quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Crônica: Cananeia II - Ilha do Cardoso

 



Acompanhei cada passinho do viajante mais novo assim que os pais o colocaram na areia molhada junto ao mar. Foi uma verdadeira epifania.

O menino correu em direção ao mar como se fosse uma tartaruguinha recém saída da casca do ovo no local onde a sábia mãe tartaruga o colocou. Gabriel ia de encontro às águas e voltava com a maré lhe tocando os pezinhos. Seus movimentos eram suaves, divertidos e ousados para seu pequeno tamanho. E eu, como uma tia avó babona, aproveitei aquela cena com um olhar misto de atenção e curiosidade. E por ali ficou todo entregue às pequeninas ondas que lhe beijavam os pés. Não negou sua ascendência do elemento água. O irmão mais velho, também com nome de anjo, o acompanhava em todas as descobertas que iam sendo feitas e pronto para quaisquer eventualidades. E, com certeza, todos nós ali desfrutamos das cenas do mais novo peixinho do mar.

Outra cena também capturou meu olhar. Se desta vez a protagonista não era nenhuma criança, a alegria era de uma menina feliz. Tratava-se da minha cunhada. Uma bela e elegante mulher. Aniversariante daquele dia. Dalú estava iluminada em seus trajes de praia. Seu rosto demonstrava esconder alguma travessura adolescente. Dito e feito. Pediu ao simpático garçom uma bebida à base de gim. Logo veio uma enorme taça decorada com rodelas de laranja e gelo. O conteúdo ficava ainda mais sofisticado com a bebida gasosa produzindo minúsculas borbulhas no vidro da taça. Eu olhava a bebida que nunca acabava. Não acabaria. Minha cunhada havia levado a garrafa de gim que ficara bem acondicionada dentro do carro e, a cada hora, um filho seu ou minha filha ia até o estacionamento e voltava trazendo a tal bebida de zimbro numa latinha de refrigerante. Aquela fora sua festa pessoal. Eram gargalhadas contagiantes. Conversas jogadas fora e nossa aniversariante se esbaldava na sua traquinice. A festa continuou até a noite com direito a jantar regado a variedade de peixes, vinho e bolo com “Parabéns pra você”. E, no dia seguinte, seria a vez de outro aniversariante. Samuel, o outro sobrinho-neto, estaria fazendo oito anos. Muita festa para tão poucos dias naquele paraíso ecológico.


Meu irmão já havia planejado nossos passeios. Um deles seria a travessia por lanchas no canal marítimo entre a ilha de Cananeia e a Ilha do Cardoso. Havia me informado que esta última tem seu mapa lembrando o mapa do Brasil. Mais tarde ganharia um panfleto onde pude constatar a semelhança. Ali está localizado o Núcleo Perequê e toda área marítima é chamada de Santuário dos golfinhos. Vimos muitos deles saltitando bem perto de nós. Segundo explicações científicas ali teria alimentos fáceis para os filhotes e eles estariam protegidos dos grandes predadores. Toda a área faz parte de reservas ecológicas da Mata Atlântica e o guia, que nos fez lembrar indígenas, mostrava-se muito orgulhoso de nos apresentar seus espaços preservados, seus projetos e estudos do boto-cinza como são chamados os golfinhos. Ouvi dele e de outros guias que aquela imensidão de canais de água salgada constitui a maior área “marítima abrigada” preservada de todo mundo. Só no depois é que iria entender tratar-se de águas marítimas protegidas por ilhas, não a mar aberto. A importância de tal nomenclatura também está nas embarcações o que, até então, não havia entendido.

