terça-feira, 8 de setembro de 2020

Delicadezas em tempos de Coronavírus XXVII - "A Mãe"



Ainda com os olhos fechados ela tateou a cama até encontrar o celular que despertava insistentemente e o desligou. Continuou dormindo. Não conseguira pegar no sono na noite passada e acabou dormindo muito tarde. Tinha alguns planos para as semanas anteriores. Aulas, estudos, eventos sociais e, até mesmo uma pequena viagem. Queria visitar seu irmão num outro estado. Tudo adiado. Ou tudo suspenso por enquanto? Ninguém tinha as respostas para suas dúvidas. O mundo passando pela pandemia do Coronavírus e, em tempo real, todos assistindo às centenas de mortes, que sem nomes, serão apenas complicados gráficos com pontos, colunas, curvas e números.

Viúva de um soldado que morrera durante uma operação militar, Leila está cumprindo rigorosamente o isolamento social orientado pelos médicos e estudiosos de todo o mundo. O casal de filhos adolescentes lhe surpreende com a resignação de ficarem dentro de casa. Aceitaram a rotina que a mãe e eles próprios vêm construindo, sem discussões ou relaxamentos. Cada um, depois de alguns dias, estabeleceu sua rotina incluindo os serviços da casa. Ficou decidido que a filha mais velha faria as compras necessárias aproveitando essas raras saídas para fazer tarefas indispensáveis como, levar o pagamento para a diarista que mora em bairro distante com o filho pequeno, alguma cesta básica para uma família conhecida ou fazer os pagamentos no banco.

Assim os dias de Leila vêm passando, indiferente a quaisquer outras pessoas que se vissem acatando a tal quarentena cujo nome ela pensava não estar apropriado a este confinamento. Esta denominação lhe remeteu à quarentena de Jesus no deserto, à quarentena das mulheres após o parto, ao jejum de carne que a mãe lhes impunha no período da quaresma. Quarentena para Leila eram quarenta dias. Quarenta dias?! Assustou com a possibilidade de assim ser.

Leila é professora de história do ensino fundamental. Gosta muito do seu trabalho enquanto educanda. Conhece seus alunos tanto no que se refere aos rendimentos escolares quanto naquilo que pode interferir negativamente nos aprendizados. Sabe bem que adolescentes precisam, para além das normas pedagógicas, de carinho, atenção e acolhimento. Leila é desse jeito. Respeitada e adorada pelos alunos.

Hoje recebeu telefonemas de alguns pais preocupados com os filhos em casa, com as perdas dos conteúdos das disciplinas, com a falta da rotina deles e querendo saber quando voltariam às aulas. Recebeu também, pelo whatsapp, o texto de uma educadora interrogando a mesma questão para um futuro próximo. Leila tem bem claro para si que, em quaisquer que sejam as séries cursadas pelos estudantes, as perdas programáticas serão bem menor do que esses tempos estão ensinando aos alunos. O Coronavírus, para além dos sintomas e das pneumonias, traz consigo também informações em história, em geografia, em ecologia, em preservação do planeta, em matemática e estatísticas nos gráficos, biologia e ainda traz noções de epidemiologia, medicina sanitária, cuidados de higiene e solidariedade. Para ela, se os pais aproveitassem os acontecimentos advindos da pandemia, já estariam cumpridos todos os conteúdos e toda a carga horária. E nenhum aluno perderia o ano letivo.

Mas nesta manhã algo mais que a dita quarentena, lhe apertava o coração.


Logo cedo, após comer sua fruta predileta, lembrou-se da sua mãe sentada sempre no mesmo lugar da cozinha descascando melão. Nunca soubera que melão fosse a fruta favorita dela. Nem mesmo sabia que na sua cidade daqueles tempos encontravam-se melões nas quitandas. Mas sabia que seu pai satisfaria todos os seus gostos e que, portanto, daria um jeito de encontrar a distinta fruta.

E, uma pontada no peito lhe trouxe de volta às discussões com sua mãe. Lembra que até seus quinze anos acompanhava a mãe pelos desfiladeiros, tanto geográficos quanto da religião católica, para acompanha-la às missas, às reuniões do apostolado da oração, chegando até mesmo a participar do grupo das “filhas de Maria”. Porém este tempo acabara e Leila teve novos entendimentos da vida e na vida. Não aceitara que o Deus de sua mãe, tão adorado e generoso, pudesse ser corrompido pelas atitudes contrárias aos ensinamentos da Santa Amada Igreja. Fora lentamente distanciando do catolicismo embora soubesse do tanto que sua atitude abalasse a mãe. Na universidade, os estudos do obscurantismo da Idade Média quando a igreja, se misturando politicamente aos reinados, teria praticado tantos horrores em nome de Deus, fora a gota d’água para o corte definitivo com sua religião. Aprendeu que o capital sempre falava mais alto que qualquer virtude cristã. Entretanto o amor pelos rituais, o apreço pela arquitetura das igrejas, catedrais e tantas outras engenharias, permaneceram nela. Ainda hoje um de seus passeios preferidos, continua sendo conhecer as igrejas e as histórias dos “santos”.

Fora também a partir de seus estudos e de sua história pessoal, sem que percebesse o que lhe vinha acontecendo, que acabou adotando posturas de defesa às pessoas mais pobres e vulneráveis. Começou a fazer vários estudos acerca das formações das civilizações; adentrou através dos povos do continente africano e dos aborígenes australianos e entendeu muito mais do que as muitas discussões com sua mãe. E é isto que tem lhe trazido tantas pontadas no peito.

Agora, enquanto saboreia o mamão, vem-lhe as inúmeras negativas em resposta aos pedidos da mãe para que a acompanhasse ao Santuário do Sagrado Coração de Jesus. Fecha seus olhos e vê a mãe indo, sozinha pelos ditos desfiladeiros geográficos de sua cidade em direção ao templo de Deus, todas as primeiras sextas-feiras do mês ou, até mesmo, em todas as sextas-feiras. Porém, hoje, Leila reconhece que, para aproximar da sua mãe, aqueles “nãos” foram preciosos. E reconhece também que aqueles “Nãos” ainda doem mais nela do que teriam doído na sua mãe.

Leila, de uns tempos para cá, vem reconciliando com seus santos e santas deixados de lado. Não nega o fato de sua reaproximação com a igreja ter se dado com o papado do argentino, Francisco, cujas ideias coadunam com as suas. Não é por acaso que esse é o nome também do seu filho.

Entretanto nem todos esses saberes, reconhecimentos e reaproximações, nestes tempos de isolamento social, serão suficientes para apagar nela as delicadezas da mãe comendo o melão.

- Mamãe! Eu estou pensando que a vovó estava certa quando se preocupava com os lixos que produzimos na casa. Ela sempre dizia que não devíamos comprar nada que não pudesse voltar para a natureza. Você lembra?

A filha havia entrado na cozinha e Leila nem percebera.

Sim. Ela se lembra disto.

Olha pela janela e, nas suas lembranças, vê a mãe colocando cascas de frutas e restos de verduras nos dois pequeninos canteiros que ainda sobreviveram após a reforma da casa.

Teve a certeza que amara tanto a sua mãe quanto fora amada por ela. Apesar das diferenças.




Observação: Este conto foi escrito no mês de abril deste ano e concorreu no "Concurso de Contos da Pandemia da TV 247".

Um comentário:

  1. Acredito no amor nas diferenças que unem. Havendo respeito mútuo a relação prospera. Belo conto. Abraços.

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