quarta-feira, 29 de abril de 2015

HOJE NO SÍTIO COM CONVIDADOS

                                
           



                          NO SÍTIO COM CONVIDADOS



   Acordei cedo e com muita vontade de escrever, de falar, de receber amigos, de cozinhar e por ai afora.

  Após minha única xícara de um café forte, com adoçantes, com bons pedaços de bolos e queijo, fui cuidar dos cachorros, das galinhas e dos inúmeros e variados passarinhos que vem beliscar os grãos que coloco para eles na nova casinha de madeira pintada de vermelho. 

  Limpo a minha casa um pouco, sento e escrevo. Nunca gostei de varrer. Acho que voarei com uma vassoura a qualquer hora.

  Não sou uma boa dona de casa, nunca fui, gosto mesmo é 
dos livros e dos filhos.


  Ontem fui ao supermercado para fazer as compras do almoço de hoje, prometido aos meus filhos e a um casal mais que amigos. Aproveitei o entusiasmo e decidi fazer uma galinhada com a galinha caipira congelada que o Neguinho matou por brincadeira ou luta por invasão de território. Convidei minhas amigas do buraco e seus maridos para virem saborear comigo aquela infeliz coitada da galinha depenada, afogada e refogada no meio do arroz. Obviamente que minha querida amiga e vizinha viera me ajudar.

 Então decidi adiantar minha preparação daquilo tudo que eu pretendia para o almoço do dia seguinte. O cardápio fora escolhido por uma das filhas que viria mas trocou meu almoço pelo aniversário da grande amiga. Acho que ela, lá no íntimo dela, sempre soube que só sei fazer tais pratos.

 Assim que cheguei à tarde, após as compras para o referido lombo com abacaxi, farofa, feijão, arroz e batatas fritas, fui para a pia, lugar certo para iniciar aquele trabalho de chef de cozinha. Encontro copos sujos e os lavo. Mas o escorredor está com pratos e vou guardá-los. No armário encontro vasilhas fora do lugar. Começo a arrumação da minha linda cristaleira. Potes vazios e velhos que excluo levando-os para o lixo seco. No caminho encontro uma vassoura, pego-a  e a levo para a área de serviço. Ali vejo minhas plantas florindo.


Paro e as contemplo. Lembro das minhas orquídeas e me dirijo até elas. Então meu olhar é chamado a ver a algazarra dos pássaros por toda a grama e pelas árvores por perto. Vejo que deveria trazer para debaixo da garagem e pendurar num dos caibros uma outra casinha menor com canjiquinha para os canários. Minha ajudante voluntária percebe minha dificuldade e embaraço e  logo traz uma cadeira para fazer aquele serviço por mim. Desce e volta correndo para sua panela.

- " O alho queimou todo !!!!" ( Era ela a rir diante da panela onde fritaria minha galinha.)

- "Olha,  você enquanto dona de casa e cozinheira dá uma ótima escritora..."

  Continuou ela com gargalhadas a debochar da minha total falta de jeito com a casa, com a galinhada, com os cachorros e com tudo enfim.

  Não é nenhuma novidade para mim. Quando me proponho a fazer um almoço, arrumar casa ou outro serviço doméstico qualquer, ando o dia todo de um lado para outro até ficar exausta e desistir. Ainda bem que eu adoro feijão com arroz e ovo frito.

  A galinhada ficou deliciosa e todos riram e brincaram comigo e com  meus desastres naquela bela cozinha. Fui dormir vitoriosa e cansada.




  Levanto às oito horas da manhã preocupada com o tal almoço que eu deveria começar logo. Mas por onde eu começo esta tarefa tão especial? Nem imagino... Comecei então por descrevê-la. Talvez assim as palavras me ajudam com as panelas. Minha vizinha, aquela debochada, chegou na cerca e perguntou: 

 -“Tá precisando de ajuda ai?” 

  Quase gritei SOCORRO, mas o marido viera passar o final de semana em casa e devo poupa-la das minhas ajudas.

  Ai meu Deus! Daqui a pouco os convidados chegam e eu sentada defronte a este escrevinhador!

  Meu pai é o culpado. Quem sabe minha mãe. Ou meus ex-maridos...

