sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Crônica: Um caso à primeira vista - Um relato


Ela estava lá. Sozinha entre as demais. Com a bandeira da candidata, ora enrolada ora aberta ao vento daquela manhã. Era uma praça desfeita de flores, desfeita de árvores, desfeita de quaisquer outras belezas. Eu fui. Fui com meu compromisso de uma cidade humanizada. Não queria ir. Queria ficar comigo naquela manhã de domingo. A candidata me enviou o convite. Uma caminhada pelo bairro. Concentração naquela praça desfeita. Havia, tão só, bancos de concreto. Sentei num deles. Uma pequena árvore, sobrevivente do descaso, prometia sombra se o sol aparecesse. O tempo estava nublado. Ótimo. Esqueci-me do protetor solar nos braços.

Dei bom dia para ela. A reposta veio com um sorriso terno. Dai em diante a conversa fluiu como as águas em um córrego protegido por plantas ribeirinhas. Me contou do filho de dezessete anos. Ele foi pai aos quinze anos. Agora tem que mandar PIX todo mês. Mostrou, com orgulho a foto, no celular, do rosto de um belo jovem. Falou do mais velho: Ele bebe muito. Uma pet de um litro por dia. Depois de amanhã ele faz vinte e três anos. Não havia nenhuma tristeza nas suas palavras. Resignada? Tenho uma menina também. Ela tem treze anos. 

Eu já havia reparado na simplicidade de suas roupas. Nos cabelos desalinhados, presos na nuca. Desvestida de belezas assim como aquela praça. Nela eu vi todas as mulheres pobres de um país de terceiro mundo.

Às vezes ela levantava e balançava sua bandeira. Dava umas voltas por ali. Sozinha. Às vezes eu também levantava e conversava com outras pessoas. Sempre acabávamos juntas. Descompromissadamente. Eu tomo nove remédios todo dia. Meu marido batia muito ni mim. Eu fugi com o veio que eu moro com ele hoje. Eu tinha vinte e seis anos. A anamnese já estaria feita nas primeiras conversas caso eu estivesse atendendo aquela mulher. Quadro psiquiátrico grave requerendo atendimentos e acolhimentos frequentes e próximos. Foi por isso, talvez, que nos demos tão bem. A loucura, seus encantos, seus desencantos estavam bem juntas comigo. Ao meu lado. Nos encontramos naquela manhã de domingo numa caminhada buscando votos para nossa candidata.

Antes de iniciada a caminhada, dei-lhe um dinheiro para que ela, se quisesse, pudesse comprar água ou picolés. Na praça nenhuma água ou picolés. Chamei-a para ir comigo mais a frente, numa rua desembocada na praça nua. Ela me acompanhou. Paguei-lhe a água. Vou comprar um franguinho para meu almoço. Muito obrigada, viu? Sua voz era doce e tranquila.

Sentada no banco de concreto, respondeu minhas perguntas sobre seu tratamento. Antes eu tomava haldol que me deixava na cama. Fiquei na cama sete meses com meu filho cuidando de mim. Eles trocaram o haldol. Agora tomo uma injeção todo mês.

Caminha iniciada. Ela andando no compasso dado. Eu, olhando para ela. Uma mulher tão só. Desprotegida. A bandeira de sua candidata e a loucura como suas únicas aliadas. Eu, talvez, em alguns momentos também fosse sua aliada.

Caminhada longa. Terminada. Vamos lá em casa almoçar comigo? Vou comprar um quiabinho pra comer com o frango.

O nome dela? O mesmo da minha mãe.

(Voltei pra casa estarrecida com a miséria do meu país tão rico)

04/10/2024

Poema - Um amor

Um amor


Um dia me vesti de lua
Dancei na noite e
Embriagada de prazer
Amanheci nova

Numa manhã
me banhei de música
Deitei Beethoven

Noutro dia plantei rosas
À tardecolhi beijos

Me refiz com as pedras
Que encontrei nos caminhos

Agora estou cheia
Um licor de amoras
corre dentro de mim

Minha alma
coloriu de estrelas

Ah, nosso tempo que se foi
Sobrou saudade de
ouro,
preto.

sábado, 21 de setembro de 2024

Crônica: Cheio de histórias


Não sei quando ele apareceu, nem sei se ele apareceu ou se já estava por aqui quando por aqui cheguei.

