quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Crônica: Aniversários



Setembro chegando ao fim e tive um susto ao ouvir de minha filha que mora longe que virá para o meu aniversário, no comecinho de outubro. Só que este ano resolvi pular a data e não fazer aniversário. Talvez porque a época não esteja mesmo favorecendo alegrias, talvez porque, antes de chegar aos setenta, eu tenha resolvido por em prática a mágica do Chico Adrião, nosso folclórico personagem que, já velhinho, dizia, sempre sorrindo, que sua idade estava minguando, que estava contando seus anos pra trás. 

Chico Adrião, de batismo Francisco Adriano, acho que realmente descobriu a mágica, porque povoa a memória de várias gerações sempre do mesmo jeito: baixinho, de barba e cabelos muito brancos, um sorriso largo em que se percebia a falta de dentes, carregando nas costas um velho saco cheio de latas de vários tamanhos, entre tantas, as azuis de gordura de coco Carioca, com um coqueiro no meio, as amarelas de óleo de cozinha Salada, de doces em compotas Cica, presentes que ganhava nas casas onde passava pra tomar café. 

Não raro, estendia a mão com uma lata dentro de outra, porque podia parecer, mas não era bobo: café quente servido em lata queima a mão. E as latas eram sempre limpas e redondas: não aceitava presente de lata em outro formato, talvez porque era mais fácil arrumar as redondas certinhas, uma dentro da outra, sem fazer muito volume no saco. Junto com as latas, muitas vezes vinha também um vidro ou uma lata com tampa, onde ele trazia água da mina do Pau d’Alho, água benta porque, segundo ele, havia uma imagem de Nossa Senhora em cima do morro onde brotava a mina, uma santa fujona que levaram para a igreja e que voltou sozinha para a morada antiga. 

Ninguém nunca viu tal imagem, mas todos viam quando ele aspergia a água em alguns cantos da cidadezinha, repetindo rezas que ninguém entendia. No fundo de minha imaginação de menina, achava que ele já nascera assim, velhinho, e que realmente conseguia fazer a idade minguar, mágica que vou tentar reproduzir esse ano, porque não estou vendo graça nenhuma em comemorar 68 num ano com uma cara tão fechada.

Não me lembro de nenhuma festa de aniversário de criança na minha infância: na minha casa, nada de bolos, docinhos vários ou presentes. Mamãe matava um frango, que era servido ensopado, acompanhado de arroz e angu. Em volta da mesa os irmãos se reuniam, rezavam juntos pelo aniversariante, oração que sempre terminava com um pedido: Nossa Senhora do Rosário, rogai por ele. 

Depois que todos almoçavam, servia-se a sobremesa: doce de leite picado em pequenos losangos, três para cada um, falta de educação pedir mais. O que não queria dizer que bastasse: a gente sempre surrupiava muitos, às escondidas, da lata de doce guardada em cima do armário. E na primeira quinta-feira do mês, dia de todo mundo confessar, os ouvidos do velho padre deviam ficar cansados de ouvir o pecado comum: peguei umas coisas escondido lá em casa. Não era uma questão de miséria, de regrar o que comer: era apenas um modo de educar para a sobriedade, para evitar a gula e o desperdício. Afinal, uma família grande, que crescia a cada ano, precisava aprender a ter moderação à mesa. O que não impediu minhas duas irmãs do meio de comerem quase dois quilos de doce de leite, de uma só vez, bem escondidas no quarto da mamãe.

Mas ainda assim éramos privilegiados. A maioria dos meus amigos de infância nem sabia o dia do aniversário.

Alguns adultos, sim, comemoravam a data: pessoas com certa representatividade naquela pequena sociedade do interior. E os adultos convidados levavam os filhos, não sem antes passar um bom tempo ensinando boas maneiras: não vai pedir nada! Não mexa em nada da casa dos outros! Fique quieto, perto de mim! E olha a esganação: só pode comer três docinhos; depois não aceite mais, só agradeça! E a gente via as bandejas passando com pés-de-moleque, doces de coco, de mamão, de cidra, de leite, delícias com cheiro de cravo e canela e, educadamente, dizíamos: obrigada, estou satisfeita. E lá se iam as bandejas, acompanhadas por nossos olhos compridos e gulosos . 

Essa era a regra, toda boa mãe ensinava a mesma coisa, a mesma medida. O que não impediu minha prima de comparar o que cada um comia e, no meio da festa, falar alto e bom som: "Aí, mamãe, fala com a gente pra comer três, mas já comeu quatro, né?"

Pois eram assim os aniversários dos privilegiados que podiam comemorá-los. E como disse o poeta, a gente era feliz e não sabia.
E agora que não há mais a regra de três docinhos, há a de regular os amigos: três, quatro, evitar aglomerações, usar máscaras, álcool gel, nesse pandemônio que estamos vivendo, mas,graças a Deus, ainda vivendo. Mas resolvi pular a data, resolvi fazer a mágica, voltar no tempo, minguar a idade. 

Com sua licença e sua bênção, Chico Adrião!!!



Beth Lima (Professora de Língua Portuguesa, Literatura e Redação) - Barbacena M.G.

Observação: Ao ler esta crônica não tive dúvidas de que gostaria de publicá-la neste Blog e fiquei muito honrada com a autorização de Beth Lima, minha prima, conterrânea  e contemporânea. 
Beth, obrigada pelo presente.

24/09/2020






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