  Só sei que me perco entre panelas, canecos, copos, pratos, cadeiras, toalhas, passarinhos e meus olhos ficam viajando daqui para acolá e de lá para cá.

  Na minha juventude cismei que era uma excelente cozinheira e fiz muita bobagem. Coitados dos meus irmãos e das minhas amigas...

  Uma vez lá ia eu fazer um sonho. Criticava aqueles que minha mãe fazia. Também vê lá se isto é coisa de se fazer. Sonho é para sonhar...

  Meu pai ao lado dando palpites e eu recusando escuta-lo. Fritei com arte aqueles bolinhos da minha infância.  Meu pai esperou calmamente e pegou um deles.  Pegou outro e mais outro.

 -"Minha filha; seus bolinhos estão mais duros que tijolos." 

  Jogou alguns no chão e começou a brincar de bolinhas de gude com meus tão desejados sonhos.
  
  Vinte anos depois uma querida empregada doméstica, babá e amiga, fritou deliciosos sonhos na minha casa. Uma das minhas filhas apaixonou por eles até que um dia resolveu fazê-los num final de semana.

  Antes que minha história dos bolinhos de gude se repetisse com minha filha adolescente, pedi que aguardasse até a próxima semana. 

  Minha grande moça da cozinha e das crianças me ensinou a arte daqueles bolinhos da minha  mãe que por aqui se chamam bolinhos de chuva. Hoje sou “especialista” nesses tais bolinhos de sonhos, os mais variados. Obviamente continuo preferindo aqueles sonhos que me acontecem enquanto durmo.

  Quase nove horas da manhã. Nem escolhi o feijão. A panela de pressão nem tá pegando a danada da pressão. O lombo suíno no tempero desde ontem deveria ir para o forno. Mas a que horas ? Daqui a pouco chega meu filho e minha nora. Soube que ela adora bolo de laranja e lhe fiz um muito lindo de se ver. Só que esqueci de colocar o óleo que lhe deixaria mais  macio e mais saboroso. E agora?

  Eu fico aqui ouvindo esse som do silêncio deste lugar com suas brumas e seus ventos de outono.

  Acho que vou começar meu almoço. Ou quem sabe eu peça ajuda a minha vizinha. E a coitada amanheceu com cólica renal. 

  Então vou começar por guardar as louças e panelas da galinhada de ontem. E caminhei até o escorredor na pia...e comecei tudo de novo.



19/04/2015

quinta-feira, 23 de abril de 2015

UMA NOITE



                                                   UMA NOITE


  A manhã do início de outono estava amena, não fria. João Bosco acordou mais cedo do que pretendia e uma vontade de caminhar tomou conta de si. Levantou e olhou a nova companheira dormindo ao lado na cama. Foi até a cozinha. Preparou seu chá de erva cidreira com limão que sempre deixava por perto. Pegou um pão com manteiga e o esquentou na frigideira, mania da época de estudante. E saiu a explorar os novos lugares por onde poderia caminhar.

  A decisão de mudar-se para Ipatinga viera junto com a aposentadoria. Queria uma cidade para as bandas do leste mineiro, com boas qualidades de vida e muito verde. Os indicadores sociais, a legislação ambiental, as tais áreas verdes e a localização geográfica, foram relevantes na decisão. A esposa gostou, curtiu e compartilhou a mudança de vida. Logo partiram para as atitudes.

  Sempre guardara nas lembranças as saudades das águas do Rio Doce cujas nascentes ficavam ali na Serra da Mantiqueira. E ali também ficava a pequena cidade onde nascera.

  Havia feito uma viagem de trem, há algum tempo, à casa de um antigo amigo e apaixonou por aquela cidade. 

  Decidiram inicialmente alugar um apartamento até conhecerem bem os bairros e, a seguir, comprariam uma casa. Entretanto, na cabeça de João Bosco, a escolha já havia sido feita, ele queria morar próximo de uma grande concentração de árvores, onde pudesse fazer suas caminhadas, fazer suas compras do dia a dia e prescindir do seu carro. Usaria o transporte coletivo. E assim o fez.

