(DELICADEZAS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS - V)
-"Mãe, lá em Minas tem minério pra todo lado. Até nas margens das estradas. Olhe aqui!"
Margarida entregou à mãe uma pequena pedra escura que havia apanhado quando, deslumbrada com sua primeira viagem a Minas Gerais, pedira a um motorista que parasse para que pudesse pegar uma pedra. Guardara a relíquia dentro da bolsa como se aquela fosse uma pedra valiosa.
Foi assim que Lúcia reviu Dona Aparecida. Havia combinado com a amiga de infância que voltaria com ela se a mesma fosse visitá-la em seu novo emprego na capital mineira.
As duas se conheceram ainda crianças, no bairro da Moca onde morava a avó de uma delas. Tornaram-se inseparáveis desde então. Mas, como sabido, os sonhos infantis nem sempre acompanham seus sonhadores. E assim se dera com as duas meninas, naquela ocasião, já eram jovens adultas. Cada uma seguira seu caminho. Cada uma buscando seu lugar no mundo.
Margarida cursou contabilidade; trabalhava num escritório no centro de São Paulo e Lúcia acompanhou um grande amor que morava em Belo Horizonte. Continuaram mantendo contato e prometeram uma à outra de se verem uma vez por ano.
No primeiro ano, após a partida de Lúcia, Margarida agendou suas férias tendo alguns dias coincidindo com o período das férias escolares. Telefonou para a amiga e combinaram as viagens. Adiantou o desejo de conhecer a histórica cidade de Ouro Preto e ver as montanhas mineiras.
Depois de passearem pela Pampulha, pela Praça da Liberdade, pela Feira Hippie, pelo Mercado Central, nos dois primeiros dias, foram para Ouro Preto.
Margarida não contava com o encantamento das estradas nem com as pedras nas suas margens. Seus olhos queriam ver além. Percebeu que via mais com o coração do que com os olhos. Não se importou com a emoção nem com as lágrimas. Estava emocionada. Era sua primeira viagem para outro estado brasileiro.
Lúcia, enquanto acompanhava a amiga, ia contando as histórias de Minas que aprendera com o namorado, professor de história e amante dos "Inconfidentes".
As duas subiam e desciam pelas ladeiras da cidade encantadas com os calçamentos de pedras, com os casarios, com as igrejas e suas artes barrocas que ela já ouvira falar e, principalmente, com a Praça Tiradentes. Às vezes riam com os nomes das repúblicas dos estudantes universitários. Comentavam acerca do grande número de turistas que cruzavam por elas em todos os lugares da cidade.
No final da tarde voltaram para a capital. Margarida, apesar do cansaço, não conseguiu fechar os olhos que saltavam de um lado para outro entre as montanhas e os desfiladeiros da estrada.
Voltando para São Paulo com a amiga, Lúcia, depois de rever seus familiares entrou num ônibus e se dirigiu à casa de Margarida. E foi no abraço dado à dona Aparecida que seu olhar viu outra cena.
O irmão mais velho da amiga estava sentado numa cadeira na área contígua à porta da cozinha. Viu que ele usava um pijama bem maior que seu corpo. Nele chegavam os últimos raios de sol daquele inverno. Antônio não virou para ver a amiga da irmã. Continuaram os abraços e conversas como se ele não estivesse ali. Mas Lúcia não pode deixar de perceber seus movimentos lentos, seu emagrecimento e sua pele muito esbranquiçada.
Durante todo o tempo da visita se viu buscando aquela cena. Ouviu o rapaz pedir uma lata de leite condensado. Notou a voz fraca e irritadiça. A mãe apenas comentou que, “ultimamente ele só come isto”. A amiga disse, com desinteresse, que o irmão estava com uma doença rara que os médicos não descobriam o que era. Já havia feito vários exames e não conseguiam chegar a nenhuma conclusão. Só diziam que ele estava com anemia e sem defesas para outras doenças, mas não conseguiam descobrir a causa. Já havia sido internado devido a crises de diarreia e até tivera pneumonia. Tratavam, davam muitos antibióticos, mas logo piorava novamente. E o rapaz só ia definhando.
Dona Aparecida achava que poderia ser mau-olhado, pois o rapaz era muito bonito e tinha um futuro promissor. Estudava engenharia e já trabalhava como estagiário numa grande empresa de construção civil.
-"É isto. Fizeram alguma coisa muito bem feita para meu filho", dizia Dona Aparecida, resignada com a situação. Lúcia apenas escutava. Lembrava-se do irmão da amiga e das várias colegas que apaixonavam por ele. Nunca havia se interessado por nenhuma delas. Quisera olhar nos olhos do moço e lhe dar um sorriso, entretanto só o viu através das palavras da mãe.
Voltou para Belo Horizonte com a cabeça ainda dentro daquela cena. Não conseguia entender porque não parava de pensar naquela doença esquisita, na solidão, na anemia, no pijama largo, nas réstias de sol e no mau-olhado do irmão da sua amiga que estava mais preocupada com a pedra no meio do caminho das Minas Gerais.
Depois de algumas semanas, Lúcia já tendo retomado sua rotina de estudos num cursinho de pré-vestibular da cidade, escutou uma notícia que lhe chamou a atenção. Médicos e cientistas anunciavam as primeiras mortes, em São Paulo, de doentes portadores da “síndrome da imunodeficiência adquirida” à qual chamaram de SIDA. A doença seria causada por um vírus descoberto recentemente, originário da África e o primeiro caso, descoberto nos Estados Unidos, havia infectado um homem que tinha morrido.
Era final dos anos oitenta do século passado quando o mundo conheceu um vírus que, infectando os homens através das relações sexuais e das transfusões sanguíneas, atacava e destruía todo o sistema de defesa do corpo humano. Muitos jovens morreriam naquela década de noventa.
A partir de então jovens do mundo inteiro foram alertados sobre o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e mudariam seus comportamentos sexuais uma vez que havia uma pedra no meio do caminho.
(Conselheiro Lafaiete, 13/05/2020)