UM HOMEM, UMA BATINA E MUITOS BOTÕES
Acabo de saber da morte do meu Tio. Meu carro está cheio de sacolas com
roupas, livros, agendas, pães e algumas flores para comemorar a chegada da
primavera e enfeitar minha casinha na roça. Meus três filhos estão em
compromissos distintos e em cidades distintas. Acesso minha rede social e vejo
o anunciado nesse tempo real.
E agora ?
Decido embrenhar as duas viagens: seguir
até o sítio e cumprir tudo que eu havia planejado. Depois seguir para a
cidadezinha onde meu Tio fora pároco por mais de meio século. Lá vou eu sozinha
pelas estradas nas serras de Minas.
Mas o inesperado chega sem pedir licença e molha
meu rosto das lágrimas acumuladas ao longo do tempo. E é no tempo que viajo
agora.
Vejo um homem doce, esperto, amável,
acolhendo e recolhendo famílias em sua casa. Artioso nas brincadeiras. Nunca
lhe faltando sobrinhos seguidores, aliados para suas travessuras.
O jipe era seu companheiro. Com ele
fez grandes viagens. Aprendera a tocá-lo por insistência e desafios próprios.
Nesse mesmo aparelho de locomoção vários sobrinhos se tornaram grandes motoristas.
Aprenderam a dirigir, obviamente com o tanto que meu tio errava. Dizem alguns
que, naquela época, o órgão responsável pelo trânsito na cidade grande, liberava
sua carteira considerando a utilidade de tal documento para aquele padre das trilhas
de terra.
Meu Tio era de poucas palavras e de
muitas extravagâncias.
Lá em casa, todos nós esperávamos as
férias com a certeza de que ele viria nos buscar para o convívio com os de lá.
Não sei quem aproveitava mais aqueles dias, se nós ou ele a brincar conosco.
Lembro-me da correria em volta da pequenina mesa
nas noites escuras na fazenda onde ele nascera. Sorrateiramente, ele apagava
a única lamparina e se deliciava com aquele que fatalmente cairia nas
escadas daquela imensa sala de minha infância.
Mas o que mais me intrigava eram os
botões da batina do meu Tio quando ele virava Padre. Todos do mesmo tamanho e
rigorosamente pregados com os mesmos espaços entre eles. Achava aquilo uma
verdadeira obra de arte e beleza. E com arte também era feita a transformação
do meu Tio em Padre.
Assistia minha avó, com seus olhos brilhando de orgulho
diante daquele filho tão querido e especial, atender aos fiéis e seus pedidos
de orações, de um café com quitandas ou de, simplesmente, a benção do Padre.
Ele recebia a todos em sua casa, com conselhos,
paciência, dignidade e, às vezes, com pulso forte por alguma ovelha desgarrada.
Eu achava tudo àquilo de muita honradez.
A missa ainda preservava muitas orações em
latim e pensava no tanto que meu tio era inteligente e culto naquela língua tão "dificium".
Entretanto o que eu mais gostava era quando
aquele Padre, que era meu Tio, começava a cantar durante a missa. Era um sinal.
Logo ecoava o som do harmônio da Julieta, as vozes graves do Tio Mário, do Maurício,
irmãos de sangue e de musica. Tinha também a belíssima voz da Maria Francisca,
filha da Didita. E todos os fiéis se rendiam àquele magnífico som e se arriscavam
fazer parte naquele coral sacro.
Ainda posso ouvi-los cantar.
Nos finais de semana, toda a praça
ficava cheia de pessoas para assistir as missas, ouvir as pregações e os avisos.
Passeavam pelos jardins e faziam as visitas aos compadres e comadres.
Lembro-me da missa das 11 horas, aos
domingos. Ficava da janela da casa paroquial. Meu Tio sabia das coisas. Naquela
hora os moradores das regiões rurais já haviam cumprido seus deveres com a
ordenha do gado e outros trabalhos diários de seus sítios e fazendas. Assim
poderiam vir participar da cerimônia, ouvir os recados e serem abençoados.
Este era meu Tio Padre.
Porém se meu Tio era amado pelos
sobrinhos, o Padre não agradou a todos, certamente.
Afinal ele era só um homem. Mas sempre teve teimosia e dignidade para assumir as
consequências de suas escolhas.
Padrinho de muitos, Tio meu e de
tantos outros, Padre Joãozinho para quase todos. João Batista, filho de D Nhá,
irmão de minha mãe, grande amigo de meu pai. Como pode um só homem ser
responsável por tantas almas? Uma responsabilidade de gigante.
Ele também foi
responsável pelo percurso meu e por meu gosto pelo néctar dos deuses. Pois me lembro
de quando roubávamos o vinho doce da adega de sua casa, lugar frio e escuro
para onde éramos levados nos castigos de crianças. Também me lembro da sua
irritação, anos mais tarde, quando me viu com um livro de Freud nas mãos.
Fiquei me perguntando o que ele deveria saber do Pai da Psicanálise.
Meu Tio Padre foi um homem
espetacular.
Agora no céu já não falta o iniciador
das músicas, a cantoria já pode começar.
Aqui na terra ficamos órfãos, mas
abrilhantados pela convivência.
Ficamos sem meu Tio e sem nosso Padre,
mas ficamos todos com nossos botões...
Viajei.. Peguei a estrada..... Me senti livre e contei botões... Lindo relato... lindo conto... Antonia
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