segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Depois do acontecido / A arte do desencontro

 


Este ano não foi como ela esperava.

Quando os filhos ainda eram menores, há muitos anos, o Natal era preparado bem antes do dia. Havia a novena de natal quando vizinhos e familiares rezavam e cantavam nas nove casas já previamente selecionadas. Na noite do nascimento do menino Jesus, as crianças farreavam até tarde esperando o Papai Noel . Os adultos enfeitavam a enorme mesa com as guloseimas e as cores verde e vermelha. O pernil, bem temperado de véspera e bem tostado, cheirava à distância. Os pavês e pudim de ricota aguardavam na geladeira. Na manhã seguinte havia a repetição das farras com os presentes deixados sob a árvore colorida e iluminada. E a festa continuava até o dia seguinte. Às vezes até o ano novo.

Neste ano a tradição não se fez presente. Todos os desencontros foram escancarados. Sem novenas de natal. Na casa de Tereza, poucos amigos apareceram. Só os filhos e netos. Trouxeram champanhe. Pães refinados. Pestos saborosos e os deliciosos vinhos tintos secos já estavam na adega improvisada.

O ano novo vem prometendo muitas mudanças dentro e fora de cada um.

Neste ano vindouro brotam-se as esperanças de um  Brasil a ser reconstruído. O país vem despencando em todas as áreas de políticas públicas sociais e econômicas. O Brasil vendendo suas riquezas naturais, empobrecendo culturalmente e se perdendo nas trevas. A pandemia parecendo longe de acabar. Novas variantes do Coronavírus apresentam o alfabeto grego e ameaçam novos surtos e mortes. O presidente eleito democraticamente vem negando vacinação às crianças e ameaçando de morte os cientistas e técnicos que se opõem aos seus desejos necrofílicos.

Entretanto, fotos, vídeos e mensagens de boas festas não deixaram de lotar as redes sociais neste final de ano. Muitas festas, brindes e comemorações estão estampados nas telas dos monitores por todo o mundo. 

No Brasil houve uma trégua também nas imagens de desolação causadas pelas chuvas no norte de Minas e Bahia.

Estes tempos tem mostrado também uma Tereza indiferente aos apelos natalinos e às boas vindas ao ano novo. Ela não tem conseguido compartilhar alegrias ou tristezas. Mantém-se isolada no meio dos seus. O que teria acontecido consigo? Ela que, apesar de suas grandes dificuldades com as relações interpessoais, sempre gostava dos encontros familiares. Ficava ouvindo as conversas, prestava atenção nas gargalhadas das irmãs, nos assuntos despretensiosos, nos olhares afetuosos dos sobrinhos e nas satisfações dos pais pela família numerosa construída.

Neste ano não foi tão diferente de alguns anos atrás. Sua pequena família viera ficar com ela no sítio. Ela não deixou de preparar o lombo e o pernil de panela, obviamente bem tostados. Nem esqueceu dos deliciosos pães e dos vinhos, sua bebida favorita. Mas, agora, Tereza era outra. Parecia um autômato cumprindo as atividades devidas para o encontro de natal. Em várias ocasiões via-se seu olhar atravessando paredes. Olhando o nada. Assim também atravessou os dias e as noites com os filhos e netos.

No segundo dia do ano, quando todos já haviam ido embora, Tereza não quis levantar. Deitou na noite anterior lutando contra o sono, já na madrugada. Parecia desinteressada pelo mundo em volta. Nem os belos vestidos e os colares coloridos compuseram seu corpo nas festas. Nada lhe chamava a atenção. O livro começado continuava fechado sobre a mesa. Os trabalhos propostos continuavam por fazer. Não quis ler as mensagens que os amigos haviam enviado. Assim mesmo preparou seu café forte. Assou pão com queijo. E, enquanto fazia seu pequeno desjejum olhava para fora de sua casa. As grandes portas de vidro mantinham-na em contato direto com o exterior. Viu o chão salpicado das mangas caídas durante a noite. Não eram as deliciosas mangas-ubá. Estas eram linhentas e sempre cheias de bicho.

Viu o tanto que seu sítio estava em desleixo. Ficou parada pensando no que fazer. Foi então que, neste momento, travestiu-se de ânimo. Precisava cuidar de sua propriedade. Desbastar o mato, cortar galhos crescidos demais, cuidar melhor dos cachorros e resolver questões do carro da filha que estava viajando. Traçou metas, rascunhou o projeto de um canil, fez um layout de seu terreno. A seguir vestiu uma roupa menos inadequada e saiu de casa no carro da filha. Era urgente calibrar os pneus. Um deles parecia bem esvaziado. Logo pensou em dar uma volta pelas montanhas e regiões da cidade. Talvez almoçar no restaurante rural que tanto gosta. Queria ver gente. Mas, no meio do caminho, desistiu e voltou para casa. Passou no supermercado. Comprou mais café e pães. Nada lhe apetitava. Pensou no tanto que gostava de viajar e no tanto que tem estado desanimada.