Não passou do portão para dentro. Fugia amedrontado à aproximação de qualquer ser humano. Escondia no meio dos matos. Pensei numa estratégia para que ele se aproximasse de nós. Todos os dias colocava ração e água na divisa entre o portão e a rua. Meu instinto me dizia que ele chegaria devagar. Era dar tempo ao tempo. Mas o tempo dele foi demorado demais. Vacinas de jeito algum. São Francisco cuidaria dele.

Os de perto de minha casa diziam que ele era morador de rua. Um dia me contaram que ele andava apenas à noite. Um ou outro dava de comer.

Mas minha intuição estava certa. Ele vinha comer a ração posta a cada dia um tantinho para dentro de terreiro.

Hoje penso que ele deveria ser o parceiro monogâmico e pai dos vários filhotes da Duquesa, uma cadela nomeada de Branquela pelos vizinhos e que me adotou como sua tutora.

BranquelaDuquesa morreu adulta após um penoso tratamento de câncer de mama.

Então veio Tieta, outra branquela, esta doada pela vizinha. Depois de muitos anos ao lado dele, foi sacrificada. Leishmaniose em estágio avançado.

Ele andava atrás de mim por todos os lados. Procurava sempre por um lugar de onde pudesse me ver. Negro como a noite. Pelos brilhantes. Andar sóbrio.

Um dia, numa briga que não era sua, assustado, pulou da van no retorno do banho. Desapareceu noutra cidade. O proprietário veterinário procurou até ao anoitecer. Deu-se por vencido. Entregou o Dexter, filhotinho de morador de rua adotado por minha filha. Comunicou que “o outro fugiu”.

A partir desse dia minha filha e eu, sempre às tardinhas, íamos à cidade vizinha procurar por ele. Nada. Nenhum sinal do meu cachorro.

Numa manhã, enquanto trabalhava, recebo uma ligação da minha vizinha. “O Neguinho está no portão da sua casa. Está chorando muito e bastante machucado.”

Liguei para o veterinário proprietário. Neguinho estava com os testículos pendurados ao corpo. Uma castração acidental ao pular alguma cerca de arame farpado? Ou uma facada deliberada por alguém? Grande ferida infectada. A vizinha e eu cuidamos do pós-cirúrgico.

Neguinho, quatro semanas depois de perdido, havia voltado. Teria vindo pelos trilhos da ferrovia? Ou teria vindo pelo faro? Acho que ele tinha GPS. Ainda hoje essa pergunta continua sem resposta.

Meu companheiro de vinte anos continua vivo. Tentando viver. Está cego pelas cataratas. Muito emagrecido. Pernas arqueadas. Escutando pouco. Barbinha branca. Entretanto continua deitado sempre num lugar de onde não me perde de vista.

“Como é que esse cachorro está vivo até hoje?” É a pergunta que todos, ao redor, me fazem.

Não respondo. Cá com os meus botões penso que “é amor demais por quem cuidou de Duquesa, seu grande amor”.

Funil

21/09/2024


E nesta noite, quando caiu a primeira chuva desta primavera, depois de mais de cento  e cinquenta dias sem chuvas, escutamos um choro, um pedido de socorro vindo do meio das bananeiras. Identifiquei o choro. Era ele. Chorando no local, onde normalmente dorme, estava preso, quase coberto por folhagens e galhos caídos com as ventania e a chuva. Ele não conseguia se desvencilhar de tudo aquilo que o  impedia de se levantar. Foi resgatado e trazido no colo por minha filha que o acomodou bem pertinho de nós. 

domingo, 8 de setembro de 2024

Crônica: que barulho é esse vindo lá do céu?


- Que barulho é esse? Indagou a quaresmeira roxa, toda florida, bem ali na esquina dos móveis.


- Sei não, mas tá me parecendo o ronco de um helicóptero. Respondeu o manacá da serra lutando prá ficar de pé com tanta falta d’água.

