sábado, 21 de setembro de 2024

Crônica: Cheio de histórias


Não sei quando ele apareceu, nem sei se ele apareceu ou se já estava por aqui quando por aqui cheguei.

Não passou do portão para dentro. Fugia amedrontado à aproximação de qualquer ser humano. Escondia no meio dos matos. Pensei numa estratégia para que ele se aproximasse de nós. Todos os dias colocava ração e água na divisa entre o portão e a rua. Meu instinto me dizia que ele chegaria devagar. Era dar tempo ao tempo. Mas o tempo dele foi demorado demais. Vacinas de jeito algum. São Francisco cuidaria dele.

Os de perto de minha casa diziam que ele era morador de rua. Um dia me contaram que ele andava apenas à noite. Um ou outro dava de comer.

Mas minha intuição estava certa. Ele vinha comer a ração posta a cada dia um tantinho para dentro de terreiro.

Hoje penso que ele deveria ser o parceiro monogâmico e pai dos vários filhotes da Duquesa, uma cadela nomeada de Branquela pelos vizinhos e que me adotou como sua tutora.

BranquelaDuquesa morreu adulta após um penoso tratamento de câncer de mama.

Então veio Tieta, outra branquela, esta doada pela vizinha. Depois de muitos anos ao lado dele, foi sacrificada. Leishmaniose em estágio avançado.

Ele andava atrás de mim por todos os lados. Procurava sempre por um lugar de onde pudesse me ver. Negro como a noite. Pelos brilhantes. Andar sóbrio.

Um dia, numa briga que não era sua, assustado, pulou da van no retorno do banho. Desapareceu noutra cidade. O proprietário veterinário procurou até ao anoitecer. Deu-se por vencido. Entregou o Dexter, filhotinho de morador de rua adotado por minha filha. Comunicou que “o outro fugiu”.

A partir desse dia minha filha e eu, sempre às tardinhas, íamos à cidade vizinha procurar por ele. Nada. Nenhum sinal do meu cachorro.

Numa manhã, enquanto trabalhava, recebo uma ligação da minha vizinha. “O Neguinho está no portão da sua casa. Está chorando muito e bastante machucado.”

Liguei para o veterinário proprietário. Neguinho estava com os testículos pendurados ao corpo. Uma castração acidental ao pular alguma cerca de arame farpado? Ou uma facada deliberada por alguém? Grande ferida infectada. A vizinha e eu cuidamos do pós-cirúrgico.

Neguinho, quatro semanas depois de perdido, havia voltado. Teria vindo pelos trilhos da ferrovia? Ou teria vindo pelo faro? Acho que ele tinha GPS. Ainda hoje essa pergunta continua sem resposta.

Meu companheiro de vinte anos continua vivo. Tentando viver. Está cego pelas cataratas. Muito emagrecido. Pernas arqueadas. Escutando pouco. Barbinha branca. Entretanto continua deitado sempre num lugar de onde não me perde de vista.

“Como é que esse cachorro está vivo até hoje?” É a pergunta que todos, ao redor, me fazem.

Não respondo. Cá com os meus botões penso que “é amor demais por quem cuidou de Duquesa, seu grande amor”.

Funil

21/09/2024


E nesta noite, quando caiu a primeira chuva desta primavera, depois de mais de cento  e cinquenta dias sem chuvas, escutamos um choro, um pedido de socorro vindo do meio das bananeiras. Identifiquei o choro. Era ele. Chorando no local, onde normalmente dorme, estava preso, quase coberto por folhagens e galhos caídos com as ventania e a chuva. Ele não conseguia se desvencilhar de tudo aquilo que o  impedia de se levantar. Foi resgatado e trazido no colo por minha filha que o acomodou bem pertinho de nós. 

domingo, 8 de setembro de 2024

Crônica: que barulho é esse vindo lá do céu?


- Que barulho é esse? Indagou a quaresmeira roxa, toda florida, bem ali na esquina dos móveis.


- Sei não, mas tá me parecendo o ronco de um helicóptero. Respondeu o manacá da serra lutando prá ficar de pé com tanta falta d’água.

