terça-feira, 7 de abril de 2015

MEU ASILO

   

    Minha rua terminava em uma ribanceira com num enorme e assustador buraco. E havia casas bem próximas dele. Achava que um dia as chuvas iriam fazer o buraco crescer e engolir todas elas. Ainda bem que não acontecera assim . O tempo passou, fecharam o buraco e a rua foi calçada com pedras pretas de pé de moleque.

    Foi naquele final de rua que essa história se deu. O despenhadeiro da minha rua ia cair num bela estradinha toda plana onde havia alguns sítios e, se continuássemos caminhando para frente, de costas para a cidade, sairíamos numa gigantesca construção também plana e em linhas retas. Ali era o Asilo. Não sei se ele tinha um nome especial. Para mim era apenas Asilo.

    Muito raramente íamos até lá. Quando isto se dava, era nas tardes de domingo. Fazíamos um comboio de amigos, amigas e vizinhos.

    Aquelas idas até lá eram só alegrias. Se abríssemos os braços de frente para aquele prédio velho e sombrio, meu Asilo teria ao centro um espaço vazio e uma porta que era a entrada da casa de dona Rosa, sempre cuidadora de lá. Ao lado esquerdo, ficavam os quartos das mulheres num comprido corredor coberto. Uma varanda. E no braço da direita, ficavam os homens.

     De frente e ao centro, ficava uma grande capela com a porta voltada para o Asilo. Havia várias imagens santas. Nunca soube se havia um santo ou uma santa protetora daquele lugar. Gostava mesmo era de ver as pessoas vivas daquele Asilo.

    Eu visitava uma por uma daquelas senhoras esquecidas pelo tempo e pelos familiares.

     Havia a dona Alzira que andava como uma madame francesa em sua corcova que lhe deixava ainda mais especial e elegante. Vivia com seus adereços no pescoço e nos braços, lenços de seda, babados de renda e por ai afora. Suas palavras eram bem ditas e seu português muito clássico. Devia ter sido professora ainda no inicio de sua vida e daquele século XX. Ela era a única mulher autorizada a cozinhar dentro de seu amplo quarto que mais parecia um castelo medieval. As sobras dos alimentos ela colocava numa janela muito alta para os passarinhos que vinham bicar e lhe fazer companhia. 

    Logo ali naquele outro quarto vivia Maria. Era doida e nunca a vimos fora dele. A porta estava sempre trancada e eu ficava procurando uma fresta para vê-la com sua loucura. Só ouvíamos seus gritos. Será que enlouqueceu depois que teve a filha e fora abandonada?

    De quem eu mais gostava era a Zirinha. Era pequenina, mais parecia uma anã, andava pelos arredores e gostava de receber as visitas. Seu sorriso era infantil assim como infantil era seu jeito. Diziam que ela seria eternamente criança. E havia uma coisa com aquela mocinha: de vez em quando ela pegava birra e sapateava e chorava e rolava no chão e dava muito trabalho para fazê-la parar.

    É sabido que as Marias dos Rosários de minha família e de todas a famílias da minha cidade eram chamadas de "Zarinha" em abreviatura de Rosarinha. Quando eu chorava ou pegava birra, meus irmãos me chamavam de Pi- Zirinha. Ou seja, eles  ainda me multiplicavam pelo valor absoluto daquela letra grega da matemática. O choro e a birra eram 3,14 vezes maiores. E ai de mim se ameaçasse chorar. Lá vinham eles em coro:

    -"olha a Pi-Zirinha " 

    Falavam e riam e quanto mais eu chorava mais eles riam.

  Meu choro acabava por conta disto. Embora hoje eu ainda continue chorando de vez em quando. Porém os motivos são bem outros.

    E nossa visita ao Asilo ainda não terminou.

    Não lembro dos homens senão do Tõezinho. Ele também era muito pequenino e também vivia sorrindo. Gostava de andar bem vestido com paletó e gravata. Ele adorava brincar conosco.

    Quando dizíamos que ele era o namorado da Zirinha, ele sorria ainda mais.

    Em algumas épocas do ano minha mãe fazia muita quitanda e mandava que nós as levássemos para o café da tarde daquela gente tão velha e ou tão enlouquecida. E todos nós íamos numa só satisfação.

   Nos finais do ano mamãe fazia várias qualidades de doces e eu e minhas vizinhas recolhíamos roupas, calçados, produtos de higiene pessoal e levávamos para presenteá-los. Acho que ficávamos mais felizes em dar lhes aqueles presentes do que eles em recebê-los.

    E quase ia me esquecendo de outros pormenores.

    Eu não gostava do cheiro dos ciprestes que serpenteavam todo o entorno daquele imenso lugar. Achava que aquele cheiro deveria ser cheiro de cemitério. Nunca havia entrado em cemitério senão naquele da minha cidade natal. Ele ficava bem no alto do morro da rua que ia dar na praça. Era lindo, florido e todo ensolarado. Não tinha medo de ir até lá. De onde eu teria tirado que o cipreste cheirava cemitério?

    E foi por aqueles caminhos que eu aprendi a andar de bicicleta sem porém ganhar muitos arranhões e sentir envergonhada com os tombos de cara no chão. 

    Também foi nos percursos desses caminhos que por algumas vezes eu pensei ter capturado minha felicidade para todo o sempre. Por ali, ainda menina, caminhei com aquele vizinho cujo enlaçamento de uma grande amizade e amor começara naqueles tempos e que ainda perdura pelos tempos de agora. 

    Acho que nos restará, para além de nossas lembranças e de nossas histórias de amor, um belo Asilo para recolher o que sobrar de cada um.

27/03/2015

2 comentários:

  1. Acho que posso chamá-la de Pi Zirinha ainda hoje, não mais pelas birras, mas pelo talento com que escreve os belos contos com que nos presenteia sempre. Saudade.

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