  Nesta manhã em sua nova casa estava apaziguado com sua certeza. Acabara de se aposentar após mais de trinta e cinco anos dedicados a construção civil que lhe tomava tempo e lhe trazia muitas preocupações. 

  Tivera um casamento ainda no fulgor da juventude. Nunca negara que fora feliz. Vieram dois filhos muito amados e muito bem educados por ele e sua esposa. Hoje os meninos moram em países diferentes e ainda continuam seus estudos. Um deles em mestrado de marketing e outro em especialização na área de engenharia mecânica. 
  
  O casal vivera junto por quase vinte anos, mas o amor esfriou tanto para um quanto para outro e uma separação fora inevitável assim como inevitáveis foram as discussões e os ressentimentos.

  João Bosco voltou a estudar, fez curso avançado em inglês e viajou para ver os filhos. Seu coração se ocupara das limpezas dos anos acumulados no trabalho, como dizia ele nessa época.

  Entretanto um olhar diferente lhe aparecera na confusão das esperas de uma viagem internacional. Conhecera Virgínia, uma jovem mulher que acabara de concluir seu curso em Biologia e procurava empregos na área ambiental, sua formação. Telefonemas, muitas  mensagens e a relação caminhou mais rápido do que desejava ele. Mais um casamento na sua vida.

  Combinavam em tudo. Ele nas arrumações da casa e ela nas conquistas de um novo emprego. A proposta para Ipatinga era tudo que ela queria pois já havia pesquisado acerca da cidade que oferecia um campo ainda a ser explorado e trabalhado. Estavam ainda em lua de mel e nada os desencorajava. A mudança fizera bem aos dois, eles sentiam que ali iniciava uma nova etapa para ambos.


  Após tomar seu chá com limão naquela manhã, João Bosco foi em direção à sua caminhada que sempre fizera, quase que diariamente. Com ele apenas os pensamentos sob seu controle. O Ipatingão estava logo ali e ele caminhou em torno dele. Atravessou a avenida e entrou no parque Ipanema, um complexo de lazer projetado pelo paisagista Burle Marx com pista para caminhada e para corrida, lago com ilha, cata-ventos, brinquedos, anfiteatro, e quadras poliesportivas. Já conhecera vários lugares da cidade. Sua esposa era uma grande estudiosa do Jequitibá-rosa, a espécie da árvore mais antiga do Brasil e que, naquele parque, ainda havia algumas dessas raridades.


  Mas fora o perfume de um manacá que lhe tirara os pensamentos do rumo. Então viera a recordação daquela noite. Era o baile de sua formatura. Aproveitara cada minuto daquela noite com seus amigos e familiares. Contudo uma colega lhe chamara atenção. Maria Rita. Entraram juntos na faculdade e nunca tivera olhos para ela. Era uma colega como outra qualquer. Lembrou de seu talento com as disciplinas de cálculo. Lembrou que ela sempre ajudara os colegas e até mesmo passava colas nas provas mais difíceis da engenharia. Mas era só uma colega. Parecia que a moça era muito inibida. Vivia com o olhar abaixado ou sorria suavemente. Nunca a vira com namorados. Não era bonita.

  Porém naquela noite João Bosco viu algo diferente na sua colega. Ela estava magnífica. Usava um vestido preto de tecido fino com um brilho fosco. E uma frente única contornava o pescoço. Todo seu dorso estava nu. A saia era rodada e descia até os joelhos. Havia um cinto do mesmo tecido com paetês dourados que acentuavam a cintura bem definida. Maria Rita bailava levemente no salão. 

  João Bosco brincava, sorria e não conseguia desviar seu olhos daquela moça tão linda naquela noite. 

  Já pela madrugada ele tomara coragem e se aproximara dela. Fizera o convite para que saíssem juntos da festa e caminhassem de volta até o centro da cidade percorrendo a estrada. Ela sorriu e o acompanhou. A euforia dominava os dois. Na avenida entraram num hotel e pediram um quarto. E fizeram amor na manhã daquele baile deixado para trás.

   Ainda na paixão daquele encontro, Maria Rita lhe beija o rosto e ao pé do ouvido lhe diz em segredo :

  -" Eu te amei desde o primeiro dia que te vi na sala de aula. Valeu a pena esperar cinco anos"

  Eles se abraçaram demoradamente. Depois ficaram em silêncio.

