quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

RetroExpectativa 21/22

 RetroExpectativa 21/22

 

Janeiro: será que a Pandemia acaba este ano?

Fevereiro: haverá carnaval?

Março: cadê as vacinas?

Abril: onde está o presidente?

Maio: quem é o ministro da saúde?

Junho: queremos namorar.

Julho: quando serão as férias?

Agosto: cachorros loucos às soltas

Setembro: o verde-amarelo é capturado

Outubro: CPI e o espetáculo das audiências

Novembro: vamos vacinas as crianças

Dezembro: Papai Noel existe?

Só sei que nada sei.

Mas sei que nosso país está agoniazando.

 

30/12/2021

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Carta para Papai Noel

 Bom dia Papai Noel

Fiquei pensando se escreveria esta cartinha ou não.  É que já tenho 11 anos e não acredito mais em você. Não fique com raiva de mim. Descobri que você não existe ainda quando eu era bem pequenino. Nunca havia presentes em cima dos meus sapatos. Achava que era porque eles eram velhos demais para você colocar presentes neles.

Mamãe fazia questão de caprichar na macarronada e no frango do almoço. Mas eu só queria um presente. Meu pai levantava cedo e já ia para o bar beber. Era tristeza só. Mas eu lambia os beiços, fazia um sorriso e dizia para minha mãe que o almoço de natal estava delicioso. Não gostava de ver minha mãe chorando escondido. 

Papai Noel, este ano foi muito difícil para minha família. Meu avô morreu com falta de ar. Meu pai ficou triste pelos cantos. Meu tio, irmão da minha mãe, era diabético que nem eu e também morreu com esta danada de doença. Aqui no meu bairro muitas pessoas também morreram. De repente as ruas ficaram vazias e todo mundo usando máscaras. Acho que eles aproveitavam as máscaras para esconderem a tristeza.

Papai Noel, hoje não quero pedir aqueles presentes que nunca vieram. Mas quero pedir um presente especial. Eu quero ser vacinado. Não entendi o porquê do presidente do Brasil não querer deixar as crianças serem vacinadas. Se todo mundo fala que somos o futuro do país, como ficará o Brasil? Também não entendi o porquê do presidente, que deveria cuidar de toda gente, ficar ameaçando aqueles cientistas que trabalham para fazer a vacina e nos proteger desse doença tão perigosa. 

Por favor Papai Noel, fala para o presidente que eu, meus amigos e, acho que todas as outras crianças também, queremos ser vacinados. Não precisa trazer outros presentes. Não quero morrer ainda...

Assinado: O Futuro do Brasil

23/12/2021

sábado, 18 de dezembro de 2021

É assim que se inscreve

 



Pegue um lápis. Quem sabe uma caneta? Ou um pedaço de carvão? Talvez a ponta de um canivete. 

Agora encha o peito de ar. Então expire vagarosamente em forma de palavras. 

Dê asas às suas palavras. Dê autonomia de voo. Viaje para o azul do céu ou para dentro de si. Ou deite no fundo de uma canoa no rio Parnaíba. Olhe para o leste. Ali, onde o sol nasce, é a cidade de São Bernardo, no Piauí. Vire os olhos para o oeste. Ali, onde a lua vai perdendo seu brilho, é a cidade de Magalhães de Almeida, no Maranhão.

Deixe a canoa deslizar rio abaixo. E deságue no delta junto a cidade de Parnaíba. Dois estados se beijando. E um terceiro estado está dentro de você. É este quem comandará o destino de suas escritas.

Mas vá bem devagar. Quem sabe encontre uma floresta de babaçus. Olhe como suas folhas bailam ao ritmo das ondas do Atlântico. Não se acanhe diante do mar. Mas o respeite e ele te encherá de palavras para suas escritas.

Pode chorar. A água salgada de suas lágrimas se juntará às águas do mar. Você se inundará de prazer. 

Ele há de voltar. Não o amante imaginado. Criado.

Há de chegar o amante do mar. Mergulhe. Lave seu corpo. Revigore sua alma. E dance com as palavras que estavam aprisionadas.

Depois volte para casa. Pegue uma folha em branco e se inscreva na poesia.


Observação: Este texto faz parte da Segunda oficina de letras de dezembro como solicitado: "Escreva um texto para alguém quer trilhar o caminho das escritas".

Maria do Rosário Nogueira Rivelli

15/12/2121



domingo, 12 de dezembro de 2021

domingo, 28 de novembro de 2021

Poesia: As cores da liberdade

 

 As cores da liberdade

 

Se liberdade tivesse cor

Seria o mel dos olhos de Francisco

E o branco de sua pele

 

Se liberdade tivesse cor

Seria o vermelho do sangue de Zumbi

E o preto de sua pele

 

Se a liberdade tivesse cor

Seria a cor do desejo

E e a cor da transgressão

 

A liberdade tem a cor de um filho


27/11/2021

(Uma homenagem ao meu filho nascido no dia 20 de novembro com o nome de Francisco nesta semana da "Consciência Negra")

domingo, 21 de novembro de 2021

Caso: O resgate da família canina

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - LXIII)

 



Dona Marta atendeu rapidamente ao chamado da vizinha, de pé, no meio da rua-caminho. Perto de suas casas. A vizinha estava inquieta. Apontou a causa de seu apavoramento: um filhote da ninhada da cachorra alojada defronte a casa do outro vizinho. Muito emagrecido, estirado sob a terra, com as costelinhas visíveis e cheiro fétido exalando das feridas pelo corpo. Larvas o comiam ainda vivo. Deu seu último suspiro durante a chegada de Dona Marta. Alice, agora preocupada com o corpinho no meio da estradada, tratou logo de enterrar o bichinho. Mostrou a situação em que se encontravam os demais filhotes da cadela sem dono. “Um morreu atropelado pelo vizinho” informou ela contrariada.

Dona Marta nem quis olhar. Sabia que seu coração não suportaria ver tal cena apontada. Ela, que já adotara alguns cães abandonados, sabia do trabalho dispensado, dos gastos e, agora um pouco adoentada, não poderia cuidar de mais uma ninhada. Entretanto, na manhã seguinte, vieram lhe contar do estado de penúria em que se encontravam os quatro sobreviventes. Dormindo no tempo, ora debaixo do sol, ora debaixo da chuva. A mãe não tinha leite - não comera durante a gestação - e parecia desesperada querendo salvar seus filhotes.

Aceitou cuidar do mais fraquinho. Pediu a visita do veterinário cujo trabalho dona Marta tanto admirava. À tarde, quando voltou do seu trabalho, lá estava o quarteto. Esfomeados, fedorentos, caquéticos, desidratados e desnutridos. O mau cheiro circundava toda a casa.

A noite o veterinário - será que ele é japonês ou chinês? - voltando do consultório, passou por lá para atende-los. Todos eles com bichos de pés, feridas abertas e muitas larvas das danadas varejeiras. O médico, calmamente, 
pegou um por um, tirou todas as larvas, amputou dedos necrosados, limpou as feridas, orientou os tratamentos e deixou as receitas.

Alice, Ana e Nelinho apoiaram a decisão e prometeram contribuir para a recuperação dos bichinhos. Cada um a seu modo e a seu tempo. E, nesta empreitada, ninguém observou quem era macho ou quem era fêmea. A preocupação naquela hora era apenas salvá-los.

Já com viagem programada, afinal era o aniversário do netinho, Dona Marta deixou a ninhada aos cuidados dos prestimosos vizinhos. Pegou o carro e ganhou a estrada. E foi duplamente viajando naquela manhã que seu coração tanto disparou. Lembrou das famílias Severinas, no nordeste brasileiro, que durante tantas décadas morriam de fome, de desidratação, de verminoses, de seca. Certamente ainda hoje, nos rincões das terras rachadas, meninas são trocadas por “algum ganhume” para o resto da família não morrer na miséria. Engasgou detrás do volante ao lembrar do tempo que esteve lá, na década de oitenta, enquanto estudante de medicina. Percorreu vários casebres. Viu vários olhos sem vida. Viu peles ressequidas. Viu meninas grávidas após menstruarem pela primeira vez. Não entendia os convites dos fazendeiros para as festas regadas a bebidas importadas em verdadeiros oásis de flores, frutas e comidas fartas. Cabulou e sofreu muito naquele trabalho e ainda hoje nas lembranças. Constatar as diferenças sociais feriram seus olhos e seu coração. Voltou dividida. Estraçalhada.

