sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Menina de família



(Delicadezas em meio ao Coronavírus - XXIX) 



Menina, 

vá limpar a casa

Menina,

bota a roupa de molho

Menina,

vai apanhar a roupa

Vem chuva


Menina,

pare de ler esse livro

Só tem o que não presta aí

Vai rezar um terço 

Menina,

não vai à escola hoje

Tem missa na capela


Menina,

não fica aí parada

Mente vazia é oficina do diabo

Feche essa janela menina

Rua não é lugar de gente decente

Menina,

toma benção a seu pai

Menina,

vá tomar banho,

olha a piolhada


Menina,

levanta dessa cama


Menina

foi embora

Virou mulher

de rua.


30/10/2020

Foto acima da coleção particular da autora. (exposição dos trabalhos feitos pelas pessoas portadoras de sofrimento mental de BH.)




sábado, 3 de outubro de 2020

Crônica: A construção da minha casa


(Delicadezas em tempos de Coronavírus - XXVIII)



Amo viajar. Mais que viajar amo as janelas dos veículos por onde viajo. Por isto não gosto de viajar de avião. Aquelas janelinhas que, por vezes, estão no assento do outro passageiro. Prefiro ônibus, trens e carros. Melhor seriam as charretes e os carros de bois, pois assim viajo nas primeiras assistindo o rebolado dos cavalos e com uma visão de trezentos e sessenta graus e, no segundo, apesar do som triste dos chiados das rodas e os cabrestos da junta de bois, aprendo sobre o boiadeiro solitário a guiar seu caminho. Mas são através das janelas dos ônibus por onde faço minhas grandes viagens.

Foi me vendo morar naquela casa de janelas altas, ou naquela de portas largas, ou quem sabe naquela toda colorida, ou naquela onde o sol entra nas tardes ou nas manhãs, que fui decidindo como queria minha casa. Já morei em mais de duas dezenas de casas e apartamentos. Mudar sempre me foi necessário. Talvez tenha sido a maneira que encontrei de estar no mundo. Ou a maneira de mudar externamente já que não conseguia mudar cá dentro de mim. Só sei que morei em muitas cidades, em muitos bairros e amava fazer assim. 

E foi assim que comecei a construir minha casa ao longo da vida, como uma colcha de retalhos tecida no percurso dos anos com cada peça da estrutura física que eu vim colhendo através da beleza no olhar e da alma.

Dos quintais da minha infância trouxe as amoreiras, o abacateiro, as mangueiras, as bananeiras, as parreiras de maracujá foram presente de um amigo de Nova Era, os pés de limão galego, de limão-capeta ou limão-rosa foram plantios meus e, mais recentemente uma amiga me trouxe uma muda de cajueeiro. Das montanhas do Espírito Santo algum passarinho trouxe semente de café que, nesta semana, floriu e perfumou tudo em volta.  Do cerrado trouxe pés de ipê e da estrada para minha terrinha na Zona da Mata Mineira trouxe uma muda de cedro. Aqui já estavam o magnânimo jatobá e dois pés de angico. 

Depois vieram os hibiscos, a buganvília alaranjada, as orquídeas nos troncos das árvores, a grama em volta da casa. E ainda virão muitas outras flores.

A decisão de retomar a obra da minha casa viera com a visita à casa de um amigo em Muriaé. Nunca havia me encantado tanto com uma construção. Parecia que a casa havia sido feita com os retalhos da minha vida. Dela, além do desejo de construir minha casa, vieram retoques importantes como a sala com pé direito alto para refrescar todo o ambiente, as janelas no alto para entrada de claridade, os tapetes de ladrilhos hidráulicos, a grande quantidade de vegetação no entorno, a rusticidade dos materiais empregados na construção. E por ai afora. A casa do meu amigo virou capa de revista e já é famosa também fora do Brasil. Meu amigo pneumologista virou paisagista por profissão. Ele e sua esposa completam a elegância da casa.

Pois bem, continuemos com mãos à obra porque aquela é a casa do meu amigo e esta será a minha casa.

Da casa do primeiro homem libanês que conheci na minha vida, no Bairro de Bom Clima em Juiz de Fora, eu trouxe o clima bom do pé da serra e a coalhada no café da manhã.

Dos apartamentos apertados do centro de Juiz de Fora eu não trouxe as janelas voltadas para o interior dos prédios. Sem privacidade e sem passagens para o vento correr pelos espaços. Quero amplos corredores para me esbaldar correndo com o vento.

Já do primeiro apartamento em Betim trouxe o exagero na largura e altura das janelas. E do segundo trouxe o estilo e o som mineiro dos trens de ferro a correrem pelos trilhos. Daqui da minha obra ainda posso ouvi-los apitar e chacoalhar lá embaixo serpenteando o rio Paraopeba.