- Agora vem ele lá, roncando feito bicho doido. E tem alguma coisa dependurada nele. Acho que é muita água pra nós. Valha-me Deus! Falou a buganvila escarlate da vizinha.

As palmeiras mais altas da região abaixaram suas folhas temendo levarem um jato d’água fria sobre elas.

E as conversas continuaram num grande e inesperado frenesi entre as árvores sobreviventes das inúmeras e grandes queimadas de toda a região.

De repente a paineira, que nessa hora parou de soltar suas painas, olhou para ver aquele arco geométrico sextavado e vazado, como se fosse uma imensa lente de óculos. Assustou, deu um grito e desmaiou.


- Acho que estamos todas sendo filmadas, ao vivo, para saberem quem de nós será a primeira a ser sacrificada. Assim falou a sibipiruna que foi socorrer sua amiga paineira.

Foi nesse instante que vários aparelhinhos de telefone saíram de suas casas e entraram em cena para filmar aquela gigantesca estrutura pendurada, por um fio, ao helicóptero como a querer capturar todas as árvores.

Os humanos também ficaram em alerta.

- Acho que alguns homens querem nos proteger. Estão preocupados também com essa seca danada. Falou o impávido eucalipto, espalhador de folhas secas por todos os lados em volta.

- Estão nos filmando. Abaixem as suas copas. Gritou o mais velho de todos, o assustador jatobá. Foi nessa hora que o bicho - helicóptero se mostrou todo sobre aquela linda fazenda bem perto de nós.

O ipê, todo preocupado com sua floração dourada, nem havia dado fé de tanto reboliço naquelas terras e, ao se ver sendo visto, juntou suas flores aos berros. Querem roubar o ouro das minhas flores!

Sobre as cabeças de todos os moradores, o ronco do helicóptero com seu olho a ver tudo, deixou-nos nus.

- O que será que querem de nós? Essa foi a pergunta que ecoou de dentro de cada um dos aparelhinhos de celular. Eu, cá comigo, fiquei engasgada. Logo fui pensando nas riquezas que temos guardadas bem debaixo dos nossos pés. Esse ouro acinzentado que tudo transforma em cinzas para trocar por dólares.

- Quem será que encomendou isso? Foi logo perguntando um miquinho sobrevivente das queimadas

- Mas hoje é sete de setembro, hoje é feriado e esse negócio continua sobre nossas cabeças. Ah, não sô! Era meu vizinho que encontrei numa dessas manhãs a me mostrar os vários ipês despontando nas terras queimadas.

- Além da seca que nos preocupa, ainda vem esse trem voador a nos aumentar nossos desassossegos. Pensou calada a mangueira preparando para sua floração.

-Oh, dona, posso tomar água aqui na sua vasilha? Estarei ficando louca ou é um jacu a me pedir água? Pois não é que é um jacu querendo beber água na minha velha panela de pedra.

-Fique a vontade! Lhe respondi. E logo vi um tucano tentando bicar minha outra vasilha d’água pelo terreiro afora.

- Sei não, mas esse negócio não tá me cheirando bem não...Pensei eu com meus botões

Depois de várias conversas entre os moradores, descobriram tratar-se do moderníssimo helicóptero geofísico, talvez comprado pelas mineradoras, com fins de identificação de recursos minerais, para exploração mineral, exploração de água subterrânea, geotecnia, arqueologia, meio ambiente e, com toda certeza, usado para buscar nossos preciosos minerais subterrâneos.

- Some prá lá trem dos infernos! Gritou uma atrevida maritaca.

- Oh céus, oh vida, oh azar... isso não vai dar certo! Gritarei eu assim como a hiena Hardy, do desenho animado Zé Colmeia, dos meus tempos de criança, lá pelos idos de 1970.

- E agora, quem poderá nos defender? Gritaremos todos nós neste domingo cujo silêncio nos tem sido ensurdecedor. 

Lamentavelmente nenhum Chapolin Colorado aparecerá para nos defender.

Os dólares são por demais poderosos.

08/09/2024











terça-feira, 27 de agosto de 2024

Que som é este?

                             



Ronronricó!!!

