terça-feira, 25 de maio de 2021

Conto: DEVANEIOS


(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XLIX)



“Não consigo dormir.
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras.
Se pudesse, diria a ela que fosse embora;
mas tenho uma mulher atravessada na garganta”
(Eduardo Galeano).


DEVANEIOS

Foi assim. Depois da noite de amor, ela acordou e viu um bilhete sobre o travesseiro do amante.

“Morena, fui comprar café. Volto logo – Seu Moreno”

Ela sorriu e esperou.

Era um quarto vazio. Uma casinha alugada por ele. Um colchão usado no chão. Uma cadeira usada na sala. Uma estante improvisada com tábuas e tijolos. Alguns livros. No banheiro um sabonete comum. Só as toalhas eram novas e coloridas. Ela comprou-as.

Ela continuava esperando. Às vezes levantava. Olhava, sem ver, a casa e o terreiro. Havia árvores frutíferas que ela não via.

Voltava para o quarto. Sentava no colchão.

“Ele já devia estar chegando”, pensava ela.

Amava-o de uma forma a não conseguir mais viver sem ele. E tinha certeza que ele também a amava.

“Onde terá ido ele?”

Era ela a se perguntar. Levantava novamente. Novamente olhava pela janela da cozinha. Não via o abacateiro imenso que trazia sombras no terreiro. Mas sentia as sombras que a ausência dele vinha lhe trazendo nos últimos tempos.

“Já são onze horas”, pensava ela sem conseguir pensar além.

“Mas ele foi tão gentil no bilhete. Deve ter acontecido alguma coisa”

Assim ela suportava e se iludia com as escapadelas dele. E ele sempre escapava com outras. Ela só era mais uma delas.

A manhã de sábado terminava e ela continuava esperando o café. Nem sentia o estômago pedindo alimentos. Seu único alimento era o amor que sentia por ele.

Quinze anos mais velho que ela. Um casamento meio que acabado sem acabar. Uma colega amante. Outra colega no flerte. E todas aguardando por ele. Com certeza.

“Com qual delas ele estará agora?”

“Por que ele me trata assim?”

De repente ela se deu conta que ele não voltaria. Mas esperava. Não conseguia mais andar sem aquele amor. Sentia-se abandonada. Largada.

Ao anoitecer já não conseguia mais pensar. Só esperava.

“Ele deve vir a noite”.

A expectativa fazia-a renascer.

Ela bebia água. Da torneira.

Oito horas da noite.

“Daqui a pouco ele deve estar chegando”

Um banho para reanimar e aguardar seu amado. Um copo de água.

Um barulho de motor de moto na rua.



“Parou aqui perto.”

“É ele.”



Não era ele.

Dez horas da noite. Ela já não se reconhece. Nem consegue chorar. Tem certeza que, a qualquer momento ele estará nos braços ele.

Meia-noite. Outra moto se aproxima.


“Que bom. Ele chegou”

Não. Ele não chegou.

Uma hora. Duas horas. Três horas. Quatro horas. Cinco horas.

A madrugada começava a dar lugar ao dia.



“Daqui a pouco ele chega com meu café da manhã”



Assim ela o esperou por muitos anos. Não soube ser de outra maneira. Estava presa no desamparo que ele lhe causava.

Esperou nove meses.

Não fosse seu filho na barriga continuaria sozinha.


24/05/2021

 

 

 

 

 

 

sábado, 22 de maio de 2021

Crônica: O dia do casamento

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus XLVIII)

                                          

                                 

Lembro do seu vestido de noiva. Era a primeira vez que ouvia falar do “marabu”. Você quis que esse adereço fosse colocado na gola rente ao pescoço e nos punhos das mangas longas e, também, justas aos braços. Seu pescoço parecia descansar suavemente num ninho de nuvens assim como suas mãos saindo delas. Nada mais enfeitava aquele vestido. Ele se bastava. Era um vestido de noiva. As plumas finas e brancas do tal "marabu" foram suficientes para esbanjar sua felicidade. Elas esvoaçavam como fios das virgens nuvens de outono. E você estava radiante.
Era inverno. Eu caprichei no meu vestido de veludo "cotelê" em tom marrom. Botas curtas em tom whisky. E uma meia prá lá de fina.