Agora a fome volta a assolar o povo brasileiro. O desemprego crescendo por todo o país. Os mais ricos ficando mais ricos. Os mais pobres ficando mais pobres. Uma economia excludente, voltada para o capital. “Que morram os pobres. Eles gastam dinheiro público. Precisam de cuidados assistenciais. Precisam de assistência em saúde." Assim tem-se traduzido as vozes deste governo incompetente e amoral, pensou Dona Marta.

E ela volta dos seus devaneios. Chegou na cidade do seu filho. Num grande sorriso encontra o netinho. “Vovó bufufuda!” E muitos abraços e brincadeiras.

Quando retornou para sua casa, encontrou a mãe cachorra já cuidando e tentando amamentar seus desvalidos. “Não tem outro nome para ela senão Severina” - pensou Dona Marta. Maria e José foram os nomes escolhidos para os mais fraquinhos. Aqueles que tiveram dedos amputados. Dona Marta e Alice deram soro aos dois. Tentou alimentá-los com rações deliciosas. Mas Maria faleceu no segundo dia dos cuidados. Deu seu último suspiro no colo de Dona Marta que ficou com os pensamentos cá e lá.

(Deixou, há muito tempo, de assistir jornais. As fatalidades televisivas ela vem se recusando a ver. Cuida das partes que lhe cabem.)

Descobriu que o filhote, José, é uma fêmea. Ela sobrevive com metade de uma patinha e até arrisca brincar com Paçoca pela grade do canil. Tica agora é seu nome. Ainda desnutrida, mas já dando seus passeios furtivos pelo quintal. Teca e Tico são os mais saudáveis. Ela cor de caramelo da mãe. Ele cor preta, do pai? Teca é atrevida. Não tem medo da terrível Tieta. Teco fica na dele. Faz conhecimento do quintal e dos seus perigos. O velho Neguinho só fica observando como se fosse Tipu, o grande sultão indiano. E todos já se entendem.

Agora é aguardar o fim dos tratamentos e encontrar quem os queira. Lembrando que eles têm uma história de sobrevivência contada e recontada e publicada.

21/11/2021
Funil/ Mário Campos

Mini conto: Mais um amor na minha vida

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - LXII)
 
Disseram que ele entrou pela janela do quarto. Caminhou lento pelo corredor. Na sala bateu asas e pousou numa viga de madeira atravessada no telhado. Lá de cima voava até as vidraças fixas. Queria ganhar o céu. Ali ficou o dia todo. Sem água. Sem petiscos. Sujeiras espalhadas pelo chão. Lá de cima olhava atento. A nos espreitar. À noite desceu das alturas. Caminhou lento até a porta. Saiu assim como entrou. Lindo, garboso, alado. 
Outro jacu na minha vida.
Jacu ladrão, roubou meu coração.

21/11/2021

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Conto: A chuva amazônica

 



Naquele dia ela acordou sentindo o mormaço do período chuvoso e a angústia das dores de seus dias, rememorando as palavras e olhares cortantes que havia recebido da pessoa que tanto amava. Assim, sem muita vontade levantou-se. 

Maquinalmente preparou um café preto e uma tapioca com queijo coalho e tucumã. Sentou-se à mesa e olhou para a cadeira vazia a seu lado, pensou nas ausências e nos silêncios que compartilhou por tanto tempo com aquela pessoa que não mais lá estava. Sentiu então uma forte dor no peito pela derrocada de seus sonhos quase infantis de uma travessia comum pelas asperezas da vida e as belezas do caminhar.

Foi despertada desses devaneios pelo gralhar de um casal de araras vermelhas que todos os dias passava sobre sua casa e tanto lhe enchiam de ternura e satisfação por colorirem seu olhar e alegrarem seus ouvidos. Mas seu coração não estava para essas alegrias passageiras, logo invejou a parceria de vida daquele majestoso e alado casal. Ao arrumar a mesa, sentindo-se mal pela inveja que sentira, quis sumir dali. Daquela casa, daquela cidade, daqueles cheiros, cores e pessoas que por anos compartilhou com o ser amado. Queria ir para o outro lado do mundo, recomeçar a vida, reconstruir os sonhos. No entanto, ela sabia, sempre soube, que o lugar mais distante que poderia ir era para dentro de si mesma, um lugar sombrio, mas cheio de esperanças, duro, porém alegre. Um refúgio nem sempre confortável, mas esclarecedor. Daí, sem perceber ela seguiu um dos conselhos que seu pai mais lhe deu na vida, o de que o caminhar é um dos melhores psicólogos que há. 

E saiu caminhando pelo bairro, observando as belezas dos quintais e dos fragmentos de mata no entorno. Admirando a grandeza e a fortaleza das Sumaúmas, mas pensando também na fragilidade de toda aquela imponência natural. O que a trouxe de volta para a sua condição, já que ela acreditava na perenidade de sua relação, que, no entanto, ruiu como uma enorme Sumaúma nas mãos dos desmatadores. Nesse claro momento sua angústia transbordou, sua garganta deu um nó e seus olhos encheram d’água, mas por orgulho ou qualquer outra coisa que há, ela não conseguiu chorar em frente a seus vizinhos que praticavam suas caminhadas matinais. Assim, em um enorme esforço ela continuou suas passadas, altiva, sem derramar uma lágrima sequer, mesmo sentindo uma enorme aflição interior e o peso das lágrimas represadas. E como num milagre ou apenas numa coincidência natural, ela sentiu cair em seu ombro uma grande gota de chuva, daquelas que só o inverno amazônico é capaz de produzir. Neste momento exato, ao pressentir a queda de uma daquelas tempestades que ela tanto admirava e que só havia presenciado nos trópicos, daquelas que lavavam a alma, esse poder único das águas, ela soube que Deus, a Mãe Natureza e os espíritos da floresta vieram lhe cobrir, lhe confortar. Acobertar todo seu pranto, sua angústia, sua dor. 

Neste preciso instante ela entendeu a dádiva da chuva, que como sua amiga e secreta confidente foi a única testemunha da purificação daquele choro engasgado.



Autor: "Eu me chamo Marcelo Rodrigues e sou "mineuara", como queijo Minas frescal com farinha de ovinha do Uarini. Gosto da leveza das palavras e das delicadezas da vida."


Nota do autor: Sumaúmas são umas das maiores árvores da Amazônia junto com as castanheiras. São verdadeiras senhoras da floresta, chegam a 60, 70 até 80 metros de altura.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Conto: Fragmentos - Um

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - LXI)




Foi num sábado qualquer. Sem almoço ou café especiais. A rua estava envelhecida e extenuada assim como a casa onde viveu sua infância. Ele chegou como quem nada quer. Parou o carro. Olhou sem vontade de ver coisa alguma. Desceu. Em casa a mãe não disse palavras. Abriu-se num sorriso dela. Nada escancarado. Porém firme de si. Aquele filho sempre lhe fora especial assim como os demais. Saiu de casa ainda muito jovem. Voou. Trouxe orgulho para toda a família. Agora tenta trazer “Saúde e paz”.

(Será que alguém pode se dar ao luxo de desejar saúde e paz a quem quer que seja?

Por onde teria andando? Que fez de sua vida? Ganhou dinheiro? Ganhou fama? Onde estariam seus amores?)

- Bençoa mãe.

- Deus te abençoe meu filho.

Já dentro de casa, entra no quarto que lhe acolheu criança. Adentra o olhar. Seus olhos vagueiam no espaço vazio. Tenta ver o menino que ali viveu.

- Mãe, onde o pai gostava de senta depois do trabalho?