  A seguir levantaram e cada um seguiu seu caminho. Nunca mais se viram...

  João Bosco se emocionou com a lembrança. Continuou sua caminhada. Sorriu sozinho algumas vezes. Colocou seus pensamentos de volta ao rumo  e voltou para casa.


15/04/2015
  


segunda-feira, 20 de abril de 2015

quinta-feira, 16 de abril de 2015

CRÔNICA: AQUELAS E OUTRAS PEDRAS




Voltei aos meus plantões na urgência psiquiátrica de um grande hospital público de Minas Gerais. Minha aposentadoria não se dera conforme esperava e fui orientada a repensa-la. Repensei algumas vezes e decidi cumprir mais algum tempo até um novo enquadramento nos tais planos de carreira que eu tão displicentemente deixei pra lá.

Agora estou eu cá fazendo mais 24 horas de um tranquilo plantão de final de semana. Embora eu preferisse estar noutros lugares. Mas gosto do meu trabalho e tenho consciência da importância dele dentro da proposta da assistência às pessoas portadoras de sofrimentos mentais, do Ministério da Saúde. Não nego um grande orgulho de participar de tão ousado projeto.

Não quero falar do trabalho, às vezes árduo, dos atendimentos e seus desenlaces. Mas quero falar daquilo que deparamos e apuramos na arte da clínica da loucura do nosso dia a dia.

E é de uma dessas cenas, ocorrida há alguns dias, que agora escrevo.

Viera dos grotões de Minas um homem que não quis saber da conversa comigo. Virou quase de costas a demonstrar total desinteresse por sua interlocutora e suas perguntas. Por volta de seus sessenta anos, apresentando também descaso com seu corpo já envelhecido e um pouco debilitado, manteve-se alheio a tudo em torno.

A irmã, ainda muito jovem, estava ao lado, calada. Perguntei o que houve com seu irmão uma vez que ele retornava de uma internação no Hospital de Pronto Socorro João XXIII, tendo sido encaminhado para lá pela equipe médica daqui. Ela se limitou a informar que as radiografias estavam sobre minha mesa mas que nada havia sido feito por seu irmão naquele grande hospital de urgências neurológicas, traumatológicas e cirúrgicas .

Se aquele se recusou a falar comigo, esta se limitou a dizer nada.

Olhei as radiografias e pude notar que havia vários corpos estranhos no interior de seu intestino. A irmã apenas negou que houvessem retirado tais corpos e que lhe informaram que os mesmos estavam caminhando dentro das alças intestinais e que seriam eliminados. A enfermagem que ficasse atenta.

Calei-me e assim fiquei por alguns instantes.

Ela me olhou e arriscou a pergunta.

- Posso falar do meu irmão para a senhora ?

Claro que pode. Era tudo que eu queria ouvir.

Ela então se emocionou e falou de um irmão amigo, companheiro, feliz, bom filho e "um excelente lapidador". Suas pedras tornaram-se famosas pela beleza e chegaram a ser exportadas. Nesse tempo estava com seu casamento marcado com a moça que escolhera e amava. Então a noiva apareceu grávida, " de gêmeos " e ele começara a ficar sem dormir, ficara estranho e perdera o apetite. Distanciara da noiva.

Passado algum tempo suas pedras começaram a desaparecer. A família procurou e questionou o sumiço daquelas raridades. O jovem noivo passara a engolir suas pedras tão bem lapidadas. Passado mais algum tempo ele começou a engolir aquelas ainda em seus estados brutos e, mais tarde, quaisquer pedras ao seu alcance. Hoje ele engole o que ver pela sua frente como frascos de perfumes, pilhas, vidros, chaves,etc.

Fui embora pensando neste homem a engolir preciosidades para tentar obstruir o buraco deixado por outra preciosidade, sua noiva e os filhos gêmeos de um outro homem.

Concluo que não haverá pedras no mundo suficientes para tamponar esse vazio deixado lá. Entretanto, quando ele assim o faz, parece que ele próprio se engana e melhora por algum tempo até serem expulsas de seu corpo. Até serem defecadas.

