da Tia pareavam nas idades com aqueles primos.
Depois de caminharem sozinhos por grande distância até o centro da cidade alta, atravessavam a praça principal e começavam a descer a Rua Brasil. A tal rua parecia nunca ter fim. A descida era muito íngreme e muito longe até a casa daquele tio louro dos olhos azuis, do nariz muito fino e daquele gogó no pescoço. A mãe dizia que aquilo chamava Pomo de Adão e as crianças caiam nas gargalhadas.
Chegavam esfomeados, sedentos de água e de brincadeiras. E contavam os minutos para a hora do café com pão. A casa mais parecia uma casa de bonecas. Tudo colorido e no seu devido lugar. Parecia que só as personagens das histórias infantis habitavam aqueles espaços. No quarto das meninas haviam as bonecas mais modernas daqueles tempos. Glorinha enchia os olhos de vontade de ter uma daquelas bonecas. Não teria. Zarinha aceitava qualquer brincadeira desde que pudesse desfrutar das companhias das primas. Mas observava tudo. As meninas tinham jeito de princesas, pensava ela. A mãe mais parecia uma rainha da inglaterra. E havia uma ama que, com um sorriso no rosto, parecia querer brincar também. Entretanto ela não descuidava de suas pupilas e de toda aquela meninada. Paulinho ainda era muito pequenino e pedia colo.
E foi numa dessas visitas que algo sucedeu. Voltando para casa, depois de muito brincar, chegava o cansaço e logo haveria aquela rua inacabável que era só subida. E lá foram os meninos e as meninas. Zezinho começou a reclamar ainda na metade do morro. Era um choro contido e raivoso. Quando chegou bem lá em cima, já no passeio lateral da padaria do Sô Nestor com a frente voltada para a praça, o menino pisou em falso no meio fio e caiu. Aproveitou a queda e libertou o choro. Chorava compulsivamente. E, toda vez que chorava de raiva, havia o tal do engolir fôlego. Uma vez ele quase arrancou o dedo do pai quando este foi tentar desvirar a língua do filho que embolava e impedia a passagem de ar. Deu-lhe uma forte dentada. Aquilo zangou e foi preciso muito tratamento. As irmãs sabiam disso e se desesperaram. Então Zezinho engoliu o fôlego ali mesmo no chão do calçamento pé de moleque. Já roxeava quando as meninas começaram a gritar e a chorar. Como quem desce do céu, apareceu Sô Nestor que conseguiu fazer voltar o fôlego do Zezinho.
Nunca se soube o que ele teria feito para salvar o menino. Mas sabe-se que na padaria dele havia o doce de leite com coco em pedaços mais deliciosos da praça.
Fotografia: exposição dos trabalhos das pessoas portadoras de sofrimento mental em Belo Horizonte (arquivo pessoal)