Foi assim que aconteceu naquele meu galinheiro que todos pensavam que seria para prender estrelas. Se bem que as moças, nas suas boas educações, resolvessem dar nomes de artistas de cinema para minhas galinhas. E as penadas entraram em cena vestida a caráter. Uma delas colocou na cabeça o cesto de frutas da Carmem Ciranda e danou a rebolar ao lado do Neguinho que, cego dos olhos e surdo dos ouvidos de tão velho, nem dava trela para ela. Nesta hora, Paçoca, o escalador de muros, começou a latir dentro do viveiro parecendo que queria voar pra perto da moça do abacaxi na cabeça. O mamoeiro, ereto ali do lado, observava tudo de maneira calado. Queria era que seus frutos estourassem para fazer uma metralhadora com os caroços e sair atirando naqueles tantos que lhe perturbavam o sossego.

Isa Brown, minha galinha botadeira, veio pedir para vestir de Sacy Pererê dizendo que estava cansada de ser red bull. Saiu ciscando terreiro afora até encontrar com uma vaca louca que havia perdido seu bezerrinho. A botadeira dos ovos vermelhos resolveu ajudar a distinta a procurar seu filho. Foi então que escutou um som desconhecido ali por perto, logo pensou que seriam os gases flatulentos da acerola e da dama da noite. Esta última ficou indignada com tamanha desfaçatez. “Eu, uma dama fazer tal coisa?”, resmungou.

Eis que, mais uma vez, aquele som rouco e esquisito, ecoou pelos lados do canil. “Nem me olhem”, resmungou Ernesto Guevara, ali apelidado de Totó. “Não sou de fazer tais coisas perto da mãe Severina”.

“Calados! Todos agora calados! Acho que também escutei um barulho de canto mal cantado”. Bradou a formiga rainha. "Ah, se eu te pego, sua danada, te faço comer todas as folhas cortadas do meu pé de jabuticaba” ameaçou a dona daquele furdunço.

Ronroncoricó...

Olhos atentos, ouvidos apurados, e a cachorrada olhou para o céu. Lá estava o casal de tucanos a cantarolar, com a voz do Frank Sinatra, a Menina de Ipanema.

“Isto não! Aqui no meu terreiro não admito canto estrangeiro.” Era a vovó Zarinha a botar ordem naqueles poleiros.

De medo da brabeza daquela vovó, todos se calaram, até a muda metida de mirtilo, tagarela feito ela só, amiudou nos seus assuntos com a alamanda.

De novo escutaram aquele som esgoelado que parecia que saía, mas não que não saía do gogó. E aquele som foi se repetindo até que todos olharam para aquele o lugar de onde ele vinha. 

Lá estava o frangote, pintado de preto e branco, em cima da tampa da fossa, pensando que era seu trono. Acho que ele estava treinando muito, sem parar, porque queria virar galo e ser candidato a mascote do maior time do Brasil e cantar em todas as freguesias bem junto do Hulk e, quiçá, até junto do Dadá Maravilha.


                                 
Frangote cantador



                                                         Neguinho

                                               
          Isa Brown

                                                           Acerola


                                         Mamoeiro ereto

Observação: este texto chamado de "nonsense" foi produzido conforme sugerido pela oficina de escrita. Eu o dedico ao meu neto e a todas as vovós contadoras de histórias.


Texto do meu professor de escrita:

Nonsense significa "sem sentido", em inglês, é uma expressão que denota algo disparatado, sem nexo.

Ela é frequentemente utilizada para denotar um estilo característico de humor perturbado e sem sentido, que pode aparecer em diversas artes.

Nas artes literárias, o nonsense encontra como autores Lewis Carroll e Edward Lear, ambos ingleses.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Crônica: Cuba - Parte final

 


 

Adeus montanhas de Piñar del Rio. Agora nosso destino é a cidade de Varadero, famosa por seus vinte quilômetros de praia. Agora também somos seis mulheres com três gerações diferentes. Ao nosso grupo aconchegaram mãe e filha de São Paulo, duas simpáticas e descoladas senhoras.