A irmã chora muito pelas lembranças daquele irmão artista.

Pergunto se poderia publicar a história dele, ela assentiu e acalmou diante da possibilidade de ver mais uma vez seu irmão enlaçado numa arte. Agora a literatura.

Nesta noite, alguns plantões depois daquele, fui chamada para avaliar um homem que apresentava pressão alta. E lá estava nosso lapidador que mais uma vez me ignorou quando lhe dei " boa noite".

Será que eu, enquanto mulher, também faço parte do rol das mulheres em que uma delas lhe traiu ? Vá saber...

Enquanto lembrava da história desse homem, um dos meus colegas da enfermagem me lembrou de um outro fato que eu jamais esquecerei.

Era uma tarde de sexta- feira e nós, de plantão, tínhamos vários atendimentos e decisões a serem tomadas. Enquanto digitava anotações no prontuário eletrônico deixei a porta do consultório aberta. Eis que Ronaldo, um jovem técnico de enfermagem e talentoso professor das danças típicas latino americanas, sapateava no corredor de um lado para outro a falar no celular. Não pude deixar de ouvir o que dizia:

-É verdade ? Ocê tá dizendo que está armando um temporal pelo lado de Betim e que as nuvens carregadas estão vindo para cá? Com chuva de granizo?!!!

Assustei, larguei minhas anotações e fui ligar para minhas filhas. Era preciso que elas se cuidassem e fechassem bem as janelas e portas do nosso apartamento. Afinal nós morávamos em Betim. Corri e tirei meu carro que estava estacionado sobre as centenárias paineiras do pátio do hospital. E fiquei esperando um dilúvio com muitas pedras.

Até hoje continuo esperando por tal temporal de pedras de granizo pelas bandas de Betim em direção a Belo Horizonte.

Era só uma brincadeira.

Meu colega fizera aquilo apenas para descontrair nosso estressante trabalho naquele dia. E eu, ainda hoje, continuo rindo ...

Pode-se constatar que há muitas pedras de granizo e outras tantas pedras preciosas no nosso trabalho...

Quem tiver ouvidos que escute-as.


12/04/2015

terça-feira, 7 de abril de 2015

MEU ASILO

   

    Minha rua terminava em uma ribanceira com num enorme e assustador buraco. E havia casas bem próximas dele. Achava que um dia as chuvas iriam fazer o buraco crescer e engolir todas elas. Ainda bem que não acontecera assim . O tempo passou, fecharam o buraco e a rua foi calçada com pedras pretas de pé de moleque.

    Foi naquele final de rua que essa história se deu. O despenhadeiro da minha rua ia cair num bela estradinha toda plana onde havia alguns sítios e, se continuássemos caminhando para frente, de costas para a cidade, sairíamos numa gigantesca construção também plana e em linhas retas. Ali era o Asilo. Não sei se ele tinha um nome especial. Para mim era apenas Asilo.

    Muito raramente íamos até lá. Quando isto se dava, era nas tardes de domingo. Fazíamos um comboio de amigos, amigas e vizinhos.

    Aquelas idas até lá eram só alegrias. Se abríssemos os braços de frente para aquele prédio velho e sombrio, meu Asilo teria ao centro um espaço vazio e uma porta que era a entrada da casa de dona Rosa, sempre cuidadora de lá. Ao lado esquerdo, ficavam os quartos das mulheres num comprido corredor coberto. Uma varanda. E no braço da direita, ficavam os homens.

     De frente e ao centro, ficava uma grande capela com a porta voltada para o Asilo. Havia várias imagens santas. Nunca soube se havia um santo ou uma santa protetora daquele lugar. Gostava mesmo era de ver as pessoas vivas daquele Asilo.

    Eu visitava uma por uma daquelas senhoras esquecidas pelo tempo e pelos familiares.

     Havia a dona Alzira que andava como uma madame francesa em sua corcova que lhe deixava ainda mais especial e elegante. Vivia com seus adereços no pescoço e nos braços, lenços de seda, babados de renda e por ai afora. Suas palavras eram bem ditas e seu português muito clássico. Devia ter sido professora ainda no inicio de sua vida e daquele século XX. Ela era a única mulher autorizada a cozinhar dentro de seu amplo quarto que mais parecia um castelo medieval. As sobras dos alimentos ela colocava numa janela muito alta para os passarinhos que vinham bicar e lhe fazer companhia. 