- Nem assentava. Jantava. Deitava e dormia. O trabalho exigia força física. Chegava cansado.

Então sentou-se em qualquer cadeira. Queria saber do pai. Como ele era. Por onde andava nos dias de folga. Como tratava os filhos. Como se dava com a mãe.

Resposta alguma ouviu dela.

- Que lembranças você tem dele? Foi a resposta pergunta da mãe.

Tomé não se lembrava do pai. Voltou pouco em casa depois que saiu. As lembranças da infância estavam anuviadas. Incertas. Tem na memória que a mãe não chorava quando o pai não aparecia para dormir. Nem dava explicações no dia seguinte. Ela não perguntava. Seu orgulho era maior. A rua sabia dos casos. Não alardeavam. Gostavam dele. Era um homem muito trabalhador. O demais não importava. Gostava de passarinhos. Trocava passarinhos. Vendia passarinhos.

- Mãe, você gostava do meu pai? Ele gostava de você? Não lembro de suas conversas.

Continuou com a mudez das respostas. Abaixou a cabeça. O corpo acompanhou o movimento. Calou-se. A mãe foi até a cozinha. Trouxe uma média de café num copo americano. Num pires colorido, de louça, trouxe bolinhos de chuva que fizera para as netas no dia anterior. Tinha açúcar e canela. Ele saboreou o bolinho com gosto. Entendeu o recado da mãe. Era preciso parar com aquela conversa.

O som da campainha interrompeu o ensurdecedor silêncio.

- Boa tarde dona Vera. Eu vi o carro do Tomé na porta e vim pedir uma benção pra minha filha. Ela está muito triste, calada. Sem ânimo até para brincar. Só emagrecendo. Tô muito preocupada.

Tomé inspirou fundo sem mover senão o peito. Continuou quieto na cadeira. Jamais esqueceria aquela voz.

- "Pode pedir que ela entre com sua filha."  Adiantou ele.

Logo viu o olhar de tristeza naquela vizinha que tanto amou. Perguntou o que estava acontecendo. Sorriu para a menina. Ofereceu um bolinho de chuva. A menina olhou. Aceitou o bolinho e esperou a benção. Tomé fechou os olhos. Colocou sua mão sobre a cabeça de Clara e ficou em silêncio.

Teresa tentava não olhar para o homem. Sabia pouco ou quase nada dele desde que haviam se separado ainda na adolescência. Raras cartas foram trocadas. Teresa havia se casado. Tinha duas filhas. O marido era um homem bonito, bem apresentado. Da vida de Tomé não soube dos estudos fora do país. Não soube das viagens pelo Brasil. Nem soube que havia se tornado um estudioso do evangelho segundo a doutrina espírita. Recentemente ouviu dizer que ele tinha o dom da palavra. “Ninguém nem pisca quando ele vem dar palestras”, ouviu de uma antiga amiga. 

A seguir Teresa agradeceu o passe. Mãe e filha saíram juntas.

Dentro de casa, mãe e filho continuaram calados. Ela não ousaria fazer perguntas. Ele não ousaria dar respostas. Desnecessário. Ambos sabiam as perguntas e as respostas. O silêncio falava por eles.

Já no final da tarde Tomé levantou e despediu-se da mãe.

Ela buscou o olhar dele.

- Meu filho, que muralha tão dura você construiu da fragilidade de seus olhos! Não viu o amor do seu pai. Não viu Teresa. Escute o que você fala nas suas palestras.

Tomé pediu a benção. Entrou no carro.

No caminho parou e desceu. A lua cheia nascia sobre a serra. Sentiu o peso dos anos. Sentiu a direção tomada na vida. O eco das palavras da mãe cortava sua carne. A dor era insuportável.

Sabia do muro que construíra para proteger-se do medo daquele grande amor. Só não sabia que o mesmo muro iria separá-los para sempre.

Não dormiu naquela noite.



Maria do Rosário N. Rivelli

31/10/2021

Dia das Bruxas

Fotografia: presente de aniversário. Arquivo pessoal

domingo, 24 de outubro de 2021

Crônica: Invenções de avó e mãe.

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - LX)




Sábado pela manhã.
O celular fez uma chamada de vídeo. Meu filho. Atendi logo. Uma imagem distorcida apareceu no aparelhinho.

- “Que é isso?” Perguntei já antevendo que era meu neto querendo brincar comigo através do celular.

- “Seria um gato?”

- “É o Igui, vovó!” ele logo responde mas sem se mostrar. Dudu nunca gostou de aparecer no vídeo para conversar. Sempre cria brincadeiras como maneiras de estar do outro lado a falar comigo. Debaixo de lençóis ele carrega o enorme gato preto Igui. Uma cabana para seu gato preferido. A seguir cria um percurso de obstáculos para o gato pular. Agora o Igui é o meu neto. Saltando de um lado para outro sobre os terríveis obstáculos. Vejo apenas pedaços de pernas e braços focalizados pelo celular. Ele exige aplausos para suas façanhas. Eu do lado de cá, bato palmas, grito como uma torcida bem inflamada com seu ídolo.

- “Vovó, agora vou dar saltos olímpicos na piscina! Olha!” Esta foi uma das nossas últimas brincadeiras quando o estive visitando. E Dudu, sobe em cima de uma cama e pula sobre o colchão no chão, sua grande piscina imaginária. Aplaudo o salto olímpico. Dou notas e faço comentários esportivos.

- “Sensacional! Dudu, nosso atleta brasileiro das piscinas olímpicas, dá show de saltos ornamentais e é o melhor da competição. Medalha de ouro para o Brasil. Parabéns Dudu!”

Imagino o celular devidamente encostado em alguma parede assistindo meu neto e suas conquistas em piscinas mundiais.

- “Vovó! Vou te contar uma piada”. Lá vem ele já mudando para outra brincadeira.

- “Então conta. Estou ouvindo” respondo logo para não perder o entusiasmo dele.

- “O que acontece com um pintinho que não tem ‘fiofor’ quando ele peida?”

- “Que é isso menino?!!” Nem imagino. E acrescento: “que dó!”

- “Vovó, ele explode uai” e logo escuto sua risada, mas ainda sem vê-lo.

Nesse momento escuto o pai dele, meu filho, lhe falando: “chama ela de ‘Bufufuda’”.

-” Vovó, você é uma bufufuda” fala ele entre risos, só para ouvir minha resposta que vem a seguir:

- “Eu não! Bufufada é a sua avó, menino.” Respondo com voz lenta e impostada.

_ “Bufufuda é você, vovó”

Então me deixa no vácuo do celular, como diz os jovens de hoje, e vai para outro espaço da casa.

Nesta hora meu filho pega o celular do chão e, numa cara de cansaço, me responde quando pergunto como está:

- “Tô bem não, mãe.”

Devo lembrar que meu filho é um grande idealista, ativista social, estudioso, doutorando em filosofia, graduado em RI (Relações Internacionais), graduado e mestre em filosofia. Atualmente selecionado como professor de filosofia num Instituto Federal. Descobriu-se como professor e tem dedicado muito no ensinamento do pensar aos adolescentes. E esses adolescentes tem dado suas contrapartidas de modos especiais.

Mas meu filho tem sentido na pele o desastre das políticas estadual e federal atuais. Parece que ele tem carregado nas costas toda a fome e miséria que o povo brasileiro tem enfrentado.

- “Mãe, vivemos numa democracia e veja onde ela nos levou...” Continuou discorrendo sobre nosso momento de “desgovernança” com muita propriedade e discernimento.

Teria dito ele, não exatamente assim, mas falou com muita tristeza e desesperança sobre suas opiniões acerca dos rumos que nossa jovem democracia tem tomado.

Tenho um enorme orgulho dos meus filhos, das suas opiniões, dos seus estudos e de nossas discussões. Tenho certeza que, não sei como, consegui transmitir para eles as posições político-sociais que sempre defendi.

- “Escreva sobre tudo isto que você está me dizendo. Não sofra tanto”, disse a ele.

Espero que ele consiga “sublimar” tudo isto através das palavras também escritas e através das suas aulas aos jovens mineiros.

