terça-feira, 29 de junho de 2021

Conto: O menino que descobriu sua cor.

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - LII)


Ele era “de menor”. O pai conseguiu o emprego. Não exigiram experiência. A construção do viaduto sobre a estrada que ligava a capital mineira ao Rio de Janeiro se dava bem próximo a região onde moravam. Foi contratado como armador. Aprendera rápido a envergar os cabos de aço. Não tinha direito à alimentação. O menino acompanhava o pai ainda antes do sol nascer por aquelas redondezas. Davam-se as mãos. Iam conversando. O pai contando sobre o jeito de dobrar os arames grossos para amarrar os vergalhões. “A gente faz uma forma com pregos grandes. Pega a ferramenta com uma mão e com a outra mão a gente segura bem forte”. O filho escutava atento. Às vezes perguntava alguma coisa para engrandecer o trabalho dele. Voltava sozinho para casa imaginando tudo aquilo na sua cabeça.

Agora era a vez de ajudar a mãe. Buscava água fresquinha na bica no final do terreno, “naquela ribanceira”. Era para colocar na bile de barro e fazer o almoço. Logo o menino ia fazer seus deveres da escola.

- Tá na hora de se arrumar. Vem comer meu filho. Lave a cara. Troque de roupa. Pegue seus cadernos. Passe antes no canteiro de obras e entregue a marmita para seu pai. Diz pra professora que na semana que vem você leva a prenda para a coroação de Nossa Senhora.

Era a mãe e sua ladainha de todo dia.

Betinho, o quarto dos cinco filhos, não sentia que aquilo fosse uma tarefa difícil. Amava ver seu pai torcendo e retorcendo aqueles cabos de arames. Seus olhos brilhavam observando a força dos braços dele.

- Quantas formas você fez hoje pai? Mais que ontem? Umas duzentas?

O pai mostrava as mãos dormentes pelas câimbras e dava um sorriso. Recebia a marmita. Colocava sob uma areia quente bem próximo de onde preparava suas formas quadradas. Dois pratos esmaltados. Um tampando o outro. Bem amarrados com um pano colorido. Daquele jeito da roça. Feijão, arroz, quiabo, angu e pedaços de carne de porco de panela. Ele saboreava aquela comida como um manjar dos deuses.

-Bença pai. Vou pra escola.

- Deus te abençoe meu filho.

E o menino rumava por aqueles caminhos de terra. Encontrava com os três irmãos que voltavam do quarto ano. As turmas eram divididas de acordo com as idades. Betinho, estava sendo alfabetizado. Tinha quase oito anos. E, esperto feito ele só, logo aprenderia a ler.

Naquele dia uma colega lhe chamou de “preto macaco”. Ele abaixou a cabeça. Chorou para dentro. Ninguém veio em seu socorro. Voltou para casa sem palavras. Nem quis passar para ter o pai como companhia na volta do trabalho. Justo aquela menina de quem tanto gostava havia lhe desfeiteado. Dormiu pouco aquela noite. Sonhou com a sua cor. Nunca havia pensado que a cor de sua pele fizesse alguma diferença.

A mãe percebeu que algo havia acontecido com o menino.

-"Foi nada não mãe..." Respondeu Betinho quando interrogado sobre o olhar perdido e a cabeça abaixada.

No dia seguinte, após entregar a marmita, se escondeu atrás da moita daquele gigantesco bambuzal. Coberto de vergonha por ali ficou. Os irmãos falaram pra mãe que não toparam com Betinho pela estrada. Preocupada, ela saiu a procura-lo. Não foi difícil encontrar o menino. Ele chorava cabisbaixo sentado sob a sombra.

- Quê que o ocê tá fazendo aí, meu filho?

- Mãe, eu sou preto macaco? Perguntou entre soluços.

- Desembuche meu filho. O que aconteceu?

- Foi a Rosa, filha da dona Zinha. Ela me chamou de preto macaco. Todos os meus colegas ficaram rindo de mim.

A mãe o abraçou. Assim ficaram por alguns minutos. A mãe era uma mulher de cor preta, sacudida, dona de si, dona da casa, dona da maternidade.

- Vou na escola amanhã. Vou queixar com a diretora. 

E explicou: 

- Somos pretos mesmo meu filho. Nossos antepassados vieram para cá como escravos dos ricos. Éramos considerados como coisas dos fazendeiros. Nem fomos tratados como gente. Diziam que não tínhamos almas como os brancos.

E continuou:

- Mas, preste atenção: não é a cor da pele que diz quem somos e, diante de Deus, somos todos iguais. Levante a cabeça. Enxugue essas lágrimas e venha para casa. Amanhã você volta para a escola. Quando a Rosa aparecer, sorria para ela. E seja o melhor aluno da sala.

Abraçou-o novamente. Juntos voltaram para a casa.

E a rotina voltou naquela casa cheia de crianças e de muito trabalho.

Betinho não faltava nem um diazinho. Levava a marmita do pai e ficava olhando aquele viaduto tomando forma de ponte lá nas alturas das nuvens.

- Pai, para onde vai esta estrada?

- Lá em cima tem uma linha de trem. Ouvi dizer por aí que os vagões vão levar o minério tirado das montanhas para o Rio de Janeiro. De lá, eles vão de navio para a Europa e a China.

Betinho não perdia uma palavra. Ficava imaginando tudo aquilo que o pai dizia. Embora sua cor ainda causasse dor e vergonha, tomou rumo de estudar muito. No recreio ia para a biblioteca. Pedia ajuda na escolha dos livros. Queria saber sobre a vinda dos negros africanos para o Brasil. A bibliotecária viu nele o interesse e passou a contar-lhe várias histórias daqueles tempos.

Tudo isto despertou no menino perguntas que a mãe já não sabia mais como responder.

- Pergunte na escola meu filho. É lá que as professoras podem te responder tanta pergunta.

O tempo passou. Depois de dois anos o viaduto ficou pronto. Uma maravilha da arquitetura e da engenharia de pontes e viadutos. O pai se viu orgulhoso e desempregado.

Mas, para surpresa de todos, o encarregado avaliou como ótimo o desempenho, a pontualidade e o caráter do inexperiente trabalhador braçal. Chamou-o para integrar a equipe que iria para outra obra. Desta vez no nordeste do Brasil.

A esposa, depois de muito pensar e chorar, decidiu acompanhar o marido. Teriam casa e escola para os filhos.

A história não acabou aqui. Outro dia continuo com o retorno da família após a morte súbita daquele pai de família.

 

26/06/2021

 

 

 















































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