(Delicadezas em Tempos de Coronavírus - XLVII)
Para ela a casa paroquial era a mais encantada da cidadezinha onde vivia. Ficava na praça central. Com dois andares. Amplas janelas pintadas de verde escuro bem defronte ao sol nascente. E paredes pintadas de amarelo palha. (Ou eram brancas e empoeiradas pela terra vermelha das ruas?) O telhado de quatro águas de dar inveja.
A menina morava numa casinha no final da rua de baixo. (O encantamento por sua casinha só viria na vida adulta). Os irmãos mais velhos brincando e brigando o tempo todo. O pai, estrangeiro por ali, ganhara respeito por todos os moradores e era amável com todos eles. A mãe, filha da fazenda, era a sinhazinha adorada por toda a cidade. Mas eram a avó e a tia materna que adocicava a vida da menina. Embora estas tivessem sob seus cuidados primas órfãs, o que causava olhares e demandas de ciúmes na menina, ainda sobravam carinhos e atenções para a neta e sobrinha- afilhada mais nova. E a menina amava aquela tia. Suas palavras soavam doces. Seus gestos no ar deixavam-na com olhares perdidos. E a sobrinha nada perdia daqueles gestos e palavras ao vento. Os cuidados dedicados continuavam dias adentro como expressões de amor pela menina afilhada.
Na sua inibição e pequenez, raramente ia àquela casa. Devia guardar os afetos recebidos até exaurirem; então voltava para buscar sua dose de atenção. Cabelos lavados e cortados. Piolhos catados. Lêndeas tratadas. Vacinas recebidas. Lombrigas vermifugadas. Feridas cuidadas. E biscoitos oferecidos. A menina, porém, falava apenas com o olhar.
A irmã, mais velha um ano, a conduzia até a casa. Já na porta seu coração disparava. Um misto de medo, respeito e desejo apoderava-se dela. Ela entrava devagar, de mãos dadas com a irmã, cabeça baixa e olhar para os ladrilhos hidráulicos avermelhados, frios e limpos. Logo defronte a porta do escritório do tio padre. O que tanto ele fazia ali dentro? Rezava, dizia a prima mais velha que morava na casa.
À esquerda a escada de madeira. A menina subia ali como se estivesse indo para o céu, mas passando pelo purgatório. Cada passo mais batedeira no coração. Parava no cume e esperava a tia vir recebe-las. Era parte dos protocolos daquela casa paroquial. A menina entendia. Esperava. A avó, caminhando com sua doçura, ou a tia, caminhando com sua altivez, aparecia. Às vezes demoravam. Estavam cuidando das ordens da cozinha.
As duas entravam e eram levadas diretamente para a cozinha. Era ali que tudo acontecia. Era ali que recebiam parentes, pessoas simples como o Petetê que ia pedir ovo cru. Tinha medo de ser envenenado com comidas e quitandas. Só ovo cru que bebia ali mesmo. Depois aceitava café na sua caneca tirada de dentro do saco de linhagem. A menina observava tudo. Cada pedaço daquela enorme cozinha tinha sua história. No centro o fogão a lenha onde cheirava a comida da Fia. Uma mesa no centro, onde eram servidos os pratos. Num outro lado, próximo a uma das janelas, outra mesa. Alta e ajeitada. Ali Joaninha passava toda a roupa da casa e do padre. Um armário de madeira bem colocado na parede que vinha da copa. Petetê sentava num banquinho perto dele. Do outro lado a avó. Dali a avó espreitava o movimento de toda a cozinha.
Mas, na travessia até a cozinha, havia a copa. Do lado esquerdo uma porta. Era o quarto das meninas, da avó e da tia. Do outro da copa, outra porta. Para esta, a menina nunca dirigia o olhar. Era o quarto do tio padre. E ele era muito bravo. Quando enfiava lá dentro ficava muito tempo. A sobrinha dizia que ele estava lendo o breviário. A menina ouvia, acreditava e admirava tanta sabedoria e tanta fé.