Já passava de meio dia quando resolveu fazer seu almoço. Uma salada fria com macarrão ao óleo e alho. E ovos. Enquanto engolia seu almoço foi surpreendida pelo bichinho entre as árvores. Era a terceira vez que o solitário esquilo descia pelo pé de jatobá, chegava até a mangueira e bebericava a água dos cachorros. Uma arriscada aventura para saciar seu instinto. Tereza já havia pensado em colocar água num recipiente bem no alto das árvores, assim como viu no “Buraco da Araras” no Mato Grosso do Sul. Mas lembrou da bióloga contando que uma vez, dentro do cocho de água para as araras, foi encontrada uma jararaca - ou uma jiboia? Não lembrava mais. Considerou melhor deixar como está. O esquilinho que ficasse bem esperto.

Continuou sentada no mesmo lugar. Continuava perscrutando seu olhar pelo quintal e, mais uma vez, achou-o feio, barrento, sujo e deixado à mercê das ervas daninhas e do capim. Realmente viu que as árvores haviam crescido muito nesta primavera. Os ipezeiros quase entrando dentro de casa. A obra prioritária havia sido iniciada em novembro, mas as chuvas e a falta de mais um trabalhador impediram que continuasse. Tereza assustou com os valores gastos nela e pensou que, com tal dinheiro, poderia ter feito algumas viagens. Queria conhecer o Rio Grande do Norte. Embora soubesse que não suportaria o calor de Natal. Queria ir na Patagônia.  Tem preferido as regiões frias. Sempre amou as estações de outono e inverno.

“Está decidido. Vou limpar todo o terreno. Restaurar o atual canil. Tirar algumas árvores. Fazer algumas trilhas para facilitar os cuidados diários. Quero deixar o sol iluminar tudo.” Pensou ela.

Logo assustou com esse desejo tão repentino. Tão fora de hora. Pegou os cadernos “diário de obras” e “diário do sítio” e começou a enumerar o que gostaria de fazer. Não iria obedecer às prioridades que já haviam sido levantadas. Esboçou um sorriso pelo ato decidido de transgredir a si mesma. Seu riso foi estancado por um som oco vindo de cima do telhado. Logo pensou nas mangas caindo sobre as telhas e rolando para as calhas. “Vai entupir tudo!!!” Pensou ela lamuriando o trabalho pela frente. Até que ouviu uma pomba rolinha arrulhando por perto. Mais um pássaro preso nas vidraças altas da casa. Entram e não conseguem sair. Uma vez aconteceu entrar um jacu. Foram vinte e quatro horas tentando sair. Caiu durante a noite e conseguiu sair caminhar pela porta de entrada como um ilustre visitante. Outra vez foi um beija-flor. Caiu duro depois de várias batidas – ou beijos? nos vidros. Uma gota de água com mel foi suficiente para que tivesse sua força de volta. Bateu asas e voou.

Depois de conseguir salvar a rolinha que já estava na boca do Téo, Tereza olhou mais uma vez para fora de casa: “Sim, é preciso luz em volta da casa.” Sublime momento tomou conta de Tereza. Sentiu que, ao salvar o passarinho, mantendo-o acolhido em sua mão, salvou a si mesma. Era isso. Estava vivenciando o horror de estar desenlaçada no mundo. Sentia-se que estava solta. Sentia-se que lhe sobrara apenas um corpo a carregar. Só matéria orgânica. O espírito tinha ido embora. Estava desalmada. Não havia se dado conta que sua alma lhe fora arrancada no instante que soubera do acontecido. Toda sua fantasia imaginária fora descontruída com o recado dado. Foi como se tivessem lhe extraído o coração e a alma de uma só vez. As palavras haviam tornado verbo e a açoitaram.

Então era isso.
A distância tomada. O jeito grandioso de ser. A aparente benevolência. O isolamento. O homem cheio de mistérios. As doces e escandalosas palavras de amor jurado. A sempre desejada expectativa de mais uma vez. Os encontros às escondidas. As frias despedidas.

Quem era ele? Tereza havia idealizado e criado um amante para si? Havia adornado o homem de inúmeros predicados? Viveu por ele? Colocou-se à disposição dele? Há quantos anos vinha-se inspirando nele para suas escritas? 

Agora, com o recado dado, como se fosse um ato falho, desfez-se a criação. Ele não era aquele que imaginara. Certamente ela também não seria aquela que ele pensava ter contido nas suas mãos, à margem.

Agora estava tudo tão claro. E a claridade lhe ofuscava a razão. Deixava-lhe perplexa. Em suspensão. Era preciso recriar-se. Era urgente reinventar-se.

Não sabia como fazê-lo.

Sabia que queria o sol iluminando sua casa.

E sabia também que voltaria a ser a mulher desejante que sempre soubera ser. Era apenas uma questão de tempo.


03/01/2022

“Sempre que alguém tenta suprimir a dúvida, existe a tirania”

(Frase de um diálogo entre personagens escritores no filme “A Filha Perdida” - NETFLIX)

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