Finalizo plagiando nosso maravilhoso Gonzaguinha:

“Eu fico com a pureza das respostas das crianças” e peço ao meu filho, tão desiludido, que “Não tenha a vergonha de ser feliz e que sempre cante a beleza de ser um eterno aprendiz”



Maria do Rosário Nogueira Rivelli

Fotografia: "As cores dos entardeceres no Funil -1" (arquivo pessoal)

24/10/2021

sábado, 9 de outubro de 2021

Mini conto



(Delicadezas em tempos de Coronavírus- LIX)



Ele se foi. Não disse palavras. Escreveu-as numa única frase e enviou a carta. Ele sendo o sujeito da frase, um único verbo, um predicado (nominal, verbal ou verbo nominal?) e um advérbio de modo.

Ela leu a frase. Entendeu a despedida. Então chorou. Morreu louca.


07/10/2021 Dia de N. Sra do Rosário

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Crônica: No meio da estrada tinha um homem

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - LVIII)



Era de manhã, início de setembro. Já não me lembro mais para onde estava indo. Seria para minha atividade física? Ou seria para meu trabalho? Nada vem ao caso.

Vem ao caso dizer que, lamentavelmente, a grande maioria da malha rodoviária estadual foi construída sem levar em conta o trânsito de pedestres que moram nas regiões rurais ou mesmo aqueles que gostam de caminhar pelas estradas. Eu mesma sempre caminhei por elas. Entretanto tive o privilégio de caminhar por estradas de terra nos interiores dos interiores das Minas Gerais.

Importante lembrar que nosso estado é conhecido em todo o Brasil por suas montanhas fazendo com que as estradas fiquem com muitas curvas perigosas.

Pois bem, dito isto volto aos pensamentos que me acometeram logo após meus olhos me convocarem para uma cena nada incomum. Um homem muito alto, negro retinto, como me ensinou meu filho ao contar-lhe o acaso, muito magro, barba crescida, encaracolada, tufos embranquecidos misturados com tufos pretos, cabelos do mesmo colorido e rente à cabeça. Usava camisa e calça comprida em tons azuis. Enquanto meu carro aproximava, ele olhou para trás e nele li um pedido de carona. Desconsiderei o pedido. Ao passar por ele, vi que ele estava de mão dada a um menino que lhe chegava à cintura. Um filho? Um neto? A criança estava do lado de dentro. Exatamente como deve ser para evitar atropelamentos com a distração dos motoristas, dos acompanhantes ou das crianças.

A partir de então meus pensamentos ganharam asas e lá se foram a me levarem junto. O que teria me chamado a atenção numa cena tão corriqueira na beira das estradas asfaltadas? Talvez a cor tão negra do homem. Talvez o escancaramento das diferenças sociais. Quem sabe o biótipo do homem: tão alto e magro. Seria um dos muitos moradores do acampamento Pátria Livre do outro lado do Rio? Seria minha desconsideração no imaginado pedido de carona? Houve um tempo, na minha juventude, quando eu só viajava de carona. Hoje “os protocolos sociais e clínicos” me orientam a não dar caronas.

Foi então que me vieram, de uma só vez, todas as respostas. E elas chegaram através de uma única palavra ao me lembrar do personagem Tom, do filme infantil “Aristogatas”. Um gato de rua, sem eira nem beira, que, tentando seduzir uma “aristogata” e seus três filhotes, usa todo seu charme, com elegância e criatividade. Obviamente que ele acaba conquistando a bela gata e seus filhotes.

O olhar do homem cruzando com o meu, em menos de um segundo, me demonstrou altivez. É isto. Altivez.

Fiquei pensando que efeitos trariam para aquela criança o fato de ser conduzida com tanta altivez. Com certeza ali estava uma criança segura, feliz e altiva tanto quanto aquele que lhe dava a mão.

Envergonhada na minha condição social acelerei meu carro enquanto meus pensamentos continuavam no homem com a criança tentando equilibrar na beira do asfalto para não serem atropelados.

Mais uma vez me veio a discussão filosófica dos dois modos básicos de estar no mundo: o modo “ter” e o modo “ser”.

Não se compra altivez.



Fotografias: MG 040, trecho bem próximo da cena relatada.

Maria do Rosário N. Rivelli

13/09/2021

sábado, 28 de agosto de 2021

Crônica: As peripécias da Vovó em sua viagem.

 (Delicadezas em tempos de Coronavíurus- LVII)






O aniversário da “menor filha”, como ela se referia à filha mais nova, estava chegando e ela ainda não decidira ir ou não ao interior do estado de São Paulo para abraçar a “menina”.

- "Em trem que avoa e afunda eu não vou", era ela argumentando e resmungando com a filha do meio que ficara encarregada de comprar as passagens. Na verdade, a vovó queria fazer uma surpresa para a filha. Embora um pouco receosa por viajar sozinha uma vez que vinha estando meio aperrengada.

- “Eu vou de ônibus leito. Vou dormindo.” Decidiu por fim. Sempre gostava de fazer suas viagens a noite.

Passagens compradas, arrumou sua mala, uma muda de roupas por dia. Um vestido bonito para abraçar a filha no dia de seus anos. E mais tudo que uma vovó precisa. Comprou um presente para a aniversariante, comprou os queijos que o irmão tanto gosta, ajeitou sua bolsinha de viagem e lá se foi a idosa.

O filho mais velho levou-a à rodoviária, o netinho foi junto, a filha do meio também, afinal a mãe não andando bem de saúde, os cuidados e carinho se faziam necessários.

Toda empoderada e empoleirada e a vovó tremeu nas pernas ao entrar naquele “Cometa” gigante. Procurou sua poltrona-leito número 61. A referida já estava ocupada por outra idosa tão desorientada quanto a nossa vovó. Um gentil jovem sentado ao lado se ofereceu para “dar uma olhadinha na passagem” quando a filha desta última, preocupada também com a mãe nessas viagens, entrou no apertado corredor e consertou o engano.

Vovó entrou, não sem alguma dificuldade, sentou ao lado do jovem que logo ajeitou uma parte da poltrona que estava acoplada na traseira da poltrona da frente. Manobra feita e sua poltrona transformou-se numa cama. Vovó só olhava. 
“Então é pra isto que esse negócio servia?” Lembrou da última vez que fez a mesma viagem naqueles ônibus cor de rosa, gigantes também, chamados Buser, que para ela pareciam coisas da boneca Barbie.

Naquela viagem, com passagens mais baratas, havia comentado, indignada com as filhas, que as poltronas eram convencionais e suas pernas ficaram dependuradas, um verdadeiro sacrifício para ela, uma vez que só havia um “escorregador” para apoiá-las. Agora descobriu que “aquele escorregador” exigia uma técnica para se transformar numa poltrona-leito. 

A seguir, resignada, deitada e aconchegada ao travesseiro oferecido junto com uma manta, lá se foi ela.

Mas a vovó nem esperou descer a serra de Igarapé. Dormiu antes. Já havia avisado ao jovem companheiro que, caso roncasse, era para acordá-la. Ele só apontou para seu fone devidamente colocado nos seus ouvidos. E um sorriso dele aliviou a culpa antecipada pelos possíveis e indecentes roncos.

Não acordou na primeira parada. Aquela bem chique e modernosa, na cidade de Oliveira, no sul das Minas Gerais. Mas um despertador infalível acordou-a mais a frente. Sua bexiga. O terrível incômodo do líquido amarelado ultrapassando a capacidade volumétrica da bexiga junto à flacidez dos músculos perineais, deixaram nossa vovó acordada e inquieta. "Ainda bem que não existem quebra-molas nesta Fernão Dias senão vou sentir o líquido morno escorrendo por entre minhas pernas." Era ela confabulando consigo mesma. 