Onde mesmo eram feitas as hóstias? O sacristão e sineiro, com nome apropriado - Divino - ia até a casa paroquial, esparramava farinha de trigo com água numa prensa quente e recortava as hóstias redondinhas. Dava as réstias para as sobrinhas do padre. A menina, que ainda não podia comungar, se abastecia daquelas sobras com gosto de nada. Agradeciam ao sacristão que tinha um sorriso sincero e curto. Não havia criança que não gostasse daquele homem divino.
A copa tinha um jogo de mesa e um armário muito diferente de tudo que conhecia, cheio de portas de vidro. Eram nas cores branca e alaranjada. Ou vermelha? Era ali que os padres convidados faziam suas refeições. A menina passava por ali e espichava seu olhar. Tudo era tão lindo. Tudo era tão grande. Tudo estava sempre tão limpo e cheiroso.
A casa era dividida em duas partes. A parte da frente, com seus três quartos trancados, era destinada aos padres que sempre vinham ajudar nas celebrações das festas. E eram muitas as festas. E eram muitos os trabalhos para as cozinheiras e arrumadeiras. Minha tia tinha o dom de preparar tudo. Nada faltava. Ela era uma artista. Fazia flores de papel. Bordava toalhas de mesa e toalhas para os altares da igreja. Era uma verdadeira dona de casa. A sobrinha-afilhada não tirava seus olhinhos claros daquela tia. Virava e mexia a menina estava aconchegada a ela.
A cozinha era a parte final da casa. De uma das janelas podia-se ver o terreiro, o paiol e o forno de barro onde as quitandas eram assadas nas vésperas das festas. Naqueles dias várias quitandeiras paroquianas vinham ajudar. Na cozinha havia uma escada de cimento, que descia até o banheiro. Um cômodo bem pequenininho. Só o vaso sanitário. E um cômodo grande com um chuveiro bem ao meio dele. Nenhum conforto. Entretanto a água da serpentina supria qualquer desconforto. Do outro lado, uma adega com chão de terra batida e uma pequena portinhola que saía para um amplo jardim com os tanques de lavação das roupas. Ali ficavam os garrafões do vinho doce que se transformava no sangue de Jesus na consagração durante as missas. Depois ainda havia dois quartos onde dormiam a Fia - pura alegria - e a Joaninha - sempre aborrecida. Em épocas de festejos todos os familiares desciam e dividiam aqueles quartos com as duas. A menina reparava em tudo. Calada. Sentida.
Porém havia naquela casa um espaço proibido. Será que era mesmo proibido? Ou será que a menina se proibia de vê-lo?
Era o lavabo. Ele ficava na copa. Aquela dos móveis coloridos. Parecia um apêndice da copa. Tinha a largura e a profundidade de não mais que um metro e meio. Enquanto o assoalho da copa era de tábuas largas, o piso do lavabo era do tal ladrilho frio. Na parede do fundo, à esquerda, havia a pia com um sabonete redondo, cor de rosa, dependurado numa correntinha pregada na parede. Um porta toalhas ao lado. Às vezes o sabonete cheirava a jambo. A menina achava que os sabonetes eram feitos daquela fruta. Do lado direito havia um gigantesco filtro de barro sob uma mesinha delicadamente colocada ali. No alto da parede, sobre um pequeno espelho, havia um quadro emoldurado de madeira escura, coberto com vidro e uma figura. Uma caçada. O quadro ocupava quase toda aquela parede do fundo. Uma mata fechada e vários caçadores com espingardas. O que sobrava de espaço era preenchido com folhagens. Costelas de Adão, antúrios, palmas de São José, Espadas de São Jorge ou flores da época. Era de fato um lugar sagrado.
Com pouco mais de dois metros quadrados, a paisagem do quadro, o perfume dos sabonetes, as toalhas tecidas a mão e seus frequentadores religiosos esporádicos, configurava um mistério para a menina. Ela, que via e sentia além da sua pouca idade, parava diante daquele lavabo, pisava no frio do ladrilho e olhava. Olhava muito mais do que lhe era permitido. Uma sensação estranha atravessava todo seu corpo de criança. Nunca soube dar nome àquilo que sentia. Passou pela vida com as lembranças da casa do tio padre.
Hoje, com seus cabelos brancos, sua pele fina, ressecada, seus passos incertos, a menina-velha certifica-se que, diante daquele lavabo da casa paroquial, jamais sentiu tão plena de paz.
15/05/2021