Sua pele estava ainda mais branca no seu vestido de noiva. E você estava muito bela. 


Sua entrada na igreja foi um espetáculo à parte. Você foi agraciada com uma tarde exuberante daqueles tempos de frio. As nuvens coloriram o céu de rosa, alaranjado e dos últimos raios dourados de sol brilhavam no fundo em tons azul . Quem olhava você entrando na igreja, sendo conduzida pelos braços do nosso pai, via a natureza emoldurando a porta de vitrais coloridos. Aquela cena ainda permanece bem viva dentro de mim. Jamais irei esquecê-la.

E a matriz de Nossa Senhora da Conceição abençoou você e seu noivo. Aquele que escolheu e que soube receber seu amor.

Depois houve a recepção dos seus convidados. Da festa pouco me lembro. Mas sei que você preparou tudo com o cuidado e o capricho que sempre lhe foram tão peculiares. Havia trabalhado dobrado para não onerar seu pai e para que tudo saísse do seu jeito. E saiu tudo perfeito como só você saberia fazer.

A seguir viajaram para a lua de mel. Vitória fora a cidade escolhida. Não poderia ser outro o nome da cidade escolhida. Uma filha vitoriosa.

Entretanto, para além deste relato, há uma outra história.

Naquele ano eu já estava na cidade onde fazia faculdade. Quando possível visitava meus pais e irmãos. A irmã do meio já havia se casado, morava em São Paulo e já havia nos presenteado com nossa primeira sobrinha, Letícia.

Os irmãos mais velhos já moravam fora de casa. Os irmãos mais novos também já estavam estudando noutra cidade. Portanto a casa esvaziou. Ficaram nossos pais e um guarda-roupas, de uma única porta. Era nele que as três filhas guardavam suas parcas roupas de vestir e nossas roupas de cama. 

Aquele quarto fora o segundo banheiro da casa que virara dormitório. Não tinha mais que sete metros quadrados. Uma cama de solteiro e o guarda-roupas. Só. Eu sempre havia querido aquele quarto. Talvez fosse porque ele recebia o sol da manhã. Talvez fosse porque nele havia o guarda-roupas. Ou talvez fosse porque sua janela abria para um canteiro de flores. Hoje sei que não fora por nada disso. Ali era o quarto da minha irmã caprichosa, inteligente, estudiosa, dona de si e cheia de graça.

E foi para aquele quarto que me dirigi naquela noite do casamento da minha irmã. Abri a porta do guarda-roupas. Agora ele seria todo meu. Abri a sua única porta e olhei-me no espelho. 

Então caminhei para dentro do meu vestido marrom. Sentei na cama e chorei. chorei copiosamente.

Eu não sabia que gostava tanto daquela minha irmã.


Observações: 
1 - esta crônica foi escrita em homenagem aos setenta anos da minha irmã, no dia 19/05/2021 


2 - "marabu" é um pássaro africano.


Maria do Rosário Nogueira Rivelli



30/03/2021















sábado, 15 de maio de 2021

O lavabo da casa paroquial

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - XLVII)

 


Para ela a casa paroquial era a mais encantada da cidadezinha onde vivia. Ficava na praça central. Com dois andares. Amplas janelas pintadas de verde escuro bem defronte ao sol nascente. E paredes pintadas de amarelo palha. (Ou eram brancas e empoeiradas pela terra vermelha das ruas?) O telhado de quatro águas de dar inveja.