Mas, heroicamente, ela suportou até a próxima e última parada. Aquela nada chique nem modernosa. Mas ela nem se importou. Eram meros detalhes para esvaziar sua bexiga. Ainda meio dormindo desceu tateando as poltronas no escuro. Ao sair tentou ler a placa do gigante para não entrar em ônibus errado. Foi ao banheiro. Só então percebeu que havia trazido a enorme manta da poltrona-leito. “E agora?” Pensou ela e continuou: “Como fazer xixi, segurar a bolsa, seu lindo cachecol e o cobertor?”

“Será quando as mulheres arquitetas começarão a desenhar toilettes, cozinhas e quartos? Nunca vi um banheiro decente. Nunca existem cabides e outros confortos indispensáveis para um banheiro feminino? Quiça para homens também”

Mas ela se arranjou. Saiu e quis fazer um lanche. Olhou a lanchonete. Nada lhe seduzia. Entretanto, como boa mineira, optou por café com leite e pão de queijo. Então observou a lanchonete vazia e deu jeito de terminar seu lanche. Ao voltar para o ônibus se perdeu. Não lembrava o número da placa lido ainda sem acordar. Apenas um gigante encostado na plataforma. Belo Horizonte – Campinas eram as letras iluminadas.

“Perdi meu ônibus.” Nem exasperou. Talvez ainda estivesse dormindo. Viu o motorista aproximando. Com sua surdez crescente e a máscara inviabilizando a leitura labial, teve grandes dificuldades para perguntar e ouvir a resposta. Mas, de alguma forma, entendeu ser aquele “seu ônibus”. Entrou catando cavacos. Ajeitou-se. Adormeceu novamente. Acordou na rodoviária da cidade de Sandy e Junior. Vovó gostava muito daquela dupla de irmãos embora preferisse a dupla mais velha dos irmãos, Chitãozinho e Xororó. Ali desceram quase todos os passageiros. Inclusive o jovem do seu lado. Agora podia roncar à vontade. 

Acordou na simpática e exuberante Sorocaba, seu destino dentro daquele turbo.

Arrastou sua mala até a sala de desembarque e logo a “menor filha” ligou. Estava ali com o tio. Foi uma alegria danada. Rever a filha tão longe, no dia de seu aniversário, teria sido o maior presente para si mesma. 

Itapetininga seria seu destino final. Totalmente confortável e muito bem acompanhada. Sabemos que a Vovó adora o seu irmão, sua cunhada, seus sobrinhos e a cidade onde escolheram para viver.

Tendo a certeza de que virara uma idosa de verdade, nossa vovó já pensava na volta, na bexiga cheia, nos roncos apavorantes e nas tantas viagens que ainda desejava fazer.

Entretanto, quando estivesse de volta para casa, seria a hora de restabelecer à sua rotina. Há que se dizer que ela se sente muito bem no seu dia a dia. E ficar em casa com seus livros, com seus pensamentos e com suas estrelas tem sido sua grande viagem.



Nascer do sol em Itapetininga







                                       Por do sol em Itapetininga



Fotografias:  Cristiane Vilhena (aberura)
                              Alda Lúcia Carvalho Rivelli (final)



28/08/2021





sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A foto do ex-presidente Lula

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - LVI)


Esta semana a foto do ex-presidente Lula com sua atual companheira, Janja, em noite de lua cheia, chamou atenção dos internautas por diversos motivos. Fiquei ao lado daqueles comentários que exaltaram sua jovialidade, delicadeza e sensualidade. Ignorei os demais.


Na manhã seguinte o celular me despertou de uma sonho quase real. Eu estava sendo abraçada por um homem tal e qual Lula. Foi muito bom.

Viva a sensualidade dos homens e mulheres que tem ideais de justiça social, de uma nação soberana e de um povo sem miséria.

26/08/2021

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Lançamento virtual "Olhares Clínicos"

 






Em tempos de destemperanças, é preciso bordar poesias.

Gostaria de apresentar nosso livro, “Olhares Clínicos”, uma coletânea dos escritos de sete colegas que se reencontraram depois de trinta anos de formados e se identificaram na literatura e no humanismo hipocrático da prática médica.

“Olhares Clínicos" traz aquilo que, de cada um, transborda da alma.

O livro foi lançado dia 18 de outubro de 2019 em Juiz de Fora, cidade onde o grupo se formou pela UFJF em 1981. A seguir, seria lançado nas cidades onde cada colega escritor reside atualmente. Entretanto a chegada da Pandemia inviabilizou nosso projeto. 

Hoje ouso lançá-lo virtualmente. Informo que o valor arrecadado será doado para a Casa dos Amigos São Vicente de Paula, na pequena cidade de Brás Pires (MG), conforme decidido pelos autores.

Valor (incluindo frete): *R$40,00*.

Quem se interessar pelo livro, entrar em contato comigo no particular, com mensagem de texto, pelo WhatsApp:  (31) 996126423

 Maria do Rosário Rivelli

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Primeira Oficina de Agosto

 


                     


Primeira oficina de agosto 2021

Abertura: Você teme o mês de agosto? Sim. Não. Por quê?

Resposta: Não temo o mês de agosto. Ao contrário, amo este mês tão cheio de mistérios e enigmas. Tudo nele vem montado nos ventos. Às vezes os ventos, apaixonados pelas brisas, nos trazem sussurros de amores.


Alongamento -1


Os Moinhos de vento sempre me encantaram. A descoberta da energia produzida por eles trouxe grandes benefícios para a humanidade. A misteriosa força dos ventos que os povos dos países baixos transformaram em sobrevivência contra as impiedosas marés do norte.

Entretanto é em Dom Quixote onde mais me inspiro nos "seus moinhos de vento". Ao enfrentá-los como seus inimigos internos, Dom Quixote, na verdade mata os horrores dilacerantes efetuados pelo amor à Dulcineia.

Sou como os ventos. Ora eles me destroem com sua fúria, ora eles me trazem vida com suas sementes.


Alongamento - 2
As cortinas de seda sempre enfeitaram as casas das madames. Eu adorava entrar naquelas casas para montar nos ventos e descobrir todos os segredos daquelas casas.


Alongamento - 3

Soltar papagaios sempre foi coisas de meninos. Meninas decentes não podiam fazer aquilo. Era prazer demais para uma menina que iria virar mulher. Então ela ficava vendo os papagaios nos ares do desbarrancado e sonhava com as mãos dos meninos bulinando as linhas do seu corpo.



Alongamento – 4


Ventos de agosto

O meu primeiro amor o vento levou. O vento levou o meu primeiro amor. Desde então viajo nos redemoinhos a procura dele. Um tal vento leste me disse que ele montou numa nuvem e foi para os Andes. Lá ele vivia brincando nas águas altas e geladas do lago Titicaca. Outro vento me segredou que, desiludido na vida, ele foi viver com os maoris numa exuberante ilha da Nova Zelândia. E hoje ele vive nas selvas com uma mulher encantadora de baleias.

Continuo procurando o meu primeiro amor. Agora menos que antes. Nos meses de agosto fico atenta. Vai que um vento forte me pegue desatenta e me leva prá lá. Não quero ver meu amor assim bem casado.

Outro dia. Ainda em agosto, tive o desgosto de saber que ele virou pai. Nasceu uma menina. Meu amor, disseram, endoideceu. A menina tinha os meus olhos e a minha pele. Acabaram me contando que ele entrou nos olhos dela. Perdeu-se de vez no olhar.

Atualmente ele vive pedindo aos deuses das matas neozelandesas que o transformem numa tempestade marítima e o devolvam para o seu primeiro amor.
Estou a esperar.


Maria do Rosário Nogueira Rivelli

15/08/2021

Observação: Sempre em gratidão com o poeta 
Ronald Claver, meu mestre das escritas.










sábado, 31 de julho de 2021

Crônica: Abelhas, andorinhas, tico-tico-rei e rolinhas

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LV)

Sempre fui alérgica a picadas de insetos. Com os anos passados a pele muito branca deu de ficar ainda mais susceptível a tais reações. No inverno são blusas e meias a me protegerem das picadas. No verão é um sofrimento só. Repelentes servem de perfumes para atrair os danados. Cremes antialérgicos fazem parte das várias compras nas farmácias.