Calada a olhar, eu não queria deixar passar nenhum detalhe daquela viagem. De repente placas por todos os lados indicando Matanzas, uma cidade com o mesmo nome de seu estado. Segundo nosso motorista ali houve uma matança enquanto Cuba colônia. (Pesquisando agora, o nome se deve ao fato de pescadores atenderem aos pedidos de socorro de soldados espanhóis para atravessarem um dos três rios que cortam a cidade e, no meio do rio, os pescadores afundaram os barcos dos soldados).

Da janela do carro pude ver o campus da imensa Universidade de Matanzas “Camilo Cienfuegos”.

Agora quero falar com meu neto, lá do outro lado do mundo:

- Dudu, você não vai acreditar! Jogaram anilina verde claro naquela beirada de mar e o verde foi se misturando com outras cores e eu fiquei abestalhada com tantos verdes, verde com tons azuis, desde azul turquesa até azul marinho. Oh gods my! (É assim que fala “oh meus deuses” em inglês?). Era o mar de Varadero, para onde estávamos indo.

Jamais pensei em ver tanta água com tantos tons quando, na manhã seguinte, fomos àquela famosa praia cubana. Depois de perguntar de que lado ficava a praia em relação a casa onde nos hospedamos, obtivemos a seguinte reposta: “tanto faz, de qualquer lado tem mar”.

“Não seria Varadero a praia mais bonita do Caribe?” (1)

E tem mar por todos os lados. Mar de água morna, calmo e que vem brincar conosco, possibilitando mergulhos e nados por grandes distâncias. Sou da água, mas sou medrosa. Ficava em contato com aquela água fazendo longas viagens para dentro de mim. De vez em quando, via nossa companheira paulistana, de oitenta anos e mais um pouco, dando shows de acrobacia dentro do mar, mergulhando e nadando ao meu lado. Impossível querer sair daquela água. Ficaria ali por longas horas não fossem os raios solares sobre nossa pele.

A cidade de Varadero é linda, com cubanos agradáveis, turistas indo e vindo, uma lojinha aqui outra acolá, restaurantes com deliciosas comidas e bebidas. Só uma coisa não ia tão bem: o sol escaldante do Caribe e o calor intenso. Mas, como diz o ditado, quem está na chuva é pra molhar, aqui ao contrário seria, “quem está em Cuba é pra suar e deslumbrar”.

No dia seguinte queria conhecer o centro da cidade. Pegamos um táxi que nos deixou ao longo da mesma avenida após nos dizer que ali tinha uma padaria. Eu queria comer pão. Entramos numa construção que me parecia um shopping. Seria um projeto de shopping? Não sei, mas tinha pães deliciosos e café, muito café Cubita.

Dois dias de Varadero com praia e já era hora de voltar para Havana.

Voltamos para “casa” com saudades de nossa anfitriona e dos seus cafés da manhã. Na manhã seguinte, levantei cedo “em casa” e a encontrei preparando nosso desayuno. Ela quis conversar comigo e eu tentava ouvir e entender-lhe o espanhol. De repente ela lançou mão do seu celular e já começou a traduzir tudo que eu falava. Ri da esperteza dela e nos demos muito bem. Perguntei-lhe de suas roupas brancas e dos seus colares, quando me disse que era da religião iorubá e negou ser fotografada comigo em respeito às suas crenças. Mais tarde veria muitos cubanos vestidos de branco pelas ruas. Ao me despedir dela, dei-lhe uma blusa branca que havia comprado na Nova Zelândia e ela se emocionou ainda mais quando lhe pedi um abraço. Ainda voltarei em Havana e quero me hospedar no mesmo apartamento para vê-la de novo.

Em Havana queria conhecer a casa onde Chê Guevara havia se hospedado por uns meses quando por lá. Um simpático motorista de táxi nos levou até o bairro Casablanca. Foi circulando naquela casa, lendo a linha do tempo da história da vida do Chê com a revolução cubana, onde mais me emocionei. Parecia que eu fazia parte daquela história.

