REX E SULTÃO
Defronte a minha casa havia a casa mais bonita da rua. Assim era para mim. E talvez para meus sonhos infantis. Era a única casa afastada da rua. Todas as outras, inclusive a de meus pais, eram pareadas e as janelas davam diretamente aos passantes.
Esta casa era toda diferente. Havia uma pequenina varanda dando acesso ao seu interior no lado direito e uma linda e moderna janela de vidro no lado esquerdo. Um jardim sempre muito florido a deixava ainda mais encantadora. Parecia que havia saído dos contos de fadas.
O proprietário era o morador do lado de cima. Pai de alguns dos meus amigos e amigas. Ele era metalúrgico e trabalhava no Morro da Mina na extração de manganês. Era alto, muito negro, tinha um caminhão basculante e um sorriso muito branco. Eu gostava muito de toda a sua família. Mas ele tinha um cachorro de cor marrom avermelhada, sem raça definida, que vivia preso e que causava medo em todos nós. O nome dele era Rex embora não tivesse uma coroa de rei. Tinha sim uma corrente que o mantinha sob controle.
Do lado de baixo da minha casinha de sonhos morava um casal de velhos. Não tão velhos assim. Ele já aposentado. Nunca soube no que ele trabalhava. Era de estatura mediana, moreno e vivia arrastando um chinelo de couro. Ela era da cor do chocolate e seus cabelos eram compridos, lisos, negros e viviam amarrados num coque que se prendia por si mesmo.
O casal tinha vários filhos e netos que viviam por ali. Um dos filhos morava com ele, era o Tião Bento que também tinha um cachorro grande, da cor acinzentada, sem raça definida e que vivia solto dentro de um pequeno espaço que o separava daquela casa da minha infância e da nossa rua.
Sultão vivia quieto e solitário. Não incomodava os passantes nem causava medo. Parecia habitar apenas o mundo dos cachorros.
E os dois viviam em paz nos seus territórios. Talvez porque não houvesse fêmeas para a disputa. Ou porque não atinavam para seus nomes tão nobres. Eram apenas dois vira-latas.
Hoje, Rex me faz lembrar Henrique VIII, um Rei britânico astuto, inteligente, impiedoso e que fora capturado pela beleza de Ana Bolena de quem se tornou amante e marido e a quem, depois de mil dias, mandou decapitar acusada de traição.
E sultão me faz lembrar Tipu, o grande Tigre de Mysore, ou Tipu Sahib como era chamado pelos ingleses. Adorava conviver com seus seis tigres domesticados. Foi o governante indiano que resistira à conquista do sul da Índia e que fora assassinado pelas tropas inglesas em 1799.
Henrique VIII e Tipu foram grandes guerreiros e estrategistas militares guardadas as devidas distâncias entre os territórios e as devidas distâncias entre os tempos.
Mas para meus vizinhos cães não havia distancia geográfica nem cronológica. Estavam separados apenas pela minha bela casinha com jardim na frente e pela corrente no pescoço do Rei mineiro.
Entretanto como nada são flores nas vidas de cachorros, de vez em quando Rex soltava de sua corrente e investia contra o solitário Sultão. Os urros se faziam ouvir por todos os lados. Eles se odiavam e mostravam este sentimento em furiosos ataques.
Seria um espetáculo da idade média inglesa ou da era da Companhia das Índias Orientais não fosse a tristeza estampada no olhar de cada um deles. Pareciam chorar e seus lamentos ecoavam ao longo daquela rua.
Só havia uma pessoa que conseguia separa-los. O pai dos meus amigos e dono daquela casinha. Ele chegava muito calmo e fazia um laço com uma corda numa mão e a corrente na outra. Gritava para seu cão Rei. Chegava bem perto da luta e, como um mediador, os separava. Sultão era conduzido para seu lugar por algum familiar da sua casa ou por seu dono. Rex voltava para suas correntes. Até um próximo combate.
Eu não gostava de ver nem de ouvir seus gritos de guerra e dor.
Hoje quando lembro daqueles raivosos cães penso como cada um vivia no seu território e na sua solidão, presos em pequenos espaços, sem quaisquer contatos com outros animais de suas espécies.
Ambos com nomes de soberanos: Rex e Sultão. Portanto não seria possível um encontro entre eles que não fosse uma disputa pela posse daquele território e pelo poder total.
Penso que eles lutavam bravamente pela disputa daquela casinha tão linda que os separava. Talvez pudessem se tornar grandes aliados.
Conselheiro Lafaiete, março de 2015
Foto: casa de Lavras Novas, distrito de Ouro Preto, M.G.
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