E vejam o que ouvi, recentemente de um colega, sobre sua mais nova aquisição. Uma colmeia de abelhas nativas. Não contente com a novidade contada, insistiu para que eu também criasse tais abelhas no meu sítio.

- “Sou alérgica a picadas. Imagine picadas de abelhas!” Retruquei com meu colega.

- “Elas não têm ferrões. São nativas. Não são as africanas.” Era ele de novo.

E o assunto continuou com as abelhas já zunindo em torno de mim.

Lembrei de um dia, já bem distante no tempo, durante um almoço num restaurante campestre, quando eu ainda tomava refrigerantes. Ao beber o resto de Coca-Cola deixada na latinha pelo meu filho fui picada por uma abelha africana que se negou a dividir o resto comigo. A danada estava lá dentro. O ferrão alojou na ponta da minha língua. Não fosse a presença de um colega médico e a pinça na bolsa de uma convidada e eu teria ido parar no hospital. Imediatamente o rosto ganhou o aspecto de uma melancia. Vermelha e gigante. Comprimidos de antialérgicos apareceram de várias bolsas por ali. O proprietário do restaurante veio em auxílio e me encaminhou para uma salinha de primeiros socorros.

Eu e as abelhas nunca nos demos bem. Elas para lá e eu para cá.

Entretanto aconteceu um imprevisto por aqui. A casinha charmosa onde coloco diversos grãos misturados com fubá grosso para atrair os pássaros da região, foi dominada pelas abelhas. O jardineiro alertou: “a senhora não pode colocar fubá. Tem que ser canjiquinha. Vem cá para senhora ver as abelhas carregando o fubá nas patas”. Lá fui eu, corajosamente, ver a cena. Dezenas de abelhas, operárias, transportando o fubá nas patinhas. Nenhuma sobra para os passarinhos que não se aventuravam a disputarem a comida. Teriam medo, como eu, dos ferrões das africanas?

Outro dia fui surpreendida com um tico-tico- rei bicando o chão, debaixo da casinha. As rolinhas levantam suas asas e rodam a baiana. Conseguem subtrair das voadoras alguns grãos. Por alguns segundos elas espantam as ditas. Os canários da terra sumiram. E hoje, enquanto fico defronte a este escrevinhador digital, vejo andorinhas dividindo a bandeja do fubá com as abelhas. Corajosas estas avezinhas ligeiras.

Ainda com muito receio delas, já estou me acostumando com essas tais. Coloco a mistura com elas farejando em volta. E não me picam. Arredam para receber o manjar.

Será que elas já me conhecem? Ou será que meu sangue já não é tão nobre?

Por essas e outras já avisei para os vizinhos:

“Caso alguma delas resolva me estranhar, corram comigo para o PA senão poderei morrer sem ar.”


Ilustração: desenho feito por meu neto, Eduardo, de cinco anos.

P.S.: E, enquanto organizo esta publicação, minhas mãos foram picadas pelos tais mosquitinhos invisíveis. Já estão vermelhas e com pruridos intensos. Oh! My God


30/07/2021



O Carcará

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LIV)

 





O Carcará

Lá estava ele. Pomposo. Equilibrando na estaca da cerca. Seus olhos de águia e seu faro de cão não perderiam a suposta presa.

- “Vejam lá o carcará! Ele é muito bonito”. Assim gritou o homem que o mostrava ao filho pequeno.

Grande e imponente carcará – pensou sem dizê-lo ao menino.

- “Ele está procurando sua namorada”. Respondeu o menino.

E o carcará, sem dar bolas para pai e filho, voou pela campina seca do inverno. Com certeza encontrou uma apetitosa presa. Um rato. Um preá. Um ninho cheio de filhotes de canária do campo. Sem culpa ou piedade o carcará devorará a todos que cruzar seu olhar.

Assim são os predadores, sejam eles animais irracionais ou sejam homens e mulheres à caça de outros limites sem lei. O prazer subjugando a honra e a lei.

- Pai, acho que o carcará encontrou sua namorada. Agora, vão viver felizes para sempre.

25/07/2021






(Tarde de domingo com o filho, a nora e o neto de cinco anos no Campus da UFSJ - Ouro Branco - MG)


Fotografia: "Não é um carcará, mãe" informou meu filho para minha tristeza.

sábado, 17 de julho de 2021

Devaneios - 1

 

“De que pode servir calar, quem cala nunca se há de falar, o que se sente? Sempre se há de sentir, o que se fala!”. 


Gregório de Matos foi poeta brasileiro. A figura mais importante da época colonial. O maior poeta do barroco brasileiro. Por suas críticas à sociedade baiana, recebeu o apelido de "Boca do Inferno" .Gregório de Matos nasceu em Salvador, Bahia, no dia 23 de dezembro de 1636. Filho de pai português e mãe baiana, frequentou o Colégio da Companhia de Jesus. Foi estudar na Universidade de Coimbra. 

Em 1661 já está casado e formado em Direito. Neste mesmo ano, é nomeado juiz em Alcácer do Sal, no Alentejo. Volta à Salvador, nomeado procurador da cidade, junto a corte portuguesa. Fica viúvo e casa-se novamente. Além de grande poeta, fez também um trágico retrato da vida e da cultura baiana do século XVII. Como não havia imprensa no Brasil Colônia, seus poemas tiveram circulação escrita e oral. 

Sua produção poética pode ser dividida em três linhas: satírica, lírica e religiosa. Seus poemas líricos e religiosos revelam influência do barroco espanhol. Sua poesia satírica é do tipo que ataca sem compostura, toda a sociedade baiana, da qual ele se sentia um censor e uma vítima. Por suas críticas ferinas, recebeu o apelido de "Boca do Inferno".

Em 1694, por suas críticas violentas e debochadas às autoridades da Bahia, é degredado para Angola. Em 1695 recebe permissão para voltar ao Brasil, mas não para a Bahia. Vai viver na cidade do Recife. Gregório de Matos Guerra morreu no Recife, no dia 26 de novembro de 1696.

Gregório de Matos não publicou nada em vida. A totalidade de sua obra se manteve inédita, até quando Afrânio Peixoto a reuniu em 6 volumes, publicados no Rio de Janeiro, pela Academia Brasileira de Letras, entre 1923 e 1933, sob o título de "Obras de Gregório de Matos".


Devaneio 1: 

"Minha palavra vem do outro e a mim cabe a dor em não dizê-la."




sexta-feira, 2 de julho de 2021

Conto: Um homem e uma mulher.

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - LIII)


             


- Ela me acompanhava a dois passos atrás como se não houvesse me beijado na boca logo na esquina de cima. Resolvi mudar de rumo no final daquela tarde. Então dobrei a próxima esquina a esquerda. Subi a ladeira. Cai na praça Tiradentes. Ela atrás de mim. Atravessei vagarosamente dando tempo para que ela continuasse a me seguir. Desci em direção ao quarto alugado nos fundos da República dos Amores de Marília. No caminho passei no armazém do Sô Tonico. Comprei, na caderneta, duzentos gramas de mortadela, pão sovado e um pacote de Tang de pêssego, meu sabor preferido. Seria um lanche improvisado caso a moça resolvesse ficar comigo. Não a vi ao sair do armazém. Pouco depois lá estava ela. Logo atrás. Tinha desaparecido por alguns minutos. Não sei se eu estava ou não gostando daquele jogo de esconde-e-aparece. Mas, certamente, gostaria muito que ela me acompanhasse até o quarto.

Foi assim. Ela entrou logo depois de mim. Atravessamos todo o corredor lateral da casa até minha suíte barroca. Ofereci uma cadeira junto a uma pequena escrivaninha naquele espaço solitário que mantinha para imprevistos. Ela sentou com naturalidade. Ficou me observando. Preparei o suco com água mineral do frigobar. Abri o embrulho dos pães e da mortadela. Ela continuava calada. Eu também. Fizemos nosso lanche como velhos conhecidos.

De repente perguntei:

- O que você quer de mim? Quem é você? Por acaso já nos conhecemos? Confesso que tenho gostado de saber que uma bela mulher anda me perseguindo por essas ruas e ladeiras.