Lá de cima da casa vimos o porto de Cuba e a cidade aos nossos pés. Não teria sido sem motivos que aquela casa fosse a escolhida. Uma das moças que nos acolheu nos disse que Chê gostava muito de jogar xadrez e que era tão inteligente que jogava até com quatro adversários ao mesmo tempo, razão das quatro mesas com tabuleiros de xadrez expostas numa das salas da casa. Disseram-nos também que naquela casa morava um cunhado do ditador Fulgêncio Batista. Ao sairmos da casa, nosso motorista estava nos esperando nos arredores de um parque com dezenas de árvores. Ele não cobrou o retorno. Estava feliz demais com nossa visita àquele lugar.

No último dia em Havana parecia que eu estava no meu país. Saímos para almoçar e deparei com uma senhora elegante na porta de um departamento público. Achei aquela cena linda e a pedi para fotografá-la. Ela abriu um sorriso e fez pose. Depois lhe mostrei a foto e ela me deu um abraço cubano que jamais esquecerei.

Nosso almoço de despedida foi no elegante restaurante Los Nardos. Ali conversei com o garçom sobre as espécies de madeiras que preenchiam todo o espaço com cadeiras e mesas pesadas, enormes prateleiras do piso até o teto para garrafas de vinho e aparadores de pratos também de madeira. Ele foi muito gentil e me convidou a ver peças antigas guardadas em armários também muito antigos, e me disse tratar-se das madeiras Roble e Caoba.

E voltamos na rua Obispo. Então pude perceber que vários objetos eram feitos de restos de materiais “reciclados” ou aproveitados. Vi um colar feito com o maquinário de um relógio de pulso com as cordas ainda andando. Vi anéis feitos de moedas antigas e teria visto muito mais se tivesse observado mais. Fiquei impressionada com tanta criatividade.

“Os cubanos dizem que todos os segredos da vida do país se resumem num verbo: resolver. Em Cuba, resolver é uma filosofia, uma atitude diante da vida, uma realidade, uma religião e uma teologia. Tudo se pode resolver, que é diferente de comprar, obter, merecer. Resolver é, na realidade, a arte de viver em Cuba.”(2)

Nas duas últimas noites em Havana, nosso patrocinador e sua companheira nos levaram a uma ruazinha toda iluminada, bem perto do “nosso apartamento”, onde havia excelentes sons cubanos, cantoras da música cubana, lanches e nossas bebidas prediletas: mojitos e Cuba Libre.

Voltei com uma frase lida em algum lugar de Cuba : “Pátria es humanidad”.



08/08/2024

(1) e (2) “Água por todos os lados”, Leonardo Padura

Observação: peço aos leitores que se identifiquem, caso queriam fazer comentários. 








                                                               Táxi em  Varadero










                                                      Restaurante num barco antigo


                             













                                                Uma aldrávia de mais de 200 anos, ainda em uso

                                                     Artes com material reciclado numa cerca em Varadero
    


                                             Vista panorâmica de Havana 





                                                   Quarto de Chê Guevara



                                                 

terça-feira, 30 de julho de 2024

Crônica: Cuba - Parte 2

                                             


Antes de reiniciar minhas histórias em Cuba me lembrei de um fato que presenciei ainda dentro do avião no percurso de São Paulo a Lima. Como nosso voo era noturno e o cansaço já se fazia presente, dormi logo após a decolagem em direção ao Peru. Acordei no meio da noite e olhei pela janelinha do avião, ao meu lado esquerdo. Vi algo que eu não entendia. Eram vários e enormes quadrados, um dentro do outro, iluminados com luzes fortes e outras luzes, tão fortes quanto aquelas, próximas à visão dos quadrados. Na hora lembrei-me do meu neto e queria contar para ele o que eu havia visto. Diria assim: “Eu vi o céu lá embaixo. Ele estava muito estrelado e tinha uma gigante constelação quadrada e outras menores que pareciam a via láctea. Era maravilhoso aquele céu. Mas como eu ia ver o céu de cabeça para baixo?! Achei aquilo muito esquisito”. 

Eu não conseguia tirar meus olhos daquela imagem e só no depois foi que me dei conta que aquilo poderia ser a lendária e remota cidade de Cusco ou Machu Picchu que estão a mais de três mil metros acima do nível do mar. Jamais esquecerei aquela visão.

