terça-feira, 30 de setembro de 2014

BATERAM NO MEU CARRO


  
      ...E MEU CORPO ESTANCOU.

  
      Tudo parecia nos conformes e nos controles.
    
      As aulas do meu novo curso começaram. Gente nova, sorrisos novos. Excelentes professores. Muitas leituras e questões a serem destacadas. Desafios num tempo avançado do meu viver. Desassossegos na alma ainda jovem e num corpo já maduro.
      
      Vamos lá. O aprendizado requer mais que o desejado. Após um dia de trabalho eis-me indo para mais uma noite de estudos na nossa capital mineira. Na BR 381, surpreendentemente, reinava tranquilidade.  O inverso viria acontecer no hiper centro da minha linda cidade de Belo Horizonte.

      Eu e meus trinta anos de motorista estávamos bem. Então escuto um barulho rouco, forte e rápido e outro no instante a seguir. Bateram na traseira do meu carrinho mil jogando-o na traseira do carro da frente. O motorista deste último saiu do carro quase a me dizer “ só podia ser mulher”. Era o que eu esperava ouvir. Mas antes dele abrir a boca, apontei o estrago vindo de trás.
      
    Minhas pernas travaram, minhas palavras travaram, meu coração disparou. E meu carro acabou. Minha jovem filha, a quem eu havia dado uma carona, sai do carro.

     -“ é agora que a vaca vai pro brejo.”

      Essa filha é muito impulsiva e sem papas na língua. Eu ainda não havia tido pernas para sair do carro e ela já havia fotografo e filmado os três carros. Tomou à dianteira, conversou com um motorista, com outro e com os dois. Foram lá se entender os três até que eu tomasse tento. E até agora eu não tomei juízo do acontecido.
     
     Fiquei como que obnubilada. Lembrei-me de Homero em sua Ilíada, falando que " a Obnubilação é a filha mais velha de Zeus, que a todos obnubila,mortífera! Delicados são seus pés. Pois não é no chão que caminha, mas sobre as cabeças dos homens, prejudicando os seres humanos. Ora a uma ora a outro, ela amarra".

     Pois bem eu estava amarrada e trombada.
    
     Dois dias depois e nada resolvido com seguradora e oficina credenciada. Eu ainda lá, sentada, ouvindo o barulho e sentindo a pancada. 
     
     E agora?   
    
     Na verdade só  quero dizer que tudo saiu do lugar. Aquilo, que eu pensava estar sob controle, descontrolou. Meus livros e anotações se desenlaçaram.  Minha leituras ganharam o tom da lerdeza e da repetição. Parei. 
     
     Minha filha continua nas ligações e nos despachos dos papéis.
     
     Decido escrever. É minha forma de caminhar parada. Assim tento reengendrar meus pensamentos e tomar de volta aquilo que não estava comigo.

    Então penso no fato corriqueiro da alienação quando muitas pessoas parecem pactuar com suas esquisitices. Mas aqui não há obnubilação. Tratá-se de outra coisa. Uma escolha. Uma estranha escolha para o sofrimento.
   
    Jamais esqueci do dizer de uma bela mulher. Lá se vão mais de duas décadas. Casada com um amigo. Um dia ela bradou a afirmativa:  “ se eu souber que meu marido está me traindo, eu me separo dele”. E ele tinha uma amante ainda mais bela que sua amada esposa. Ela o sabia. Quanto esforço aquela mulher deveria estar fazendo para manter-se em sua palavra. Enganada de si mesma. Alienada no nada. E eles viveram (in)felizes quase para sempre. É só um exemplo. Podemos nos alienar nas formas mais diversas de enganos e escolhas.
   
    Sei que não existe uma fórmula mágica de sair do lugar no qual nos colocamos. 
   
    Há que parar, olhar-se, deparar-se com o inusitado, descolar-se e permitir-se outros encontros. Caso contrário a vida deixa de ser vivida. Torná-se mortífera. 

    Como nos canta nosso poeta " cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é".
   
    Mas existem outras tantas saídas deste lugar. Nossos trabalhos, a leitura, a pintura, a música, o vinho, um novo amor e o muito a se inventar no de cada um.
   
    Entretanto nada é sem dor.

21/08/2014




terça-feira, 23 de setembro de 2014

CHUVA

           

                                   CHUVA


               Chuva pequena e espaçosa.
               Donde vem a me embalar?
               Fique comigo,
               Deixe-me dançar contigo,
               Balance minhas entranhas,
               E me desperte um dom.
               Cause enxurradas,
               E molhe meus pés.
               Signifique a terra,
               E fecunde-a.
               Faça brotar o inacessível.
               Ofereça cores ao arco-íris,
               Encharque os amores
               E provoque a vida.




terça-feira, 16 de setembro de 2014

UM HOMEM, UMA BATINA E MUITOS BOTÕES


  
Acabo de saber da morte do meu Tio. Meu carro está cheio de sacolas com roupas, livros, agendas, pães e algumas flores que comprei para comemorar a chegada da primavera e enfeitar minha casinha na roça. Meus três filhos estão em compromissos distintos e em cidades distintas. Acesso minha rede social e vejo o anunciado nesse tempo real.