Pois bem, apesar do sol e do intenso calor não declinei do desejo de fazer a trilha do Manguezal e Mirantes, tudo bem cuidado e protegido. No meio das restingas de areias brancas escaldantes deparamos com um engenhoso sistema de captação de energia solar. O guia nos informou então que, o “Programa Luz para Todos” do governo federal conseguiu levar energia para todos os moradores da ilha trazendo conforto e possibilitando guardar os pescados para serem vendidos na cidade de Cananeia. E mais adiante fomos surpreendidos com uma moderníssima instalação para duzentos pesquisadores e estudantes das universidades federais do Brasil. Moradias, refeitórios, centros de pesquisas, museu arqueológico e um pequeno anfiteatro. Sempre nestes momentos meu coração bate mais acelerado. Ver tudo aquilo numa ilha quase deserta. O cuidado com o meio ambiente. Pesquisadores. Tudo ao lado de poucos moradores, incluindo comunidades caiçaras, vivendo harmoniosamente com o meio ambiente em extrativismo sustentável. Caminhamos por uma passarela cuidadosamente feita de madeira por sobre o manguezal onde os caranguejos ficavam chafurdando na mistura cinza escuro de água e material orgânico. Paramos para vê-los soltando borbulhas e caminhando na peculiar lentidão. Observei que, apesar de eles saírem daquela lama, saem limpos e brilhantes. Alguns com vermelhos vibrantes. Mais uma pequena caminhada na trilha e sentimos o frescor da Mata Atlântica. Entramos para ver o museu de antropologia, com esqueletos de golfinhos, outros peixes e tartarugas marinhas, utensílios usados pelos povos que ali viveram há cinco mil anos- os sambaquis - e a história da formação daquele parque estadual.

Além dos muitos quilômetros de praias desertas há por ali rios e cachoeiras. Infelizmente não consegui chegar até a voz do riacho de águas escuras cristalinas. O cansaço e o calor me fizeram dar meia volta para o quiosque onde se encontrava a turma restante. Minha filha sempre ao meu lado a me amparar caso fosse necessário. Entrei no mar de águas mornas protegidas das marés com blusas UV, viseira e muito filtro solar. Ali não havia como furar ondas mergulhando sob elas. No dia anterior eu já havia furando muitas delas. Como nosso pequeno anjo Gabriel também sou do elemento água. Acho que já nasci nadando.

E chegou a hora de voltarmos para nossa pousada na ilha de Cananeia. Pegamos as lanchas previamente contratadas – tudo organizado de acordo com os protocolos da marinha e dos regulamentos do parque da ilha do Cardoso. O número de turistas é limitado como mais uma forma de proteger todo o parque ecológico. Foi aqui que fiquei atenta para não perder nem uma palavra do piloto. José aproximou de uma ponta de praia e nos pediu que olhássemos à direita. “Ali é a ponta mais sul da ilha Comprida” e nos ensinou como chegar, por terra, até ali. "Depois que atravessar a balsa vire a segunda rua a esquerda, vocês vão encontrar um restaurante. Peguem uma trilha e vão deparar nessa praia". 

Guardei a explicação. Gostaria muito de fazer tal caminhada e explorar mais uma praia deserta. Outra hora nosso piloto-guia parou a lancha suavemente para assistirmos ao espetáculo dos golfinhos saltitantes. 

Virou e nos apontou a extrema esquerda, na ilha de Cananeia. “Ali naquela casa velha foi construída a primeira fundição de ferro do Brasil. Hoje é um museu”. E muito entusiasmado continuou: “Minha mãe foi a única parteira de Cananeia por muitos anos. Ela está viva com 104 anos.” “Agora olhem ali aquela casa de dois andares no meio da mata, logo adiante da fundição. Aquela casa tem o mesmo tanto de altura para baixo. Ali tem um túnel de quatrocentos metros até a baia. Era a casa do Martim Afonso de Souza que conheceu a índia ‘Caen’ e se apaixonou por ela ficando por aquelas terras onde passou a chama-la de Cananeia em homenagem à sua amada.” E nosso piloto continuava suas explicações sobre possíveis ataques de piratas quando, através de túneis e mirantes de observação eram dadas mensagens para a defesa da ilha de Cananeia. (*). Verdades ou mitos não interessa. O importante foi a simpatia do nosso piloto.

Entretanto não me lembrava de ter escutado a história do padroeiro da cidade, São João Batista, também contada por José. Mas no dia seguinte, querendo conhecer o centro histórico da cidade bem defronte à igreja, minha cunhada me repetiu a lenda de que São João Batista, pela manhã aparecia no altar com "os pezinhos" sujos de areia. Teria ido proteger os pescadores durante a noite.