Pois bem, depois de publicar a parte 1 da minha viagem a Cuba, abri os mapas que trouxe de lá e continuei minha viagem pelos lugares por onde passei.

Nossos anfitriões brasileiros nos deram muitas sugestões de como andar pela ciudad vieja, onde comprar nossas lembrancinhas, onde poderíamos fazer nossas refeições e onde havia entradas gratuitas para museus e espaços de arte. Eles já haviam nos enviado arquivos com muitas informações sobre a região onde nos hospedaríamos e sobre tudo em torno.

- Vocês já foram à Rua O Bispo? É lá que se encontra a feira permanente para vocês fazerem suas compras.

Coloquei meu boné vermelho com a palavra LULA, para proteger meu rosto do escaldante sol do Caribe, e para lá nos dirigimos com nossa colega – multilínguas – a nos ajudar nas conversas com os cubanos. Ainda caminhando pelo Paseo de Martí (Prado) alguns expositores ou guias cubanos olhavam para meu boné, davam um sorriso e faziam o L com a mão, outros aventuravam e diziam, com sotaque espanhol, “Lula livre”.

Encontramos a rua que, na verdade, se chama Obispo e ela estava bem pertinho de nós. Centenas, ou milhares de turistas, andando de um lado para outro numa estreita rua havanesa com dezenas de lojinhas e feiras.

Mas, logo na esquina da referida rua demos de cara com uma livraria onde entrei ávida para encontrar um livro do poeta e libertador de Cuba, José Martí, pedido do meu editor escritor, poeta e jornalista de quem tanto gosto. Ali já me dei por satisfeita, nem precisava andar mais. Mas continuamos, as quatro mulheres, pela estreita rua Obispo. Meus olhos vagavam pela arquitetura dos casarões, pelas placas indicativas de escolas, prédios do governo, restaurantes e pelos tantos turistas que disputavam os espaços.

Depois do almoço eu queria encontrar e caminhar pelo Malecón, definido assim por Leonardo Padura : “O Malecón de Havana é um parapeito de blocos de cimento e concreto aramado que corre pela margem norte da cidade, de frente para a corrente quente do golfo do México...” (1) e ele continua a descrevê-lo em várias partes de seu livro, com muita nostalgia dessa barreira física da cidade. E nós caminhamos, no final da tarde, pelo Malecón onde várias famílias com suas crianças, casais de namorados, alguns aventureiros pescadores, transitavam serenamente. Nesse instante meu sentimento foi de plenitude. Parecia que eu pertencia àquele lugar, em meio a tanta água. Mais tarde percebi que “nosso apartamento” estava bem perto do Malecón.

- Amanhã vocês irão para Viñales, uma região montanhosa com mural pré-histórico, cavernas e uma típica recepção na casa dos moradores de lá. A viagem durará em torno de 5 horas. Preparem-se.

Avisou Zeca, “nosso guia”.

Na manhã seguinte nosso café já estava sobre a bela mesa em pátina branca combinando com as roupas brancas de nossa anfitriona.

“Barriga cheia, pé na areia.”

Tão logo as montanhas começaram a aparecer sentimos a mudança do clima. Eu não acreditava no que estava vendo, uma belíssima região montanhosa, com riachos e ranchos cubanos que me fizeram lembrar a zona rural dos meus familiares em Minas Gerais. Paramos num mirante de onde avistamos formações rochosas que eu não conhecia. Tratavá-se da região do Piñar del Rio, região mais ocidental de Ilha de Cuba. Nosso destino era Viñales, cidade onde são feitos, artesanalmente, os mais famosos charutos de Cuba, que lá eles chamam de tabaco.

Na varanda da casa estava o casal a nos esperar com grandes sorrisos, abraços calorosos e taças com frutas locais. Carlos e Mariela nos acomodaram nos quartos e, as duas novas colegas de São Paulo, foram para outra casa. Após o almoço, servido por eles, nos convidaram a ir ver onde são feitos os charutos. Minha colega de viagem tinha a encomenda da compra de charutos “Romeu e Julieta”, tão famosos quanto os outros, mas só me lembro do chamado Cohiba. Caminhamos muito entre becos e trilhas e observei que não havia cercas delimitando espaços entre as casas. Perguntei ao Carlos, que nos acompanhava, sobre a ausência de cercas e ele me disse que “aqui não há cercas porque somos uma comunidade. Todos ajudam uns aos outros...” e continuou no seu espanhol a me falar sobre a localidade.