O fogão a lenha veio comigo de todas as casas das Minas Gerais onde não recusei os cafés com rapadura, as broas, o queijo e a deliciosa rosquinha de sal amoníaco. Entretanto, pensando bem, este fogão sempre morou dentro de mim desde a casa onde vivi entre os dois e cincos anos de idade. Era pequeno, feito com barro branco ou pintado de vermelhão, não me lembro.

Mas o construtor do meu fogão colocou nele melindres de cidade grande e eu coloquei nele as panelas de pedra de Santa Rita de Ouro Preto.

Já a churrasqueira não trouxe de lugar algum. Foi um agrado para o filho, a nora e as filhas. Mas devo confessar que ela ficou jeitosa e caprichosa.

Durante a realização do projeto arquitetônico, há mais de dez anos, insisti com o arquiteto para que todos os quartos tivessem janelas abertas para o sol nascente. Não foi possível. Apenas meu quarto terá o sol da manhã. Os dois outros não terão sol. As janelas estão voltadas para o sul e, segundo os modernos aplicativos dos raios solares durante todo o ano, apenas nos dias 30 e 31 de dezembro de cada ano, a rotação do planeta propiciará a entrada do sol neles. Não vou me entristecer com esse fato.

Já o espaço social não tem paredes. Todo aberto como se fosse o belíssimo barracão de fundos onde morei no bairro Floresta em BH no início dos anos oitenta. O projeto aproveitara um pequeno terreno nos fundos da casa e construíra um bucólico barracão de dois andares. Embaixo, num desenho em “L”, todo aberto, estava a sala, a copa, a cozinha, um pequenino banheiro social debaixo da escada, e uma lavanderia minúscula. Em cima dois quartos e um banho social. O bom gosto da arquiteta deixou sua marca registrada. Jamais esqueci daquele mini barracão encantador. 

No chão da minha sala, todo em cimento queimado da cor natural, coloquei um enorme tapete de ladrilho hidráulico nas cores azul, vermelho e amarelo que trouxera, bem antes da visita à casa do meu amigo, das igrejas por onde passei, da casa e do salão paroquial de Brás Pires, das antigas fazendas de Minas Gerais e de tantos outros lugares quando meus pés sentiam o frescor da temperatura hídrica. Sempre tirava meus sapatos para aproveitar aquela sensação.

Os cobogós foram um pedido meu. Eles me trarão privacidade. Sempre os via por ali e por aqui e nunca havia lhes dado importância. Devo dizer que a parede feita por eles ficou perfeita e ficará ainda mais quando eu enchê-la de flores.

Ainda não sei como será minha estante. Minha arquiteta e designer, hoje minha nora, tem me tranquilizado. “Farei sua estante”. Quero uma estante onde eu possa guardar e proteger meus livros. Quero espalhá-los ou deixa-los à mão e a vista. São os livros que me deram, gentilmente, todos os conhecimentos que carrego comigo. Tem sido, através deles, que choro ou alivio minhas dores. Dentro deles estão os personagens com os quais venho me interagindo por toda a vida. Certamente que terei uma vasta biblioteca.

Para segurança da casa e minha proteção tenho os cachorros de rua que me adotaram. Antônio, quando veio viver comigo, além de sua delicadeza, do gosto pelo vinho e dos pratos deliciosos, me presenteou com um casal de filhotes pastores-belgas, minha raça preferida. A família canina cresceu e toda ela vive em perfeita harmonia nos latidos e nas travessuras. 

Agora faltará a confortável poltrona da vovó – uma vovó bem moderna - onde beberei meus vinhos, lerei meus livros e de onde verei o por do sol. Entretanto não faltarão os familiares em dias de festa. Não faltarão meus vizinhos e vizinhos para a “jogatina do buraco”. Nem faltarão os amigos e amigas que trouxe comigo ao longo dos tempos.

E fico esperando que meu filho, minhas filhas, minha nora e meu neto, em seus voos, façam muitas e demoradas conexões por aqui.

03/10/2020


Toda semelhança não é mera coincidência



Ainda do livro "Canção Inacabada - A vida e a obra de Victor Jara" morto no golpe pela ditadura de Augusto Pinochet em 13 de setembro de 1973. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

"Ao mesmo tempo, a ideia do diálogo estava se tornando difícil, senão impossível...................... Até em nível pessoal ou com os nossos vizinhos era quase impraticável uma maior aproximação com gente que procurava sabotar o governo* e fechar as portas às melhorias que estavam sendo feitas para as maiorias menos favorecidas; essas pessoas chegariam a qualquer extremo para manter seus confortos e privilégios, inclusive conspirar lado a lado com os fascistas." (pag.290)


* A autora está se referindo ao governo de Salvador Allende eleito democraticamente pelo povo numa das maiores manifestações populares no Chile.