Queria saber de onde ela havia surgido. Na minha ânsia de controlar a situação quase tropeçava nas minhas palavras. Sentia desesperadamente que, se continuasse o interrogatório, a perderia. E eu não queria perde-la. Ela já tomava conta dos meus pensamentos e dos meus desejos.

Roberto continuava matutando e conversando consigo mesmo. Estava em Ouro Preto havia mais de vinte anos. Nunca vira aquela mulher por lá. Era professor de introdução à filosofia no IEF da cidade. Conhecia quase todos os alunos e alunas. Não era uma delas. Mesmo porque ela aparentava ter mais de trinta anos.

Chegou a pensar que, na sua triste solidão após desfeito seu casamento de quase quinze anos, algum amigo quisesse ajudar ajeitando-lhe uma companhia.

Os pensamentos faziam festa na sua cabeça. Ele passou a contar os dias para esperar por ela.

Um dia, estando no intervalo das aulas, pegou o celular e viu uma chamada não atendida. Um número desconhecido. Não deu atenção. No meio da aula, veio a dúvida.

- Seria ela? Mas não trocamos nossos contatos.

Logo após a aula retornou à ligação. Era ela. Jamais deixaria de reconhecer a voz pausada e suave daquela mulher.

- Meu carro estragou na chegada da cidade. Poderia me ajudar?

Naquela noite conversaram muito. Estava casada. Tinha dois filhos. Vivia na capital. Conhecera-o numa videoconferência quando foi convidado a falar sobre Alberto Camus. Ela já havia lido dois de seus intrigantes livros. Queria saber mais acerca do escritor franco-argelino premiado com o Nobel de Literatura. Não perderia a conferência.

Através da tela sentiu algo no professor. Queria conhece-lo. Conversar com ele. Procurou informações. Encontrou-as poucas. Não desanimou. No final de alguns meses, apaixonada com o desconhecido, foi encontra-lo vagando pelas ruas ouro-pretanas.

Naquela noite ela o convidou para dormirem no hotel onde já havia feito as reservas. Uma luxuosa suíte os aguardava. Uma fina garrafa de champanhe. Jantar sofisticado. Luz de velas. Ela havia preparado tudo com o apoio da recepção do hotel.

Mais tarde, enlevados pela bebida, ela beijou-lhe a fronte. Acariciou lhe os braços. Suas mãos brancas deslizaram pelo corpo negro de Roberto. Isto o deixou sem palavras. Fechou os olhos e sentiu. Apenas sentiu.

No meio da madrugada ela partiu. Roberto nem percebeu que ela havia ido.

Mudou o número do seu celular.

Ainda hoje Roberto sonha com aquela mulher que levou embora seu coração.

Uma alma solitária caminha pelas ruelas de Ouro Preto.



Fotografia: Arquivo pessoal - Café Havana em Haia (Holanda) 2018

01/07/2021









terça-feira, 29 de junho de 2021

Conto: O menino que descobriu sua cor.

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LII)


Ele era “de menor”. O pai conseguiu o emprego. Não exigiram experiência. A construção do viaduto sobre a estrada que ligava a capital mineira ao Rio de Janeiro se dava bem próximo a região onde moravam. Foi contratado como armador. Aprendera rápido a envergar os cabos de aço. Não tinha direito à alimentação. O menino acompanhava o pai ainda antes do sol nascer por aquelas redondezas. Davam-se as mãos. Iam conversando. O pai contando sobre o jeito de dobrar os arames grossos para amarrar os vergalhões. “A gente faz uma forma com pregos grandes. Pega a ferramenta com uma mão e com a outra mão a gente segura bem forte”. O filho escutava atento. Às vezes perguntava alguma coisa para engrandecer o trabalho dele. Voltava sozinho para casa imaginando tudo aquilo na sua cabeça.

Agora era a vez de ajudar a mãe. Buscava água fresquinha na bica no final do terreno, “naquela ribanceira”. Era para colocar na bile de barro e fazer o almoço. Logo o menino ia fazer seus deveres da escola.

- Tá na hora de se arrumar. Vem comer meu filho. Lave a cara. Troque de roupa. Pegue seus cadernos. Passe antes no canteiro de obras e entregue a marmita para seu pai. Diz pra professora que na semana que vem você leva a prenda para a coroação de Nossa Senhora.

Era a mãe e sua ladainha de todo dia.

Betinho, o quarto dos cinco filhos, não sentia que aquilo fosse uma tarefa difícil. Amava ver seu pai torcendo e retorcendo aqueles cabos de arames. Seus olhos brilhavam observando a força dos braços dele.

- Quantas formas você fez hoje pai? Mais que ontem? Umas duzentas?

O pai mostrava as mãos dormentes pelas câimbras e dava um sorriso. Recebia a marmita. Colocava sob uma areia quente bem próximo de onde preparava suas formas quadradas. Dois pratos esmaltados. Um tampando o outro. Bem amarrados com um pano colorido. Daquele jeito da roça. Feijão, arroz, quiabo, angu e pedaços de carne de porco de panela. Ele saboreava aquela comida como um manjar dos deuses.

-Bença pai. Vou pra escola.

- Deus te abençoe meu filho.

E o menino rumava por aqueles caminhos de terra. Encontrava com os três irmãos que voltavam do quarto ano. As turmas eram divididas de acordo com as idades. Betinho, estava sendo alfabetizado. Tinha quase oito anos. E, esperto feito ele só, logo aprenderia a ler.

Naquele dia uma colega lhe chamou de “preto macaco”. Ele abaixou a cabeça. Chorou para dentro. Ninguém veio em seu socorro. Voltou para casa sem palavras. Nem quis passar para ter o pai como companhia na volta do trabalho. Justo aquela menina de quem tanto gostava havia lhe desfeiteado. Dormiu pouco aquela noite. Sonhou com a sua cor. Nunca havia pensado que a cor de sua pele fizesse alguma diferença.

A mãe percebeu que algo havia acontecido com o menino.

-"Foi nada não mãe..." Respondeu Betinho quando interrogado sobre o olhar perdido e a cabeça abaixada.

No dia seguinte, após entregar a marmita, se escondeu atrás da moita daquele gigantesco bambuzal. Coberto de vergonha por ali ficou. Os irmãos falaram pra mãe que não toparam com Betinho pela estrada. Preocupada, ela saiu a procura-lo. Não foi difícil encontrar o menino. Ele chorava cabisbaixo sentado sob a sombra.

- Quê que o ocê tá fazendo aí, meu filho?

- Mãe, eu sou preto macaco? Perguntou entre soluços.

- Desembuche meu filho. O que aconteceu?

- Foi a Rosa, filha da dona Zinha. Ela me chamou de preto macaco. Todos os meus colegas ficaram rindo de mim.

A mãe o abraçou. Assim ficaram por alguns minutos. A mãe era uma mulher de cor preta, sacudida, dona de si, dona da casa, dona da maternidade.

- Vou na escola amanhã. Vou queixar com a diretora. 

E explicou: 

- Somos pretos mesmo meu filho. Nossos antepassados vieram para cá como escravos dos ricos. Éramos considerados como coisas dos fazendeiros. Nem fomos tratados como gente. Diziam que não tínhamos almas como os brancos.

E continuou:

- Mas, preste atenção: não é a cor da pele que diz quem somos e, diante de Deus, somos todos iguais. Levante a cabeça. Enxugue essas lágrimas e venha para casa. Amanhã você volta para a escola. Quando a Rosa aparecer, sorria para ela. E seja o melhor aluno da sala.

Abraçou-o novamente. Juntos voltaram para a casa.

E a rotina voltou naquela casa cheia de crianças e de muito trabalho.

Betinho não faltava nem um diazinho. Levava a marmita do pai e ficava olhando aquele viaduto tomando forma de ponte lá nas alturas das nuvens.

- Pai, para onde vai esta estrada?

- Lá em cima tem uma linha de trem. Ouvi dizer por aí que os vagões vão levar o minério tirado das montanhas para o Rio de Janeiro. De lá, eles vão de navio para a Europa e a China.

