sexta-feira, 2 de julho de 2021

Conto: Um homem e uma mulher.

 (Delicadezas em tempos de Coronavírus - LIII)


             


- Ela me acompanhava a dois passos atrás como se não houvesse me beijado na boca logo na esquina de cima. Resolvi mudar de rumo no final daquela tarde. Então dobrei a próxima esquina a esquerda. Subi a ladeira. Cai na praça Tiradentes. Ela atrás de mim. Atravessei vagarosamente dando tempo para que ela continuasse a me seguir. Desci em direção ao quarto alugado nos fundos da República dos Amores de Marília. No caminho passei no armazém do Sô Tonico. Comprei, na caderneta, duzentos gramas de mortadela, pão sovado e um pacote de Tang de pêssego, meu sabor preferido. Seria um lanche improvisado caso a moça resolvesse ficar comigo. Não a vi ao sair do armazém. Pouco depois lá estava ela. Logo atrás. Tinha desaparecido por alguns minutos. Não sei se eu estava ou não gostando daquele jogo de esconde-e-aparece. Mas, certamente, gostaria muito que ela me acompanhasse até o quarto.

Foi assim. Ela entrou logo depois de mim. Atravessamos todo o corredor lateral da casa até minha suíte barroca. Ofereci uma cadeira junto a uma pequena escrivaninha naquele espaço solitário que mantinha para imprevistos. Ela sentou com naturalidade. Ficou me observando. Preparei o suco com água mineral do frigobar. Abri o embrulho dos pães e da mortadela. Ela continuava calada. Eu também. Fizemos nosso lanche como velhos conhecidos.

De repente perguntei:

- O que você quer de mim? Quem é você? Por acaso já nos conhecemos? Confesso que tenho gostado de saber que uma bela mulher anda me perseguindo por essas ruas e ladeiras.

Queria saber de onde ela havia surgido. Na minha ânsia de controlar a situação quase tropeçava nas minhas palavras. Sentia desesperadamente que, se continuasse o interrogatório, a perderia. E eu não queria perde-la. Ela já tomava conta dos meus pensamentos e dos meus desejos.

Roberto continuava matutando e conversando consigo mesmo. Estava em Ouro Preto havia mais de vinte anos. Nunca vira aquela mulher por lá. Era professor de introdução à filosofia no IEF da cidade. Conhecia quase todos os alunos e alunas. Não era uma delas. Mesmo porque ela aparentava ter mais de trinta anos.

Chegou a pensar que, na sua triste solidão após desfeito seu casamento de quase quinze anos, algum amigo quisesse ajudar ajeitando-lhe uma companhia.

Os pensamentos faziam festa na sua cabeça. Ele passou a contar os dias para esperar por ela.

Um dia, estando no intervalo das aulas, pegou o celular e viu uma chamada não atendida. Um número desconhecido. Não deu atenção. No meio da aula, veio a dúvida.

- Seria ela? Mas não trocamos nossos contatos.

Logo após a aula retornou à ligação. Era ela. Jamais deixaria de reconhecer a voz pausada e suave daquela mulher.

- Meu carro estragou na chegada da cidade. Poderia me ajudar?

Naquela noite conversaram muito. Estava casada. Tinha dois filhos. Vivia na capital. Conhecera-o numa videoconferência quando foi convidado a falar sobre Alberto Camus. Ela já havia lido dois de seus intrigantes livros. Queria saber mais acerca do escritor franco-argelino premiado com o Nobel de Literatura. Não perderia a conferência.

Através da tela sentiu algo no professor. Queria conhece-lo. Conversar com ele. Procurou informações. Encontrou-as poucas. Não desanimou. No final de alguns meses, apaixonada com o desconhecido, foi encontra-lo vagando pelas ruas ouro-pretanas.

Naquela noite ela o convidou para dormirem no hotel onde já havia feito as reservas. Uma luxuosa suíte os aguardava. Uma fina garrafa de champanhe. Jantar sofisticado. Luz de velas. Ela havia preparado tudo com o apoio da recepção do hotel.

Mais tarde, enlevados pela bebida, ela beijou-lhe a fronte. Acariciou lhe os braços. Suas mãos brancas deslizaram pelo corpo negro de Roberto. Isto o deixou sem palavras. Fechou os olhos e sentiu. Apenas sentiu.

No meio da madrugada ela partiu. Roberto nem percebeu que ela havia ido.

Mudou o número do seu celular.

Ainda hoje Roberto sonha com aquela mulher que levou embora seu coração.

Uma alma solitária caminha pelas ruelas de Ouro Preto.



Fotografia: Arquivo pessoal - Café Havana em Haia (Holanda) 2018

01/07/2021









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