(Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LI)
A esposa comentou “acho que ele está fazendo ninho por aqui”. Procurou algum indício de ninho ao redor do telhado. Procurou na garagem. Nada. A ave apresentava-se desesperada. O que teria acontecido? Será que algum tucano bicudo roubou sua companheira? Talvez tenha destruído seu ninho ou quem sabe até mesmo devorado seus filhotes? Ou seria uma dessas corujas traiçoeiras? Assim pensava Carlos que não tirava os olhos do chapinha. Este continuava voando de um a outro vidro. Agora entrou na oficina. Nem mesmo teve medo do homem que poderia engaiola-lo. Pousou na prateleira junto aos toquinhos de madeira, arames galvanizados e ferramentas. Olhou ao redor. Voou novamente para o retrovisor do carro.
A seguir
Carlos escutou o reclame da esposa, “veja seu passarinho bicando o vidro da
porta do forno!” Era ele de novo. Agora descobrira outra fonte do falso reflexo
da sua amada. Na porta de vidro daquele tão desejado forno do fogão a lenha da esposa de Carlos.
E lá vem o marido preocupado com o bicar incessante do cabeça-de-fogo. Carlos começou
a ficar desinquieto com o que ele chamou de angústia do canário. Nem conseguia
mais se concentrar na bela e sofisticada gaiola que construía.
- Você vai trabalhar ou vai continuar
tomando conta do canário? Interpelou a esposa.
- Deixe esse passarinho pra lá. Vida de
passarinho é vida de passarinho. Cuida da sua vida.
O homem engoliu um seco com a
insensibilidade da mulher. Lembrou do seu desespero quando Rosa mudou pra
cidade grande. Rosa fora seu primeiro amor. Por ela teria perdido a cabeça não
fosse a mãe que dera conselho de aquietar seu coração. Rosa não era moça de
viver em cidade pequena. Queria voar. Não valia a pena. Era moça diferente.
Queria desfrutar outras diversões.
Agora, mais uma vez, Carlos sentia toda aquela dor de quando perdera Rosa para o mundo. Queria também consolar aquele canário-do-campo. Dizer pra ela se tranquilizar. O tempo daria um jeito de lhe trazer de novo a vontade de viver.
Será que esses canários são fieis e só casam uma vez na vida como aquelas galinhas d'Angola e as maritacas? Seu pai dizia que aquelas espécies só acasalavam uma vez. Ficou a pensar no pobre passarinho viúvo.
De repente notou que já era tardinha e o
chapinha dourado continuava na sua busca do que, provavelmente, havia perdido.
- Como ele ainda continua nesse
alvoroço? Onde arranjou tanta força física para seu desespero? Continuava
pensando.
Da mesa do jantar ainda podia ver os
sobrevoos do pássaro bem próximo dele. A porta do seu Escort já estava toda
suja das fezes do coitado.
Carlos foi dormir pensando ora na Rosa,
ora no canário, ora na esposa, ora nos filhos que já haviam voado para outras
terras.
Na manhã seguinte acordou com sons
intermitentes no vidro da janela do seu quarto. Nem atinou que pudesse ser as
bicadas do macho buscando sua fêmea. Mas lá estava o canário. Entretanto, se Carlos não atinou para as bicadas na janela, atinou para outro fato. Naquele instante seu coração
apertou. Fora ele o causador de todo o desatino do bichinho. Ele havia cortado a grande árvore de sibipiruna que não permitia a chegada do sol na porta da cozinha, sujava todo o
chão com aquelas folhinhas esvoaçantes e deixava as calhas sempre entupidas.
Nem percebera que ali poderia estar a
canária chocando seus filhotes.
Atordoado com a dúvida Carlos levantou e procurou o
passarinho.
Foi então que a esposa ouviu soluços e
uma conversa muito estranha do seu marido. “Esse homem tá endoidecendo” logo
pensou ela.
Carlos aproximou do amarelinho, agora bicando o vidro da porta da sala, pediu desculpas. Soluçou. Lágrimas brotaram de seus olhos. Rosa. Sempre a Rosa. Os dois machos choraram as fêmeas perdidas. E o canário chorou muito mais. Chorou os filhotes que não chegaram a nascer.
A partir dai Carlos decidiu nunca mais construir gaiolas. E, assim como ele em sua doce lembrança pelo amor de Rosa, o canarinho continuava a bicar todos os vidros da casa.
A tristeza seria compartilhada por todos os amores perdidos.
Fotos: Arquivo n. 391352200 - Adobe Stock
Observação:
Canário-da-terra
O canário-da-terra (Sicalis flaveola), também é conhecido como canário-da-horta, canário-da-telha (Santa Catarina), canário-do-campo, chapinha (Minas Gerais), canário-do-chão (Bahia), canário-do-reino (Ceará), coroinha e cabeça-de-fogo, é uma ave admirada pelo canto forte e estalado e por isso é frequentemente aprisionado como ave de cativeiro (está entre as 10 mais apreendidas, segundo o IBAMA), mesmo tal ato sendo considerado crime federal pela Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). Graças à ação das autoridades e da conscientização da população, registros do canário-da-terra vêm se tornando mais frequentes nos últimos anos.Nome Científico
Seu nome científico significa: do (grego) sikalis, sukallis or sukalis = pequeno; (Latim) flaveola, flaveolus diminutivo de flavus = amarelo. ⇒ Amarelinho.
Maria do Rosário Nogueira Rivelli
18/06/2021
Comentário do mestre das escritas - Ronald Claver- Poeta e escritor de Belo Horizonte:
Bom começar o domingo te lendo. o dia fica mais bonito e povoado de sábias e deliciosas palavras.
Gostei de tudo, você cada vez melhor. Texto limpo, claro, sensual, surpreendem.
Quem te lê, acha que "escrever" é a coisa mais natural do mundo. A fluidez de suas tramas e enredos nos envolve em uma rede, teia de mil surpresas.
A abertura, as brincadeiras, o poema,as respostas, os homens de preto e ONDE ELA Está são textos para ficarem no caderno de memória e belezuras.
A ave/mulher é pura ficção e de um realismo fantástico que não fica a dever a ninguém, parabéns e continue devagar e sempre, beijos."
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