Pregado na parede da casa deles, num quadro de vidro, li o diploma de engenheiro agrônomo de Carlos. O filho único, jovem universitário, falou do seu desejo em fazer mestrado na área de engenharia agrária numa universidade brasileira, mas reconheceu as dificuldades financeiras e aquelas refrentes aos intercâmbios entre os dois países. Além disso, já estava noivo.

(Devo confessar que, durante toda a viagem, estive ávida por tomar café. Infelizmente não havia tanto café e, só agora enquanto escrevo, é que me dou conta de que teria feito uma abstinência de cafeína – porque meu humor estava péssimo e eu sentia um cansaço inexplicável. “Desculpem-me minhas colegas de viagem!”)

À noite fomos andar por Viñales e encontramos uma cidade viva, com vários e belos restaurantes com cardápios variados e deliciosas bebidas. Ali também me esbaldei com o mojito e a cuba libre além das limonadas com hortelã e sanduiches artesanais super bem feitos.

Na manhã seguinte nosso táxi para seis turistas estava cedo na porta de casa. Ele nos levaria até as montanhas, ao mural pré-histórico, às cavernas e ao mirante. Foi por ali que fiquei perplexa diante de tanta beleza.

“El panorama de la Serra de los Órganos es extraordinário. Los mogotes del Valle de Viñales, las innumerables cavernas que atraviesan estas montanhas cársicas y las vegas donde crece el mejor tabaco del mundo”(2).

Toda a região faz parte da reserva Mundial da Biosfera e é protegida pela UNESCO.

O gigante mural com oitenta metros de altura e cento e vinte metros de comprimento, um dos maiores murais do mundo, representa a evolução da vida animal no planeta Terra.

Havia uma simples, mas arrojada estrutura, como uma praça, para receber os turistas e foi ali que minha colega comprou seus “tabacos”.

Hora de ir às cavernas e descer de barco num rio subterrâneo. Entramos de cabeças abaixadas dentro de uma caverna que parecia não ter fim, até chegarmos ao barqueiro. Só esperava que não fosse Caronte, barqueiro da mitologia grega que transportava as almas através das águas do Hades.

E saimos da caverna numa campina linda onde um simpático restaurante já nos aguardava para o almoço.

Uma “cuba libre”, porque depois de sair daquele rio nas profundezas da montanha, só um legítimo rum cubano.

30/07/2024


(1) "Água por todos os lados" autor Leonardo padura

(2) Folheto - Mapa turístico de Piñar del Rio


Observação: Caso queiram fazer algum comentário não esqueçam de de se identificarem. 

Fotografias: arquivo pessoal e da colega jovem viajadeira. a foto de abertura desta crõnica é da simpática vendedora na lojinha do mural em Viñeda e ela autorizou a postagem.


                                        Paseo de Martí


                                                        Mariela e eu

                         

                                 
                                           
                                                        Igreja na cidade de Viñales


                                               
                                              Restaurante na campina em Viñales


                                    
                          Pequeno cartaz na parede da casa de Mariela e Carlos.
                                
                                          Nós indo ver como se fazem os charutos

                                             
                                                    Rua de Viñales

                                          
                                                     Placa indicativa das distâncias de Viñales

                                                   
                                                        Hotel nas alturas de Viñales

                                              
                                   



        Boiadeiro distraído


                 
                                                 Boiadeiro montado no touro a meu pedido


                            
                                                       Nosso táxi de oito lugares


                                                    
                                                        Mural, uma parte dele.



                                           
                                                            Painel explicativo do mural


                                                              
                                                               Na barca de "Caronte"



                                                
                                                 Táxi de luxo



                                                   
                                                                Praça do mural


                                                     
                                                  Formação rochosa

                       

                                                          Formação rochosa com neblina