E agora ?

Decido embrenhar as duas viagens: seguir até o sítio e cumprir tudo que eu havia planejado. Depois seguir para a cidadezinha onde meu Tio fora pároco por mais de meio século. Lá vou eu sozinha pelas estradas nas serras de Minas.

Mas o inesperado chega sem pedir licença e molha meu rosto das lágrimas acumuladas ao longo do tempo. E é no tempo que viajo agora.

Vejo um homem doce, esperto, amável, acolhendo e recolhendo famílias em sua casa. Artioso nas brincadeiras. Nunca lhe faltando sobrinhos seguidores, aliados para suas travessuras.

O jipe era seu companheiro. Com ele fez grandes viagens. Aprendera a tocá-lo por insistência e desafios próprios. Nesse mesmo aparelho de locomoção vários sobrinhos se tornaram grandes motoristas. Aprenderam a dirigir, obviamente com o tanto que meu tio errava. Dizem alguns que, naquela época, o órgão responsável pelo trânsito na cidade grande, liberava sua carteira considerando a utilidade de tal documento para aquele padre das trilhas de terra.

Meu Tio era de poucas palavras e de muitas extravagâncias.

Na minha casa, esperávamos as férias com a certeza de que ele viria nos buscar para o convívio com os de lá. Não sei quem aproveitava mais aqueles dias, se nós ou ele a brincar conosco.

Lembro-me da correria em volta da pequenina mesa nas noites escuras na fazenda onde ele nascera. Sorrateiramente, ele apagava a única lamparina e se deliciava com aquele que fatalmente cairia nas escadas daquela imensa sala de minha infância.

Mas o que mais me intrigava eram os botões da batina do meu Tio quando ele virava Padre. Todos do mesmo tamanho e rigorosamente pregados com os mesmos espaços entre eles. Achava aquilo uma verdadeira obra de arte e beleza. E com arte também era feita a transformação do meu Tio em Padre.

Assistia minha avó, com seus olhos brilhando de orgulho diante daquele filho tão querido e especial, atender aos fiéis e seus pedidos de orações, de um café com quitandas ou de, simplesmente, a benção do Padre.

Ele recebia a todos em sua casa, com conselhos, paciência, dignidade e, às vezes, com pulso forte por alguma ovelha desgarrada. Eu achava tudo àquilo de muita honradez.

A missa ainda preservava muitas orações em latim e pensava no tanto que meu tio era inteligente e culto naquela língua tão "difficilis".

Entretanto o que eu mais gostava era quando aquele Padre, que era meu Tio, começava a cantar durante a missa. Era um sinal. Logo ecoava o som do harmônio da Marieta, as vozes graves do Tio Mário, do Marcílio, irmãos de sangue e de musica. Tinha também a belíssima voz da Maria Helena, filha da Vivita. E todos os fiéis se rendiam àquele magnífico som e se arriscavam fazer parte naquele sacro coral.

Ainda posso ouvi-los cantar.

Nos finais de semana, toda a praça ficava cheia de pessoas para assistir as missas, ouvir as pregações e os avisos. Passeavam pelos jardins e faziam as visitas aos compadres e comadres.

Lembro-me da missa das 11 horas, aos domingos. Ficava da janela da casa paroquial. Meu Tio sabia das coisas. Naquela hora os moradores das regiões rurais já haviam cumprido seus deveres com a ordenha do gado e outros trabalhos diários inadiáveis de seus sítios e fazendas. Assim poderiam vir participar da cerimônia, ouvir os recados e serem abençoados.

Este era meu Tio Padre.

Porém se meu Tio era amado pelos sobrinhos, o Padre não agradou a todos, certamente. Afinal ele era só um homem. Mas sempre teve teimosia e dignidade para assumir as consequências de suas escolhas.

Padrinho de muitos, Tio meu e de tantos outros, Padre Zizinho para quase todos. José Maria Batista, filho de D Sinhá, irmão de minha mãe, grande amigo de meu pai. Como pode um só homem ser responsável por tantas almas? Uma responsabilidade de gigante.

Ele também foi responsável pelo percurso meu e por meu gosto pelo néctar dos deuses. Pois me lembro de quando roubávamos o vinho doce da adega de sua casa, lugar frio e escuro para onde éramos levados nos castigos de crianças. Também me lembro da sua irritação, anos mais tarde, quando me viu com um livro de Freud nas mãos. Fiquei me perguntando o que ele deveria saber do Pai da Psicanálise.

Meu Tio Padre foi um homem espetacular.

Agora no céu já não falta o iniciador das músicas, a cantoria já pode começar.

Aqui na terra ficamos órfãos, mas abrilhantados pela convivência.