                                                     
                                                   Noite de lua cheia no canal que liga as ilhas de Cananeia e Comprida



Estrela do mar de cinco pontas. Planta rasteira na restinga.



A bebida servida no Juras Quiosque - Ilha Comprida








Por do sol fotografada na pousada Costa Azul- Cananeia



Esqueleto de um golfinho no centro de estudos do Núcleo Pequerê

                                                 
                                                         Dalu, aniversariante do dia

                       
           Lua cheia fotografada da balsa durante uma das travessias.


Fotografias: Grupo de WhatsApp dos viajantes

 
(*)Fundada em 12 de agosto de 1531 por Martim Afonso de Souza, Cananeia é a primeira cidade do Brasil. A história desse município por onde passava a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas que dividia o mundo entre Portugal e Espanha, é recheada de muitas lendas de piratas, tesouros enterrados e batalhas.

(https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/visite-cananeia-a-primeira-cidade-brasileira/#:~:text=Fundada%20em%2012%20de%20agosto,piratas%2C%20tesouros%20enterrado)



segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Crônica: Cananeia - "Uma cidade Ilustre"

 


  












Depois de mais de um ano e meio sem viajar, em isolamento imposto pela Pandemia, decido aceitar o convite de um irmão. 

José Eugênio ou apenas Zeugênio, como o chamamos, mora com sua grande família em Itapetininga, uma das maiores cidades do interior de São Paulo, em extensão territorial. Sempre tivemos grande afinidade e somos grandes amigos para além da irmandade. É o irmão que nasceu cinco anos depois de mim e, neste final de ano, ele me lembrou de nossas formaturas há quarenta anos. Eu na UFJF e ele na Escola Técnica Diaulas Abreu, hoje Escola Agrotécnica Federal de Barbacena. Naqueles tempos, mesmo morando próximos, nos comunicávamos por cartas e, nós dois, nos escrevíamos muito. Numa dessas cartas ele me perguntava o que eu estudava na disciplina de Puericultura. E ele mesmo respondia “uai, você está estudando a cultura da poeira?” Podia vê-lo sorrindo na brincadeira por trás do papel.

Zeugênio, apesar de morar tão longe de nós, está presente em minha vida e nas vidas dos mais de setenta familiares descendentes dos nossos pais. Recebe carinhosamente a todos nós em sua casa e está sempre nos convidando a retornar. Atualmente tenho ido mais a miúde a Itapetininga mesmo porque meu irmão e minha cunhada acolheram em sua casa minha filha mais nova que está trabalhando com um dos seus filhos.

Meu irmão sempre me fala de suas viagens a Cananeia, uma ilha no sul do estado de São Paulo, com praias e braços do mar. E, em uma de minhas leituras de livros indicados nas escolas dos meus filhos, encantei-me com a tal Cananeia. Hoje, para ser mais fiel às minhas leituras, procurei o livro junto aos demais e não o encontrei. Mais um livro perdido entre aqueles encaixotados da última mudança. Entretanto jamais esqueci dos autores brincando com as histórias do descobrimento do Brasil conforme podemos constatar na apresentação de venda do livro “Terra Papagali”:

"Décimo mandamento para bem-viver na Terra dos Papagaios: ‘naquela terra de fomes tantas e lei tão pouca, quem não come é comido’. A sábia conclusão é de Cosme Fernandes, o Bacharel da Cananéia, um dos "degredados" que aqui chegaram nos primeiros anos do descobrimento, cuja vida é recriada com saboroso humor nessa paródia, escrita por José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Cosme Fernandes tem muito o que contar sobre suas experiências em terras brasileiras. Ele logo aprendeu que nesta terra é preciso dar presentes sem parcimônia, fazer alarde de qualquer dificuldade, pois aqui vale mais o colorido do frasco que o próprio remédio, que na terra de Santa Cruz não há quem não troque honradez por honraria." 

Em um dos capítulos do referido livro, os autores contam a história da pequena Cananeia, povoada no ano de 1531. Uma da primeiras cidades do Brasil. Lembro que foi muito hilariante a paródia de tal encontro com Cananeia.

