quarta-feira, 27 de maio de 2020

Conceição ou a Rainha de Sabá?


Delicadezas em tempos de Coronavírus - VII




Naquela época ela já era obesa. Não lembro se o fato de não andar estava relacionado com isto, ou se era portadora de alguma outra doença, ou se, simplesmente, gostava de ser levada dentro daquele carrinho.

Mas ainda lembro bem de suas exaltações nos meses de maio quando as flores brancas serpenteavam o vão da pequena ponte sobre a via férrea. Ou quando chegava o frio e ela queria ficar ao sol.

Tanto suas risadas quanto seus xingamentos e deboches se davam em altíssimo tom e reverberava pelo entorno.

Conhecia bem seus súditos e os pontos fracos de cada um, assim chantageava uns, defendia ou culpabilizava outros, sempre de acordo com seus interesses e vontades. Comia exageradamente. Não aceitava as dietas ou os remédios prescritos. Dizia que não precisava daquilo.

Seus banhos exigiam dois ou três eunucos e fazia desses momentos, cerimônias sagradas para si. Exigia roupas limpas, vestidos coloridos, cabelos lavados e água de cheiro. E, como já informei, todos andavam sob suas ordens ou poderiam sofrer terríveis retaliações.

Sobre sua carruagem empurrada por funcionários escolhia os destinos e fazia longas viagens pelos arredores do seu imenso palácio.

Dar um bom dia podia ter como resposta um suave aceno de mão, um bom dia desinteressado ou um palavrão conforme tivesse seu humor na manhã. Mas ela sempre amanhecia dando ordens e coitado daquele que caísse em seu desagrado. Ela gritava uma infinidade de impropérios tirados do fundo do seu baú.

Quem a visse assim poderia imaginá-la como sendo a famosa rainha das terras de Sabá que teria vivido por volta do século X a.C., ou quem sabe, a terrível Catarina de Médicis. 


Só sei que era uma matrona da realeza mineira.

Conceição era assim, poderosa nas suas atitudes, ferina nas suas palavras e dona de suas vontades. Todos deveriam andar sob seu jugo senão lá vinham xingatórios e muito furdunço.

Sua voz ia do agudo dos gritos de raiva e destempero ao grave de suas histórias dos amores deixados ao leu, passando pela rouquidão quando queria fazer charme, ou pelas estridentes gargalhadas por deboches de alguém.

Ela era assim: uma mulher completamente dona de si. Para ela não fazia a menor diferença seu corpo avantajado, sua pele branca e envelhecida, seus cabelos em desalinho. Todo aquele conjunto desarranjado fazia dela a mulher mais bela de todo seu reino.

E seu reino era toda a vastíssima área do Hospital Colônia de Barbacena com seus vários pavilhões apinhados de “loucos e loucas” abandonados e segregados pela política de assistência psiquiátrica daquele início de século.

E Conceição era a rainha de seu tempo.

Quando morreu foi enterrada com honras de estado e seu carrinho empurrado por vários funcionários daquela unidade hospitalar.

Salve sua alteza, a rainha Conceição!


Observação: esta história foi inspirada na paciente do mesmo nome, interna do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), onde fui “acadêmica de medicina concursada” pela FHEMIG, no ano de 1981. A ela  (e aos demais que ali viveram) rendo muitas homenagens.


(Conselheiro Lafaiete, 27 de maio de 2020)

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