Ficamos sem meu Tio e sem nosso Padre, mas ficamos todos com nossos botões...

terça-feira, 9 de setembro de 2014

SHEERAN




                       UMA DOENÇA MUITA ESQUISITA 

Eu gostava muito daquele professor da língua enrolada. Nunca soube se era boliviano, peruano, colombiano ou italiano. Não ousava perguntar. O nome não terminava com “i” mas este aparecia no meio dele e soava como se fosse um verdadeiro nome italiano. 


Fora em uma de suas aulas que ouvi pela primeira vez o nome esquisito daquela doença também muito esquisita. Tratava-se de um quadro clínico endocrinológico onde, as pessoas acometidas por tal doença, iam emagrecendo, perdendo o apetite, apresentando cansaço fácil, desânimo, rarefação e queda dos pelos dos caracteres sexuais.
A pele, muito branca, parecia rejuvenescida. Eram estes os sinais e sintomas.

 A tal doença tinha um nome estrangeiro e era causada por uma alteração na função da glândula hipofisária. Acometia apenas mulheres uma vez que se dava devido a vários partos consecutivos onde havia perdas sanguíneas

Terminada a aula procurei aquele médico professor e disse-lhe que conhecia uma pessoa com tais sinais e sintomas. 

Ele riu; me olhou surpreso e, na sua calma clínica, me disse tratar-se de uma doença muito rara, mas aceitou atender meu pedido  e orientou que eu levasse tal pessoa de minha suspeita na semana seguinte.

Então lá fui eu buscar minha tia na sua tão longínqua fazendinha.

E aqui começa minha viagem de busca-ativa.

Minha tia Zezé vivia numa região rural da Zona da Mata Mineira, distante mais de uma légua da cidade. Eu conhecia aquelas estradas de olhos fechados. Sabia das árvores e das plantações em cada trecho. Quase sempre íamos a pé a casa dela. Meus irmãos, primos e muitos amigos. Era sempre uma festa aquelas caminhadas. Em todas as férias lá estávamos nós e nossas vias sacras pelas casas de nossos tios e primos.

Melhor que tudo isto eram as acolhidas e as merendas. Ríamos por quaisquer bobagens. Havia bolos de fubá, brevidade de rapadura, biscoito de polvilho frito e assado, queijos frescos e um café também de rapadura que cheirava longe.

Admirava minha tia por sua doçura e força de trabalho. Parecia também feita de rapadura. Além de cuidar de seus oito filhos, ela era a única professora da única escola rural das redondezas. Fazia quitandas a mais para levar de merenda para seus alunos e dizia que criança com fome não aprenderia as lições. 


A escola tinha apenas uma sala de aula e ali havia alunos a serem alfabetizados, alunos da segunda, terceira e quarta séries, estes  com direito a diploma e festa de formatura.

Minha tia não se esquecia de nada. Era pequena, muito magra, clarinha, dos olhos azuis, do sorriso largo e do coração maior ainda. O casal não conseguiu acumular riquezas da fazenda. Suas riquezas eram bem outras. Eu era amiga da filha mais velha que igualava comigo na idade e nos jeitos. Mas amava todos eles.

O tempo passou. Alguns anos depois soube que minha tia estava muito doente. A preocupação era geral. Os médicos não descobriam a causa da anemia e da fraqueza e ela definhava ano após ano. Por fim a família resignou-se em vê-la sempre de cama, desanimada e sem forças para a lida do dia. A doença trouxe-lhe um amarelão na pele e tomou-lhe a vida.

Então, mais tarde, enquanto estudante de medicina resolvi refazer aqueles caminhos para ver minha tia. E lá estava ela, muito doente. Não lhe faltou um sorriso a me abençoar. Percebi, já com meu olhar clínico, que ela perdera os pelos da axila, das pernas, os cabelos ralearam e soube que as regras haviam desaparecido. Voltei entristecida para a faculdade.

Mas, eis que naquela aula, a doença da minha Tia aparece com um nome muito chique, Sheeran.  


Telefono para meus primos e lá vou eu busca-la. Chegar até lá não fora tão difícil. Mas nem meu tio e nem eu tínhamos dinheiro para trazê-la. Haviam gastado tudo que não tinham e as esperanças eram poucas para o caso dela. 

Meu tio conseguiu dois cavalos e, então, faço minha primeira viagem no lombo de um burro. Eu haveria de ajudar minha tia. Na cidadezinha próxima, Cipotânea, conseguimos um ônibus até Barbacena e de lá até Juiz de Fora.


Eles foram acomodados por mim e minhas colegas de república com o mesmo carinho que  eu sempre fora recebida por eles.

O professor da língua enrolada não precisou nem de cinco minutos para fazer o diagnóstico de tão rara doença cujos exames bioquímicos complementares vieram apenas para confirmar minha suspeita. 


Aquele Doutor famoso internou minha Tia no Hospital Universitário e lá cuidou dela com competência e esmero durante muito tempo.

Hoje, ainda retumba em mim o eco daquilo que meus mestres sempre ensinavam, ou seja, “a clínica é soberana”.

E, ainda hoje, o sabor da brevidade de rapadura tá guardado na minha boca.

E eu nunca mais viajei montada no lombo de um burro.


28/05/2014