Pois bem, aceitei o convite e fui para São Paulo com minha filha, presa em Mário Campos devido às inundações. Voltaria de carona com minha sobrinha com a família e minha irmã. Tudo decidido em última hora, o que acarretou pequenos transtornos. Mas nada que não pudesse ser resolvido.

Desta vez não brinquei com a lua cheia no esconde-esconde de correrias junto ao ônibus na madrugada da ida. Dormi confortavelmente numa poltrona-leito.

Em Sorocaba já estava meu irmão com sua delicadeza para nos levar até sua casa em Itapetininga. Cunhada e sobrinhos vieram no final da tarde. E foi uma noite de muita alegria e muitas preocupações com a tal variante “Ômicron” já espalhada pelo mundo afora.

Os jovens, a grande maioria dos dezoitos viajantes, sentados em torno de uma mesa, aceitaram jogar o divertido jogo “Perfil”. Muitas risadas com o japonês residente na Bolívia e suas incursões pelo português. Ele também faria parte da viagem uma vez que estava na casa da prima japonesa, esposa de um dos meus sobrinhos. Não foi com mérito que venci a disputa. Sendo a mais velha dos jogadores, obviamente, com maior acúmulo de conhecimentos e vivências.

Zeugênio, sabedor do meu amor por mapas, cidades e histórias, me mostrou no "terrível" Google Maps toda a região para onde estaríamos indo. 

-"Olha, estamos indo para a ilha de Cananeia, mas teremos que atravessar um braço de mar até a ilha Comprida onde, na ponta sul, encontraremos o mar aberto numa praia quase deserta. Do outro lado, ao sul tem a Ilha do Cardoso, cujo território nos lembra o mapa do Brasil." 

Entendi tudo, mas não consegui abstrair nada. Seria preciso estar lá para sentir todas aquelas informações.

Na manhã de domingo lá fomos nós em direção ao sul do estado de São Paulo. A decepção foi geral quando, em São Miguel Arcanjo, local onde se daria nosso café da manhã com o alardeado “bolinho de frango” estava fechado. Seguimos com nosso desjejum.

E logo entramos no Parque Estadual Carlos Botelho (PECB) “uma área protegida brasileira na região sudeste do estado de São Paulo, que abrange partes dos municípios de Capão Bonito, São Miguel Arcanjo e Sete Barras.

O parque situa-se na Serra da Macaca, ocupando uma área de 37 mil ha, com um relevo acidentado que vai de 50 a 975 m de altitude”
(Wikipédia).

Com folhetos explicativos fomos recebidos na portaria da reserva e iniciamos a travessia de trinta e quatro quilômetros por entre a maior e mais bem protegida reserva da Mata Atlântica

Um espetáculo de beleza, preservação e proteção ao meio ambiente. Clima ameno, água descendo nas encostas e logo encontrando um riacho de águas cristalinas com seu chiado por entre as pedras. No alto da serra um telescópio para os mais curiosos.

E meu irmão dando suas explicações como um guia atencioso e com grandes conhecimentos da região.

Seguimos adiante. Um pequeno comboio de três carros. Lá encontraríamos mais familiares noutro pequeno comboio de dois carros vindos de Belo Horizonte. Um grupo familiar cujas idades variavam de três a setenta anos. Mas, devo confessar, éramos todas crianças inquietas, felizes e barulhentas.

Chegamos em tempo do almoço na charmosa pousada beirando o braço do mar na histórica Cananeia. Peixes nos pratos de todos nós. Muita salada e cerveja para os amantes da bebida. Eu experimentei uma caipiríssima de uvas.

Afoitos pelo mergulho no mar, logo após a chegada dos parentes, nos dirigimos à balsa e atravessamos um braço de mar até a ilha Comprida que, segundo meu irmão, tem setenta quilômetros de extensão por três quilômetros de largura. Com o sol escaldante preferi a sombra de um restaurante bem rústico. A sensação era de que eu ainda estava em Minas das chuvas Gerais. Para minha vergonha e silêncio dos demais, pedi café com leite e pão com requeijão na chapa na beira da praia. Só no dia seguinte foi que eu me dei conta do meu ridículo. Mas devo dizer que estava delicioso meu café da manhã às cinco horas da tarde numa praia maravilhosa e ao lado de excelentes companhias.