    Logo ali naquele outro quarto vivia Maria. Era doida e nunca a vimos fora dele. A porta estava sempre trancada e eu ficava procurando uma fresta para vê-la com sua loucura. Só ouvíamos seus gritos. Será que enlouqueceu depois que teve a filha e fora abandonada?

    De quem eu mais gostava era a Zirinha. Era pequenina, mais parecia uma anã, andava pelos arredores e gostava de receber as visitas. Seu sorriso era infantil assim como infantil era seu jeito. Diziam que ela seria eternamente criança. E havia uma coisa com aquela mocinha: de vez em quando ela pegava birra e sapateava e chorava e rolava no chão e dava muito trabalho para fazê-la parar.

    É sabido que as Marias dos Rosários de minha família e de todas a famílias da minha cidade eram chamadas de "Zarinha" em abreviatura de Rosarinha. Quando eu chorava ou pegava birra, meus irmãos me chamavam de Pi- Zirinha. Ou seja, eles  ainda me multiplicavam pelo valor absoluto daquela letra grega da matemática. O choro e a birra eram 3,14 vezes maiores. E ai de mim se ameaçasse chorar. Lá vinham eles em coro:

    -"olha a Pi-Zirinha " 

    Falavam e riam e quanto mais eu chorava mais eles riam.

  Meu choro acabava por conta disto. Embora hoje eu ainda continue chorando de vez em quando. Porém os motivos são bem outros.

    E nossa visita ao Asilo ainda não terminou.

    Não lembro dos homens senão do Tõezinho. Ele também era muito pequenino e também vivia sorrindo. Gostava de andar bem vestido com paletó e gravata. Ele adorava brincar conosco.

    Quando dizíamos que ele era o namorado da Zirinha, ele sorria ainda mais.

    Em algumas épocas do ano minha mãe fazia muita quitanda e mandava que nós as levássemos para o café da tarde daquela gente tão velha e ou tão enlouquecida. E todos nós íamos numa só satisfação.

   Nos finais do ano mamãe fazia várias qualidades de doces e eu e minhas vizinhas recolhíamos roupas, calçados, produtos de higiene pessoal e levávamos para presenteá-los. Acho que ficávamos mais felizes em dar lhes aqueles presentes do que eles em recebê-los.

    E quase ia me esquecendo de outros pormenores.

    Eu não gostava do cheiro dos ciprestes que serpenteavam todo o entorno daquele imenso lugar. Achava que aquele cheiro deveria ser cheiro de cemitério. Nunca havia entrado em cemitério senão naquele da minha cidade natal. Ele ficava bem no alto do morro da rua que ia dar na praça. Era lindo, florido e todo ensolarado. Não tinha medo de ir até lá. De onde eu teria tirado que o cipreste cheirava cemitério?

    E foi por aqueles caminhos que eu aprendi a andar de bicicleta sem porém ganhar muitos arranhões e sentir envergonhada com os tombos de cara no chão. 

    Também foi nos percursos desses caminhos que por algumas vezes eu pensei ter capturado minha felicidade para todo o sempre. Por ali, ainda menina, caminhei com aquele vizinho cujo enlaçamento de uma grande amizade e amor começara naqueles tempos e que ainda perdura pelos tempos de agora. 

    Acho que nos restará, para além de nossas lembranças e de nossas histórias de amor, um belo Asilo para recolher o que sobrar de cada um.

27/03/2015

quarta-feira, 1 de abril de 2015

AVESSOS



                              
                      AVESSOS


   Fulgêncio sempre fora um homem comum. Nascido em terras distantes viera ainda menino para a cidade grande. Guardara nos modos de ser a diversidade e a dureza do Vale. Apenas era  assim, sem jamais se perguntar acerca de seus contrastes. O pai, um homem para além de seu tempo arriscou com a mulher e os nove filhos uma nova vida na capital. Veio por amor à família. Queria estudar os filhos. Não que sentisse vergonha de seu trabalho na lavoura. Gostava de ver a terra sendo preparada para mais um plantio de mandioca, milho, feijão, e tudo que fosse nascido naquele torrão seco do Jequitinhonha. Mas os tempos eram outros e as secas esticavam seu período.