Betinho não perdia uma palavra. Ficava imaginando tudo aquilo que o pai dizia. Embora sua cor ainda causasse dor e vergonha, tomou rumo de estudar muito. No recreio ia para a biblioteca. Pedia ajuda na escolha dos livros. Queria saber sobre a vinda dos negros africanos para o Brasil. A bibliotecária viu nele o interesse e passou a contar-lhe várias histórias daqueles tempos.

Tudo isto despertou no menino perguntas que a mãe já não sabia mais como responder.

- Pergunte na escola meu filho. É lá que as professoras podem te responder tanta pergunta.

O tempo passou. Depois de dois anos o viaduto ficou pronto. Uma maravilha da arquitetura e da engenharia de pontes e viadutos. O pai se viu orgulhoso e desempregado.

Mas, para surpresa de todos, o encarregado avaliou como ótimo o desempenho, a pontualidade e o caráter do inexperiente trabalhador braçal. Chamou-o para integrar a equipe que iria para outra obra. Desta vez no nordeste do Brasil.

A esposa, depois de muito pensar e chorar, decidiu acompanhar o marido. Teriam casa e escola para os filhos.

A história não acabou aqui. Outro dia continuo com o retorno da família após a morte súbita daquele pai de família.

 

26/06/2021

 

 

 















































sexta-feira, 18 de junho de 2021

Conto: O Canário

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LI)




Da pequena oficina nos fundos da casa seu olhar fora chamado a ver o canário bicando a porta de vidro da sua casa bem ao lado. Entendeu a sujeira na soleira com as pequeninas fezes do passarinho. Largou a ripa de madeira que estava lixando e acompanhou o voo do coroinha. Agora, equilibrando na porta do carro bem defronte ao retrovisor, dava inúmeras bicadas no espelho.

 A esposa comentou “acho que ele está fazendo ninho por aqui”. Procurou algum indício de ninho ao redor do telhado. Procurou na garagem. Nada. A ave apresentava-se desesperada. O que teria acontecido? Será que algum tucano bicudo roubou sua companheira? Talvez tenha destruído seu ninho ou quem sabe até mesmo devorado seus filhotes? Ou seria uma dessas corujas traiçoeiras? Assim pensava Carlos que não tirava os olhos do chapinha. Este continuava voando de um a outro vidro. Agora entrou na oficina. Nem mesmo teve medo do homem que poderia engaiola-lo. Pousou na prateleira junto aos toquinhos de madeira, arames galvanizados e ferramentas. Olhou ao redor. Voou novamente para o retrovisor do carro. 

A seguir Carlos escutou o reclame da esposa, “veja seu passarinho bicando o vidro da porta do forno!” Era ele de novo. Agora descobrira outra fonte do falso reflexo da sua amada. Na porta de vidro daquele tão desejado forno do fogão a lenha da esposa de Carlos. E lá vem o marido preocupado com o bicar incessante do cabeça-de-fogo. Carlos começou a ficar desinquieto com o que ele chamou de angústia do canário. Nem conseguia mais se concentrar na bela e sofisticada gaiola que construía.

- Você vai trabalhar ou vai continuar tomando conta do canário? Interpelou a esposa.

- Deixe esse passarinho pra lá. Vida de passarinho é vida de passarinho. Cuida da sua vida.

O homem engoliu um seco com a insensibilidade da mulher. Lembrou do seu desespero quando Rosa mudou pra cidade grande. Rosa fora seu primeiro amor. Por ela teria perdido a cabeça não fosse a mãe que dera conselho de aquietar seu coração. Rosa não era moça de viver em cidade pequena. Queria voar. Não valia a pena. Era moça diferente. Queria desfrutar outras diversões.

Agora, mais uma vez, Carlos sentia toda aquela dor de quando perdera Rosa para o mundo. Queria também consolar aquele canário-do-campo. Dizer pra ela se tranquilizar. O tempo daria um jeito de lhe trazer de novo a vontade de viver. 

Será que esses canários são fieis e só casam uma vez na vida como aquelas galinhas d'Angola e as maritacas? Seu pai dizia que aquelas espécies só acasalavam uma vez. Ficou a pensar no pobre passarinho viúvo.

De repente notou que já era tardinha e o chapinha dourado continuava na sua busca do que, provavelmente, havia perdido.

- Como ele ainda continua nesse alvoroço? Onde arranjou tanta força física para seu desespero? Continuava pensando.

Da mesa do jantar ainda podia ver os sobrevoos do pássaro bem próximo dele. A porta do seu Escort já estava toda suja das fezes do coitado.

Carlos foi dormir pensando ora na Rosa, ora no canário, ora na esposa, ora nos filhos que já haviam voado para outras terras.

Na manhã seguinte acordou com sons intermitentes no vidro da janela do seu quarto. Nem atinou que pudesse ser as bicadas do macho buscando sua fêmea. Mas lá estava o canário. Entretanto, se Carlos não atinou para as bicadas na janela, atinou para outro fato. Naquele instante seu coração apertou. Fora ele o causador de todo o desatino do bichinho. Ele havia cortado a grande árvore de sibipiruna que não permitia a chegada do sol na porta da cozinha, sujava todo o chão com aquelas folhinhas esvoaçantes e deixava as calhas sempre entupidas.

Nem percebera que ali poderia estar a canária chocando seus filhotes.

Atordoado com a dúvida Carlos levantou e procurou o passarinho.

Foi então que a esposa ouviu soluços e uma conversa muito estranha do seu marido. “Esse homem tá endoidecendo” logo pensou ela.

Carlos aproximou do amarelinho, agora bicando o vidro da porta da sala, pediu desculpas. Soluçou. Lágrimas brotaram de seus olhos. Rosa. Sempre a Rosa. Os dois machos choraram as fêmeas perdidas. E o canário chorou muito mais. Chorou os filhotes que não chegaram a nascer. 

A partir dai Carlos decidiu nunca mais construir gaiolas. E, assim como ele em sua doce lembrança pelo amor de Rosa, o canarinho continuava a bicar todos os vidros da casa. 

A tristeza seria compartilhada por todos os amores perdidos.





Fotos: Arquivo n. 391352200  - Adobe Stock

Observação:

Canário-da-terra

O canário-da-terra (Sicalis flaveola), também é conhecido como canário-da-horta, canário-da-telha (Santa Catarina), canário-do-campo, chapinha (Minas Gerais), canário-do-chão (Bahia), canário-do-reino (Ceará), coroinha e cabeça-de-fogo, é uma ave admirada pelo canto forte e estalado e por isso é frequentemente aprisionado como ave de cativeiro (está entre as 10 mais apreendidas, segundo o IBAMA), mesmo tal ato sendo considerado crime federal pela Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Graças à ação das autoridades e da conscientização da população, registros do canário-da-terra vêm se tornando mais frequentes nos últimos anos.
Nome Científico


Seu nome científico significa: do (grego) sikalis, sukallis or sukalis = pequeno; (Latim) flaveola, flaveolus diminutivo de flavus = amarelo. ⇒ Amarelinho.

Fonte:   http://www.wikiaves.com.br/wiki/canario-da-terra

Maria do Rosário Nogueira Rivelli

 

18/06/2021



Comentário do mestre das escritas - Ronald Claver- Poeta e escritor de Belo Horizonte:


"Rivelli, bom diaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Bom começar o domingo te lendo. o dia fica mais bonito e povoado de sábias e deliciosas palavras.

Gostei de tudo, você cada vez melhor. Texto limpo, claro, sensual, surpreendem.

Quem te lê, acha que "escrever" é a coisa mais natural do mundo. A fluidez de suas tramas e enredos nos envolve em uma rede, teia de mil surpresas.

A abertura, as brincadeiras, o poema,as respostas, os homens de preto e ONDE ELA Está são textos para ficarem no caderno de memória e belezuras.

A ave/mulher é pura ficção e de um realismo fantástico que não fica a dever a ninguém, parabéns e continue devagar e sempre, beijos."