Amanhã contarei mais histórias das nossas viagens por Cananeia.



Fotografias: do grupo "Cananeia" do whatsap

(link de um mapa da região)


domingo, 9 de janeiro de 2022

Águas do céu

Há mais de 72 horas as chuvas caem sobre nossas regiões. Ora caem mais suavemente. Ora castigam os solos. 

As nascentes nas regiões mais altas, em Cristiano Otoni, Conselheiro Lafaiete e Congonhas descem engrossando seu leito com os pequenos riachos afluentes nas cidades de Jeceaba, Belo Vale e Brumadinho. - Neste momento o centro de Brumadinho já está todo tomado por águas.-

Nosso tão degradado Rio Paraopeba, mais uma vez, causando medo, horrores e desastres. A população ribeirinha correndo todos os riscos da implacável fúria das enchentes. O volume de água barrenta, suja e veloz, impiedosamente, sai arrastando tudo que obstruir sua passagem.

Mais uma vez, da minha casa em Mário Campos, assisto aterrorizada as fotos e vídeos, do que está acontecendo ao redor. Filho e amigos enviam mensagens querendo notícias. A sensação do "dejá vu" acelera os batimentos do peito. 

Há exatos três anos estava aqui esperando familiares e amigos para um almoço na manhã do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, da Vale. Foram momentos de desespero. Ficamos todos ilhados na região. Hoje vivemos tudo outra vez. Desta vez as chuvas sem trégua. As perguntas sem respostas. As inúmeras barragens das mineradoras aguentarão o volume crescente das águas? Os trabalhadores das mineradoras estão protegidos? Há segurança para todos os moradores nos entornos? O que as mineradoras e os governantes estão fazendo para minimizar os prováveis desastres? Esta e tantas outras perguntas estão dentro de cada um de nós. 

E o Rio Paraopeba desce arrastando tudo pela frente. Já transbordando na tão sofrida Colônia Santa Isabel, em Betim e logo chegará noutras cidades até desaguar na represa de Três Marias em Felixlândia.

Junte-se a todo esse drama a tragédia na cidade de Capitólio. O desabamento de um paredão sobre lanchas com turistas mata oito pessoas, deixa vários feridos e a tristeza para sempre. 

Dentro de mim há um coração acelerado. 


Manhã de domingo, dia 9 de janeiro de 2022

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Depois do acontecido / A arte do desencontro

 


Este ano não foi como ela esperava.

Quando os filhos ainda eram menores, há muitos anos, o Natal era preparado bem antes do dia. Havia a novena de natal quando vizinhos e familiares rezavam e cantavam nas nove casas já previamente selecionadas. Na noite do nascimento do menino Jesus, as crianças farreavam até tarde esperando o Papai Noel . Os adultos enfeitavam a enorme mesa com as guloseimas e as cores verde e vermelha. O pernil, bem temperado de véspera e bem tostado, cheirava à distância. Os pavês e pudim de ricota aguardavam na geladeira. Na manhã seguinte havia a repetição das farras com os presentes deixados sob a árvore colorida e iluminada. E a festa continuava até o dia seguinte. Às vezes até o ano novo.

Neste ano a tradição não se fez presente. Todos os desencontros foram escancarados. Sem novenas de natal. Na casa de Tereza, poucos amigos apareceram. Só os filhos e netos. Trouxeram champanhe. Pães refinados. Pestos saborosos e os deliciosos vinhos tintos secos já estavam na adega improvisada.

O ano novo vem prometendo muitas mudanças dentro e fora de cada um.

Neste ano vindouro brotam-se as esperanças de um  Brasil a ser reconstruído. O país vem despencando em todas as áreas de políticas públicas sociais e econômicas. O Brasil vendendo suas riquezas naturais, empobrecendo culturalmente e se perdendo nas trevas. A pandemia parecendo longe de acabar. Novas variantes do Coronavírus apresentam o alfabeto grego e ameaçam novos surtos e mortes. O presidente eleito democraticamente vem negando vacinação às crianças e ameaçando de morte os cientistas e técnicos que se opõem aos seus desejos necrofílicos.