   Então juntou tudo que tinha e o que não tinha  e desceu os caminhos até a cidade grande. Não aperreou com as imensas dificuldades dos primeiros anos. Os filhos mais velhos logo se arranjaram em pequenos empregos que não exigiam grandes qualificações. Nem as filhas mulheres foram poupadas de trabalhar. O pai tinha preceitos de honestidade. Os saberes eram poucos mas muitos eram os ensinamentos de educação, gentileza, respeito e a verdade, sempre. Às vezes fazia até doer de tanto que exigia de seus filhos. Dizia que aquele era seu jeito de amar sua família. 

 Jamais trabalhara na construção civil mas fora nela que encontrara trabalho. E trabalhou duro sem queixar.

  Os filhos viraram homens e mulheres de bem. A esposa a tristeza e a saudade da terra a levou, disseram alguns. Ao marido  coube o choro calado e o trabalho dobrado. Envelheceu rápido demais. Seguiu caminho da mulher. Não suportou a solidão. Na simples casa comprada a prestações e muito suor ficaram apenas a filha mais nova e Fulgêncio. Os outros deram destino de casamento em suas vidas. 

  E Fulgêncio não arredou pé daquela irmã tão doce e companheira. Decidiu não casar embora se tornasse um moço muito afeiçoado. E bom trabalhador. A irmã sempre calada e calada permaneceu. Tinha lá seu amor, às escondidas do seu protetor.

  Os anos passaram na vida dos dois. Vieram muitos sobrinhos, muitas alegrias e muitas tristezas. E Fulgêncio arrumou uma companheira, também às escondidas da sua protegida. Então decidira que deveria ter sua própria casa para receber a escolhida. Cresceu no trabalho e ganhou promoções. Teve que voltar a estudar e ganhou outras vantagens no trabalho. A irmã dera de fazer artes e de tudo faziam suas mãos abençoadas. Continuava aquele amor dividido.

  Porém, no avançado de seu tempo, apaixonou como moço ainda. E desejou  outra mulher. Havia passado por alguns dissabores no trabalho. O amor antigo esfriou. Mas não tinha jeito de acabar com aquilo que restou. Já beirando os cinquenta anos tornou-se diabético e hipertenso. Sua rotina de vida há tantos anos construída teve que ser toda refeita. Perdera o sono. Chorou sozinho algumas vezes. Antecipava o que estaria  por vir de sua doença. Isolou em sua casa tão bem planejada para seus rituais de bom obsessivo. Emudeceu.

  A irmã notou o sumiço. Procurou por ele. Assustou ao vê-lo emagrecido e melancólico. Trocaram poucas palavras. Ela aconselhou que procurasse ajuda. Seu orgulho masculino desconsiderou o apelo. Entretanto decidira ligar para aquela por quem se apaixonara no recente de sua vida. Um convite fora feito. 

  No dia combinado lá se fora ele com muito peso nas costas. Parecia carregar  todos os pecados do mundo. 

  Apesar da juventude já distante, Bárbara ainda trazia traços de beleza e se mostrava uma elegante mulher. Estava bem vestida. E sua alegria contagiou Fulgêncio. Ele conseguiu esboçar alguns sorrisos e sentiu-se a vontade perto daquela mulher. Combinaram outros encontros.

 Um dia excederam nos afetos e acabaram num motel. Estavam desejosos do ato. Não se envergonharam  com o rumo que o encontro tomara. As brincadeiras e os  jogos eróticos quebrariam qualquer inibição que por ventura pudesse existir.

  Mas, no inesperado daquela hora de euforia, sua virilidade falhou. E ele se desconcertou. 

  Ela acudiu com sua feminilidade e seu bom humor. Haveria de ter outros encontros. Ela sabia que ele estava apaixonado por ela. Esperaria com paciência. 

  Ele não ligou. Nem atendeu as ligações dela. Ela entendeu que a impotência dele era bem outra.

 Fulgêncio afundou no seu trabalho e retomou seu  antigo relacionamento.


 04/03/2015