sábado, 19 de maio de 2018

Crônica: Pequeno troiano e filho de deusa romana.



Hoje, terminada a Oficina de Escrita, saí sem esperar pelos amigos de toda semana. Entretanto, apesar do compromisso marcado, não contive o desejo de saborear a broinha de fubá e o café com leite de sempre. Encontrei uma única cadeira vazia. Arrisquei sentar-me nela mesmo sendo daquelas cadeiras de bar, mais altas, onde os pés ficam sem apoio no chão. Sinto tonteiras caso não tenha o solo como amparo para meu corpo.

Ao meu lado apenas mais uma cadeira onde pude encostar meus pés. Ali estava uma jovem vestida de preto, celular nas mãos e olhar distante. E, do outro lado, uma outra mulher de pé no balcão. Esta não tirava os olhos da primeira.

Percorri, dos olhos daquela, a direção do olhar e vi ao meu lado a jovem teclando seu celular. Estava desfalecida em lágrimas. Pude perceber muita angústia no seu rosto. Aquilo me inquietou. E a outra continuava de pé a olhar para ela.

Instintivamente perguntei se eu poderia ajudá-la. Ou se queria que eu chamasse alguém para acompanhá-la a algum lugar. Ela me olhou e agradeceu a preocupação. De repente ela me disse que havia perdido seu filho com apenas setenta e duas horas de vida. Fiquei sem palavras. Perguntei novamente se queria que eu chamasse algum familiar para levá-la para casa. "Meu marido já está vindo me buscar", disse ela.

"E como é o nome do seu filho?" Perguntei.

"Heitor", respondeu ela.

Então confessei-lhe do tanto que gosto desse nome por causa do grande herói e que tenho um sobrinho, de quem gosto muito, também com esse nome. Perguntei se ela conhecia a bela história do Heitor, personagem de Homero a quem ele chamava de "domador de cavalos". Ela balançou negativamente a cabeça. Então disse-lhe que fiquei encantada com a leitura da "Ilíada" e que Heitor foi o herói mais nobre e generoso de toda a cidade de Troia. Ele era muito amável e companheiro de sua esposa. Amava seus país e seu povo. Foi o maior e mais valente guerreiro de toda a guerra entre gregos e troianos.

"Certamente seu filho lutou pela vida com a bravura do herói que lhe deu o nome. Heitor é para sempre!", completei assim minha fala.

Ela, gentilmente, tentou esboçar um sorriso. Então pude ver que se acalmou com meu relato e entendeu a metáfora.

Perguntei-lhe seu nome. Ao ouvi-lo não pude conter um leve sorriso e brinquei dizendo que aquele nome era de uma deusa romana e que, portanto, todos estavam protegidos pelos heróis e pelos deuses.

Estava na minha hora. Não poderia ficar ali mais tempo.

No caminho minhas lágrimas caíram pelo pequeno Heitor.



Belo Horizonte
19/05/2018

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Carta de amor IX



Meu amor


Na véspera do seu aniversário não trago boas notícias. Lamento. E não me furtarei em dizer o que tem me ocorrido.

Como já é de seu conhecimento, durante todos estes anos pelos quais nos mantivemos distantes, tive que recriá-lo. E o fiz a meu modo. Caso contrário te perderia.

Fiz você doce, companheiro, amigo, solidário, e dono de uma inteligência rara, pois foi assim que você me aparecia nas poucas vezes em que estivemos juntos.

Nossas conversas pareciam que nunca teriam fim. E nossas alegrias nunca deixariam de existir. Ríamos por tudo e de tudo. Até mesmo de nós.

Dizia a mim mesma que você aparecia para apaziguar minha alma e me encantar de novo. Você ia embora e eu ficava deveras encantada. Era a parte que me faltava.

Hoje, decorridos alguns dias de seu reaparecimento surpresa, me sinto de novo só. Não consigo rearranjá-lo nas minhas fantasias. Você não encaixa mais na parte que eu julgava faltante em mim. Será que realmente havia ajustado noutros tempos?


Desta última visita relâmpago, enquanto você me falava, ou me observava, ou até mesmo me desejava, eu já não conseguia mais sentir a presença do homem por quem tanto sonhei e idealizei. A todo instante aquele homem me escapava. Constatei que, para você, sou como a parte que te sobra. E isto eu jamais me permitiria ser.


Não tive a sabedoria do amar. Porém sempre tive a marca do amor.


Como bem disse um alguém: “amar é dar o que não se tem”.


Portanto será que somos dois amantes cuja aproximação provoca o esfacelamento dos sonhos?
Teremos de nos manter numa boa distância para a sobrevivência de nós?


Mesmo assim te desejo mais um feliz aniversário. Muita paz. Muito trabalho.


E tenha a certeza que te amarei por toda a eternidade.


                                      Sua amada

Em 09/05/2018