Entretanto, fotos, vídeos e mensagens de boas festas não deixaram de lotar as redes sociais neste final de ano. Muitas festas, brindes e comemorações estão estampados nas telas dos monitores por todo o mundo. 

No Brasil houve uma trégua também nas imagens de desolação causadas pelas chuvas no norte de Minas e Bahia.

Estes tempos tem mostrado também uma Tereza indiferente aos apelos natalinos e às boas vindas ao ano novo. Ela não tem conseguido compartilhar alegrias ou tristezas. Mantém-se isolada no meio dos seus. O que teria acontecido consigo? Ela que, apesar de suas grandes dificuldades com as relações interpessoais, sempre gostava dos encontros familiares. Ficava ouvindo as conversas, prestava atenção nas gargalhadas das irmãs, nos assuntos despretensiosos, nos olhares afetuosos dos sobrinhos e nas satisfações dos pais pela família numerosa construída.

Neste ano não foi tão diferente de alguns anos atrás. Sua pequena família viera ficar com ela no sítio. Ela não deixou de preparar o lombo e o pernil de panela, obviamente bem tostados. Nem esqueceu dos deliciosos pães e dos vinhos, sua bebida favorita. Mas, agora, Tereza era outra. Parecia um autômato cumprindo as atividades devidas para o encontro de natal. Em várias ocasiões via-se seu olhar atravessando paredes. Olhando o nada. Assim também atravessou os dias e as noites com os filhos e netos.

No segundo dia do ano, quando todos já haviam ido embora, Tereza não quis levantar. Deitou na noite anterior lutando contra o sono, já na madrugada. Parecia desinteressada pelo mundo em volta. Nem os belos vestidos e os colares coloridos compuseram seu corpo nas festas. Nada lhe chamava a atenção. O livro começado continuava fechado sobre a mesa. Os trabalhos propostos continuavam por fazer. Não quis ler as mensagens que os amigos haviam enviado. Assim mesmo preparou seu café forte. Assou pão com queijo. E, enquanto fazia seu pequeno desjejum olhava para fora de sua casa. As grandes portas de vidro mantinham-na em contato direto com o exterior. Viu o chão salpicado das mangas caídas durante a noite. Não eram as deliciosas mangas-ubá. Estas eram linhentas e sempre cheias de bicho.

Viu o tanto que seu sítio estava em desleixo. Ficou parada pensando no que fazer. Foi então que, neste momento, travestiu-se de ânimo. Precisava cuidar de sua propriedade. Desbastar o mato, cortar galhos crescidos demais, cuidar melhor dos cachorros e resolver questões do carro da filha que estava viajando. Traçou metas, rascunhou o projeto de um canil, fez um layout de seu terreno. A seguir vestiu uma roupa menos inadequada e saiu de casa no carro da filha. Era urgente calibrar os pneus. Um deles parecia bem esvaziado. Logo pensou em dar uma volta pelas montanhas e regiões da cidade. Talvez almoçar no restaurante rural que tanto gosta. Queria ver gente. Mas, no meio do caminho, desistiu e voltou para casa. Passou no supermercado. Comprou mais café e pães. Nada lhe apetitava. Pensou no tanto que gostava de viajar e no tanto que tem estado desanimada.

Já passava de meio dia quando resolveu fazer seu almoço. Uma salada fria com macarrão ao óleo e alho. E ovos. Enquanto engolia seu almoço foi surpreendida pelo bichinho entre as árvores. Era a terceira vez que o solitário esquilo descia pelo pé de jatobá, chegava até a mangueira e bebericava a água dos cachorros. Uma arriscada aventura para saciar seu instinto. Tereza já havia pensado em colocar água num recipiente bem no alto das árvores, assim como viu no “Buraco da Araras” no Mato Grosso do Sul. Mas lembrou da bióloga contando que uma vez, dentro do cocho de água para as araras, foi encontrada uma jararaca - ou uma jiboia? Não lembrava mais. Considerou melhor deixar como está. O esquilinho que ficasse bem esperto.

