sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Conto: A chuva amazônica

 



Naquele dia ela acordou sentindo o mormaço do período chuvoso e a angústia das dores de seus dias, rememorando as palavras e olhares cortantes que havia recebido da pessoa que tanto amava. Assim, sem muita vontade levantou-se. 

Maquinalmente preparou um café preto e uma tapioca com queijo coalho e tucumã. Sentou-se à mesa e olhou para a cadeira vazia a seu lado, pensou nas ausências e nos silêncios que compartilhou por tanto tempo com aquela pessoa que não mais lá estava. Sentiu então uma forte dor no peito pela derrocada de seus sonhos quase infantis de uma travessia comum pelas asperezas da vida e as belezas do caminhar.

Foi despertada desses devaneios pelo gralhar de um casal de araras vermelhas que todos os dias passava sobre sua casa e tanto lhe enchiam de ternura e satisfação por colorirem seu olhar e alegrarem seus ouvidos. Mas seu coração não estava para essas alegrias passageiras, logo invejou a parceria de vida daquele majestoso e alado casal. Ao arrumar a mesa, sentindo-se mal pela inveja que sentira, quis sumir dali. Daquela casa, daquela cidade, daqueles cheiros, cores e pessoas que por anos compartilhou com o ser amado. Queria ir para o outro lado do mundo, recomeçar a vida, reconstruir os sonhos. No entanto, ela sabia, sempre soube, que o lugar mais distante que poderia ir era para dentro de si mesma, um lugar sombrio, mas cheio de esperanças, duro, porém alegre. Um refúgio nem sempre confortável, mas esclarecedor. Daí, sem perceber ela seguiu um dos conselhos que seu pai mais lhe deu na vida, o de que o caminhar é um dos melhores psicólogos que há. 

E saiu caminhando pelo bairro, observando as belezas dos quintais e dos fragmentos de mata no entorno. Admirando a grandeza e a fortaleza das Sumaúmas, mas pensando também na fragilidade de toda aquela imponência natural. O que a trouxe de volta para a sua condição, já que ela acreditava na perenidade de sua relação, que, no entanto, ruiu como uma enorme Sumaúma nas mãos dos desmatadores. Nesse claro momento sua angústia transbordou, sua garganta deu um nó e seus olhos encheram d’água, mas por orgulho ou qualquer outra coisa que há, ela não conseguiu chorar em frente a seus vizinhos que praticavam suas caminhadas matinais. Assim, em um enorme esforço ela continuou suas passadas, altiva, sem derramar uma lágrima sequer, mesmo sentindo uma enorme aflição interior e o peso das lágrimas represadas. E como num milagre ou apenas numa coincidência natural, ela sentiu cair em seu ombro uma grande gota de chuva, daquelas que só o inverno amazônico é capaz de produzir. Neste momento exato, ao pressentir a queda de uma daquelas tempestades que ela tanto admirava e que só havia presenciado nos trópicos, daquelas que lavavam a alma, esse poder único das águas, ela soube que Deus, a Mãe Natureza e os espíritos da floresta vieram lhe cobrir, lhe confortar. Acobertar todo seu pranto, sua angústia, sua dor. 

Neste preciso instante ela entendeu a dádiva da chuva, que como sua amiga e secreta confidente foi a única testemunha da purificação daquele choro engasgado.



Autor: "Eu me chamo Marcelo Rodrigues e sou "mineuara", como queijo Minas frescal com farinha de ovinha do Uarini. Gosto da leveza das palavras e das delicadezas da vida."


Nota do autor: Sumaúmas são umas das maiores árvores da Amazônia junto com as castanheiras. São verdadeiras senhoras da floresta, chegam a 60, 70 até 80 metros de altura.

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