A menina morava numa casinha no final da rua de baixo. (O encantamento por sua casinha só viria na vida adulta). Os irmãos mais velhos brincando e brigando o tempo todo. O pai, estrangeiro por ali, ganhara respeito por todos os moradores e era amável com todos eles. A mãe, filha da fazenda, era a sinhazinha adorada por toda a cidade. Mas eram a avó e a tia materna que adocicava a vida da menina. Embora estas tivessem sob seus cuidados primas órfãs, o que causava olhares e demandas de ciúmes na menina, ainda sobravam carinhos e atenções para a neta e sobrinha- afilhada mais nova. E a menina amava aquela tia. Suas palavras soavam doces. Seus gestos no ar deixavam-na com olhares perdidos. E a sobrinha nada perdia daqueles gestos e palavras ao vento. Os cuidados dedicados continuavam dias adentro como expressões de amor pela menina afilhada.


Na sua inibição e pequenez, raramente ia àquela casa. Devia guardar os afetos recebidos até exaurirem; então voltava para buscar sua dose de atenção. Cabelos lavados e cortados. Piolhos catados. Lêndeas tratadas. Vacinas recebidas. Lombrigas vermifugadas. Feridas cuidadas. E biscoitos oferecidos. A menina, porém, falava apenas com o olhar.

A irmã, mais velha um ano, a conduzia até a casa. Já na porta seu coração disparava. Um misto de medo, respeito e desejo apoderava-se dela. Ela entrava devagar, de mãos dadas com a irmã, cabeça baixa e olhar para os ladrilhos hidráulicos avermelhados, frios e limpos. Logo defronte a porta do escritório do tio padre. O que tanto ele fazia ali dentro? Rezava, dizia a prima mais velha que morava na casa.

À esquerda a escada de madeira. A menina subia ali como se estivesse indo para o céu, mas passando pelo purgatório. Cada passo mais batedeira no coração. Parava no cume e esperava a tia vir recebe-las. Era parte dos protocolos daquela casa paroquial. A menina entendia. Esperava. A avó, caminhando com sua doçura, ou a tia, caminhando com sua altivez, aparecia. Às vezes demoravam. Estavam cuidando das ordens da cozinha.

As duas entravam e eram levadas diretamente para a cozinha. Era ali que tudo acontecia. Era ali que recebiam parentes, pessoas simples como o Petetê que ia pedir ovo cru. Tinha medo de ser envenenado com comidas e quitandas. Só ovo cru que bebia ali mesmo. Depois aceitava café na sua caneca tirada de dentro do saco de linhagem. A menina observava tudo. Cada pedaço daquela enorme cozinha tinha sua história. No centro o fogão a lenha onde cheirava a comida da Fia. Uma mesa no centro, onde eram servidos os pratos. Num outro lado, próximo a uma das janelas, outra mesa. Alta e ajeitada. Ali Joaninha passava toda a roupa da casa e do padre. Um armário de madeira bem colocado na parede que vinha da copa. Petetê sentava num banquinho perto dele. Do outro lado a avó. Dali a avó espreitava o movimento de toda a cozinha.

Mas, na travessia até a cozinha, havia a copa. Do lado esquerdo uma porta. Era o quarto das meninas, da avó e da tia. Do outro da copa, outra porta. Para esta, a menina nunca dirigia o olhar. Era o quarto do tio padre. E ele era muito bravo. Quando enfiava lá dentro ficava muito tempo. A sobrinha dizia que ele estava lendo o breviário. A menina ouvia, acreditava e admirava tanta sabedoria e tanta fé.

Onde mesmo eram feitas as hóstias? O sacristão e sineiro, com nome apropriado - Divino - ia até a casa paroquial, esparramava farinha de trigo com água numa prensa quente e recortava as hóstias redondinhas. Dava as réstias para as sobrinhas do padre. A menina, que ainda não podia comungar, se abastecia daquelas sobras com gosto de nada. Agradeciam ao sacristão que tinha um sorriso sincero e curto. Não havia criança que não gostasse daquele homem divino.

