Não passou do portão para dentro. Fugia amedrontado à aproximação de qualquer ser humano. Escondia no meio dos matos. Pensei numa estratégia para que ele se aproximasse de nós. Todos os dias colocava ração e água na divisa entre o portão e a rua. Meu instinto me dizia que ele chegaria devagar. Era dar tempo ao tempo. Mas o tempo dele foi demorado demais. Vacinas de jeito algum. São Francisco cuidaria dele.
Os de perto de minha casa diziam que ele era morador de rua. Um dia me contaram que ele andava apenas à noite. Um ou outro dava de comer.
Mas minha intuição estava certa. Ele vinha comer a ração posta a cada dia um tantinho para dentro de terreiro.
Hoje penso que ele deveria ser o parceiro monogâmico e pai dos vários filhotes da Duquesa, uma cadela nomeada de Branquela pelos vizinhos e que me adotou como sua tutora.
BranquelaDuquesa morreu adulta após um penoso tratamento de câncer de mama.
Então veio Tieta, outra branquela, esta doada pela vizinha. Depois de muitos anos ao lado dele, foi sacrificada. Leishmaniose em estágio avançado.
Ele andava atrás de mim por todos os lados. Procurava sempre por um lugar de onde pudesse me ver. Negro como a noite. Pelos brilhantes. Andar sóbrio.
Um dia, numa briga que não era sua, assustado, pulou da van no retorno do banho. Desapareceu noutra cidade. O proprietário veterinário procurou até ao anoitecer. Deu-se por vencido. Entregou o Dexter, filhotinho de morador de rua adotado por minha filha. Comunicou que “o outro fugiu”.
A partir desse dia minha filha e eu, sempre às tardinhas, íamos à cidade vizinha procurar por ele. Nada. Nenhum sinal do meu cachorro.
Numa manhã, enquanto trabalhava, recebo uma ligação da minha vizinha. “O Neguinho está no portão da sua casa. Está chorando muito e bastante machucado.”
Liguei para o veterinário proprietário. Neguinho estava com os testículos pendurados ao corpo. Uma castração acidental ao pular alguma cerca de arame farpado? Ou uma facada deliberada por alguém? Grande ferida infectada. A vizinha e eu cuidamos do pós-cirúrgico.
Neguinho, quatro semanas depois de perdido, havia voltado. Teria vindo pelos trilhos da ferrovia? Ou teria vindo pelo faro? Acho que ele tinha GPS. Ainda hoje essa pergunta continua sem resposta.
Meu companheiro de vinte anos continua vivo. Tentando viver. Está cego pelas cataratas. Muito emagrecido. Pernas arqueadas. Escutando pouco. Barbinha branca. Entretanto continua deitado sempre num lugar de onde não me perde de vista.
“Como é que esse cachorro está vivo até hoje?” É a pergunta que todos, ao redor, me fazem.
Não respondo. Cá com os meus botões penso que “é amor demais por quem cuidou de Duquesa, seu grande amor”.
Funil
21/09/2024
E nesta noite, quando caiu a primeira chuva desta primavera, depois de mais de cento e cinquenta dias sem chuvas, escutamos um choro, um pedido de socorro vindo do meio das bananeiras. Identifiquei o choro. Era ele. Chorando no local, onde normalmente dorme, estava preso, quase coberto por folhagens e galhos caídos com as ventania e a chuva. Ele não conseguia se desvencilhar de tudo aquilo que o impedia de se levantar. Foi resgatado e trazido no colo por minha filha que o acomodou bem pertinho de nós.
Emocionante, mãe. Dudu e eu lemos juntinhos. Ele se perguntando o que teria acontecido com o Neguinho e eu com os olhos cheios d'água.
ResponderExcluirÉ muito amor envolvido
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