Continuou sentada no mesmo lugar. Continuava perscrutando seu olhar pelo quintal e, mais uma vez, achou-o feio, barrento, sujo e deixado à mercê das ervas daninhas e do capim. Realmente viu que as árvores haviam crescido muito nesta primavera. Os ipezeiros quase entrando dentro de casa. A obra prioritária havia sido iniciada em novembro, mas as chuvas e a falta de mais um trabalhador impediram que continuasse. Tereza assustou com os valores gastos nela e pensou que, com tal dinheiro, poderia ter feito algumas viagens. Queria conhecer o Rio Grande do Norte. Embora soubesse que não suportaria o calor de Natal. Queria ir na Patagônia.  Tem preferido as regiões frias. Sempre amou as estações de outono e inverno.

“Está decidido. Vou limpar todo o terreno. Restaurar o atual canil. Tirar algumas árvores. Fazer algumas trilhas para facilitar os cuidados diários. Quero deixar o sol iluminar tudo.” Pensou ela.

Logo assustou com esse desejo tão repentino. Tão fora de hora. Pegou os cadernos “diário de obras” e “diário do sítio” e começou a enumerar o que gostaria de fazer. Não iria obedecer às prioridades que já haviam sido levantadas. Esboçou um sorriso pelo ato decidido de transgredir a si mesma. Seu riso foi estancado por um som oco vindo de cima do telhado. Logo pensou nas mangas caindo sobre as telhas e rolando para as calhas. “Vai entupir tudo!!!” Pensou ela lamuriando o trabalho pela frente. Até que ouviu uma pomba rolinha arrulhando por perto. Mais um pássaro preso nas vidraças altas da casa. Entram e não conseguem sair. Uma vez aconteceu entrar um jacu. Foram vinte e quatro horas tentando sair. Caiu durante a noite e conseguiu sair caminhar pela porta de entrada como um ilustre visitante. Outra vez foi um beija-flor. Caiu duro depois de várias batidas – ou beijos? nos vidros. Uma gota de água com mel foi suficiente para que tivesse sua força de volta. Bateu asas e voou.

Depois de conseguir salvar a rolinha que já estava na boca do Téo, Tereza olhou mais uma vez para fora de casa: “Sim, é preciso luz em volta da casa.” Sublime momento tomou conta de Tereza. Sentiu que, ao salvar o passarinho, mantendo-o acolhido em sua mão, salvou a si mesma. Era isso. Estava vivenciando o horror de estar desenlaçada no mundo. Sentia-se que estava solta. Sentia-se que lhe sobrara apenas um corpo a carregar. Só matéria orgânica. O espírito tinha ido embora. Estava desalmada. Não havia se dado conta que sua alma lhe fora arrancada no instante que soubera do acontecido. Toda sua fantasia imaginária fora descontruída com o recado dado. Foi como se tivessem lhe extraído o coração e a alma de uma só vez. As palavras haviam tornado verbo e a açoitaram.

Então era isso.
A distância tomada. O jeito grandioso de ser. A aparente benevolência. O isolamento. O homem cheio de mistérios. As doces e escandalosas palavras de amor jurado. A sempre desejada expectativa de mais uma vez. Os encontros às escondidas. As frias despedidas.

Quem era ele? Tereza havia idealizado e criado um amante para si? Havia adornado o homem de inúmeros predicados? Viveu por ele? Colocou-se à disposição dele? Há quantos anos vinha-se inspirando nele para suas escritas? 

Agora, com o recado dado, como se fosse um ato falho, desfez-se a criação. Ele não era aquele que imaginara. Certamente ela também não seria aquela que ele pensava ter contido nas suas mãos, à margem.

Agora estava tudo tão claro. E a claridade lhe ofuscava a razão. Deixava-lhe perplexa. Em suspensão. Era preciso recriar-se. Era urgente reinventar-se.

Não sabia como fazê-lo.

Sabia que queria o sol iluminando sua casa.

E sabia também que voltaria a ser a mulher desejante que sempre soubera ser. Era apenas uma questão de tempo.


03/01/2022

“Sempre que alguém tenta suprimir a dúvida, existe a tirania”

(Frase de um diálogo entre personagens escritores no filme “A Filha Perdida” - NETFLIX)