A copa tinha um jogo de mesa e um armário muito diferente de tudo que conhecia, cheio de portas de vidro. Eram nas cores branca e alaranjada. Ou vermelha? Era ali que os padres convidados faziam suas refeições. A menina passava por ali e espichava seu olhar. Tudo era tão lindo. Tudo era tão grande. Tudo estava sempre tão limpo e cheiroso.

A casa era dividida em duas partes. A parte da frente, com seus três quartos trancados, era destinada aos padres que sempre vinham ajudar nas celebrações das festas. E eram muitas as festas. E eram muitos os trabalhos para as cozinheiras e arrumadeiras. Minha tia tinha o dom de preparar tudo. Nada faltava. Ela era uma artista. Fazia flores de papel. Bordava toalhas de mesa e toalhas para os altares da igreja. Era uma verdadeira dona de casa. A sobrinha-afilhada não tirava seus olhinhos claros daquela tia. Virava e mexia a menina estava aconchegada a ela.

A cozinha era a parte final da casa. De uma das janelas podia-se ver o terreiro, o paiol e o forno de barro onde as quitandas eram assadas nas vésperas das festas. Naqueles dias várias quitandeiras paroquianas vinham ajudar. Na cozinha havia uma escada de cimento, que descia até o banheiro. Um cômodo bem pequenininho. Só o vaso sanitário. E um cômodo grande com um chuveiro bem ao meio dele. Nenhum conforto. Entretanto a água da serpentina supria qualquer desconforto. Do outro lado, uma adega com chão de terra batida e uma pequena portinhola que saía para um amplo jardim com os tanques de lavação das roupas. Ali ficavam os garrafões do vinho doce que se transformava no sangue de Jesus na consagração durante as missas. Depois ainda havia dois quartos onde dormiam a Fia - pura alegria - e a Joaninha - sempre aborrecida. Em épocas de festejos todos os familiares desciam e dividiam aqueles quartos com as duas. A menina reparava em tudo. Calada. Sentida.

Porém havia naquela casa um espaço proibido. Será que era mesmo proibido? Ou será que a menina se proibia de vê-lo?

Era o lavabo. Ele ficava na copa. Aquela dos móveis coloridos. Parecia um apêndice da copa. Tinha a largura e a profundidade de não mais que um metro e meio. Enquanto o assoalho da copa era de tábuas largas, o piso do lavabo era do tal ladrilho frio. Na parede do fundo, à esquerda, havia a pia com um sabonete redondo, cor de rosa, dependurado numa correntinha pregada na parede. Um porta toalhas ao lado. Às vezes o sabonete cheirava a jambo. A menina achava que os sabonetes eram feitos daquela fruta. Do lado direito havia um gigantesco filtro de barro sob uma mesinha delicadamente colocada ali. No alto da parede, sobre um pequeno espelho, havia um quadro emoldurado de madeira escura, coberto com vidro e uma figura. Uma caçada. O quadro ocupava quase toda aquela parede do fundo. Uma mata fechada e vários caçadores com espingardas. O que sobrava de espaço era preenchido com folhagens. Costelas de Adão, antúrios, palmas de São José, Espadas de São Jorge ou flores da época. Era de fato um lugar sagrado.

Com pouco mais de dois metros quadrados, a paisagem do quadro, o perfume dos sabonetes, as toalhas tecidas a mão e seus frequentadores religiosos esporádicos, configurava um mistério para a menina. Ela, que via e sentia além da sua pouca idade, parava diante daquele lavabo, pisava no frio do ladrilho e olhava. Olhava muito mais do que lhe era permitido. Uma sensação estranha atravessava todo seu corpo de criança. Nunca soube dar nome àquilo que sentia. Passou pela vida com as lembranças da casa do tio padre.

Hoje, com seus cabelos brancos, sua pele fina, ressecada, seus passos incertos, a menina-velha certifica-se que, diante daquele lavabo da casa paroquial, jamais sentiu tão plena de paz.




15/05/2021