- Agora vem ele lá, roncando feito bicho doido. E tem alguma coisa dependurada nele. Acho que é muita água pra nós. Valha-me Deus! Falou a buganvila escarlate da vizinha.

As palmeiras mais altas da região abaixaram suas folhas temendo levarem um jato d’água fria sobre elas.

E as conversas continuaram num grande e inesperado frenesi entre as árvores sobreviventes das inúmeras e grandes queimadas de toda a região.

De repente a paineira, que nessa hora parou de soltar suas painas, olhou para ver aquele arco geométrico sextavado e vazado, como se fosse uma imensa lente de óculos. Assustou, deu um grito e desmaiou.


- Acho que estamos todas sendo filmadas, ao vivo, para saberem quem de nós será a primeira a ser sacrificada. Assim falou a sibipiruna que foi socorrer sua amiga paineira.

Foi nesse instante que vários aparelhinhos de telefone saíram de suas casas e entraram em cena para filmar aquela gigantesca estrutura pendurada, por um fio, ao helicóptero como a querer capturar todas as árvores.

Os humanos também ficaram em alerta.

- Acho que alguns homens querem nos proteger. Estão preocupados também com essa seca danada. Falou o impávido eucalipto, espalhador de folhas secas por todos os lados em volta.

- Estão nos filmando. Abaixem as suas copas. Gritou o mais velho de todos, o assustador jatobá. Foi nessa hora que o bicho - helicóptero se mostrou todo sobre aquela linda fazenda bem perto de nós.

O ipê, todo preocupado com sua floração dourada, nem havia dado fé de tanto reboliço naquelas terras e, ao se ver sendo visto, juntou suas flores aos berros. Querem roubar o ouro das minhas flores!

Sobre as cabeças de todos os moradores, o ronco do helicóptero com seu olho a ver tudo, deixou-nos nus.

- O que será que querem de nós? Essa foi a pergunta que ecoou de dentro de cada um dos aparelhinhos de celular. Eu, cá comigo, fiquei engasgada. Logo fui pensando nas riquezas que temos guardadas bem debaixo dos nossos pés. Esse ouro acinzentado que tudo transforma em cinzas para trocar por dólares.

- Quem será que encomendou isso? Foi logo perguntando um miquinho sobrevivente das queimadas

- Mas hoje é sete de setembro, hoje é feriado e esse negócio continua sobre nossas cabeças. Ah, não sô! Era meu vizinho que encontrei numa dessas manhãs a me mostrar os vários ipês despontando nas terras queimadas.

- Além da seca que nos preocupa, ainda vem esse trem voador a nos aumentar nossos desassossegos. Pensou calada a mangueira preparando para sua floração.

-Oh, dona, posso tomar água aqui na sua vasilha? Estarei ficando louca ou é um jacu a me pedir água? Pois não é que é um jacu querendo beber água na minha velha panela de pedra.

-Fique a vontade! Lhe respondi. E logo vi um tucano tentando bicar minha outra vasilha d’água pelo terreiro afora.

- Sei não, mas esse negócio não tá me cheirando bem não...Pensei eu com meus botões

Depois de várias conversas entre os moradores, descobriram tratar-se do moderníssimo helicóptero geofísico, talvez comprado pelas mineradoras, com fins de identificação de recursos minerais, para exploração mineral, exploração de água subterrânea, geotecnia, arqueologia, meio ambiente e, com toda certeza, usado para buscar nossos preciosos minerais subterrâneos.

- Some prá lá trem dos infernos! Gritou uma atrevida maritaca.

- Oh céus, oh vida, oh azar... isso não vai dar certo! Gritarei eu assim como a hiena Hardy, do desenho animado Zé Colmeia, dos meus tempos de criança, lá pelos idos de 1970.

- E agora, quem poderá nos defender? Gritaremos todos nós neste domingo cujo silêncio nos tem sido ensurdecedor. 

Lamentavelmente nenhum Chapolin Colorado aparecerá para nos defender.

Os dólares são por demais poderosos.

08/09/2024