quinta-feira, 17 de junho de 2021

Conto: Sonhar de novo

 (Delicadezas em Tempos de Coronavírus - L)


                                      



Esta noite um sonho acordou-a de um pesadelo. 

Lá estava ele. Risonho, amigo, afetuoso. Ela jamais havia esperado por ele. Naqueles tempos ela ousou amá-lo. Nem uma palavra fora trocada entre eles. Os olhares bastavam. Ela mergulhava naqueles mares verdes do seu olhar. Por lá ficava. Platão estava certo, concluía.

Mas nesta noite ele apareceu para ela. Estava como sempre. Charmoso. Delicado. Exato. Trocaram afagos de amor. Nenhuma palavra. Não fora preciso. Sua presença, assim sonhada, valeu.

Por estes tempos ela estava tomando antidepressivos. Havia ido ao psiquiatra. Não era uma tristeza apenas. O doutor diagnosticou. Era depressão. Sabia bem a causa daquela falta de ânimo. A vida tinha descolorido. Ficava na cama mesmo após ter  dormido muito. Não queria ver o dia. A noite passou a ser sua companheira. Pela manhã não tinha forças para sair da cama. Não pensava coisa alguma. Acolhida e encolhida sob os cobertores. Parecia envolta nas membranas uterinas. Ficava assim. Não queria nascer.

Passou a abusar do leite. Café com leite. Leite com chocolate. Cappuccino com muito leite. Mamava.

As normas para o enfrentamento da Pandemia foram uma perfeita desculpa. Isolamento e recolhimento. Ela nem precisava explicar nada. Estava dito. Sua tristeza embalava seus dias. Os filmes e séries que tanto gostava já não lhe atraiam. Suas articulações voltaram a incomodar. Era necessário movimentá-las. Ela sabia disto.

Estava decidido. Iria engolir as tais “pílulas da felicidade”. Já não aguentava mais. Seu corpo precisava sair do casulo. Precisava desabrochar e voar.

Até então não fora difícil esconder sua apatia e sua tristeza. O isolamento imposto pela maldita pandemia vinha sendo seu aliado. Assim ninguém perceberia a solidão. Ninguém desconfiaria do desânimo. Embora, às vezes, percebia a importância da presença dos familiares e dos amigos. Mesmo sendo virtuais.

Paradoxalmente, a chegada do outono lhe trouxera esperança. Sempre gostou das baixas temperaturas. amava as florações e as cores da estação. Gostava ainda mais do inverno. Estava explicado sua melhora para além do sonhado. 

Com as baixas temperaturas, poderia usar suas roupas coloridas. A extravagância e as combinações nas cores deixavam-na mais bonita. Assim pensava. Assim se vestia.

Depois de alguns dias começou a levantar mais cedo. Esticar o corpo. Alongar os músculos. Levantar a cabeça. De repente viu sua buganvília cheia das flores alaranjadas. De repente quis comer a "terrível" baba de moça do supermercado próximo à sua casa. Voltou a fazer seu chá de capim-cidreira após o almoço. Plantou aquela muda de azaleia e nem pensou que vingaria. Voltou a ler. Passou a interagir nos tais grupos de WhatsApp. Mesmo com muito medo arriscava fazer algum comentário.

Tornaram-se afetuosos nas raras mensagens que trocavam. Continuavam sem palavras. A vida de cada um estava feita. Às vezes refeita. A admiração, o respeito e, agora, o carinho os reaproximaram. Não se viam. Uma vez ela tentou assistir uma palestra proferida por ele. Ficou que nem uma estátua. Nem piscou os olhos temendo que ele pudesse vê-la.

Já conseguiu voltar às caminhadas. Já escolhe os livros e os filmes. Até atreveu-se em documentários. Viajou pelos “Andes Mágicos”. Hoje está comprando passagens para conhecer o Amapá. Que conhecer a Fortaleza de São José de Macapá, o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, o Museu Sacasa e adoraria chegar até a cidade de Calçoene, no extremo norte do Brasil. Obviamente que caminhará pelas calçadas a beira do Rio Amazonas.

Sim. Ela voltou a sonhar.

E esta noite sonhou com ele. E ele, sem jamais o saber, a tirou do pesadelo. 

No sonho estavam alegres como os dois adolescentes que foram um dia.


Fotografia: Manacá da Serra ao lado da casa da minha querida vizinha Poliana. (Fotografado por mim em 15/06/2021)

02/06/2021





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