terça-feira, 24 de novembro de 2020

Conto: Carta da Casa 156

 (Pand&mia XXXIII)



Campo dos Carijós,julho/2020


    Bom dia leitores

Quero começar esta carta dizendo a vocês que nestes tempos de pandemia fui ocupada por uma antiga moradora e suas duas filhas. Desde então lembranças de outros tempos passaram a povoar-me.

- “Já te falei pra respeitar os mais velhos e você foi comprar chup-chup na dona Guta com as moedas antigas do seu pai! Quando seu pai chegar vou contar tudo prá ele!”

Foi assim que vi Dona Mariinha gritando e quase arrancando as orelhas do filho quando este chegou todo serelepe dentro de casa chupando aquele gelo colorido e fazendo inveja no irmão mais novo.

Numa outra vez Zeugênio, com seus amigos da rua, após jogarem pelada num campinho próximo a uma escola primária, resolveram atirar pedras nas janelas da referida escola. Disputavam quem conseguiria quebrar o maior número de vidraças. Devo lembrar que o prédio daquela escola acabara de ser construído. Então, depois de alguns minutos, ouvi o tilintar do telefone. O juizado de menores estava com todos os meninos no fórum e queria a presença dos responsáveis. Naquele momento antecipei a dor no estômago do pai que se preocupava sempre em dar bons exemplos aos filhos. Mas Zeugênio parecia que tinha o diabo no corpo. A mãe não parava de rezar para que o menino criasse juízo.

E, por falar em telefone, eu ainda era bem pequena quando ele chegou. Foi uma festa. Todos queriam vê-lo e assustavam com o som de suas chamadas. Eu prestava atenção em tudo. Foi o maior alvoroço na rua. Tive a honra de ser a primeira casa daquela rua a ter um telefone. Todos queriam falar naquele aparelho. Eu ouvia tudo. Amores desfeitos; encontros marcados; avisos de doenças e até de mortes. O número era de conhecimento de todos os vizinhos. Ainda hoje o “dois cinco sete meia” soa doce dentro de mim. Dona Mariinha e Sr. Nelson ficavam sabendo de todos os acontecimentos da vizinhança uma vez que, as pessoas se fazendo agradecidas, concluíam que era de bom grado contar as conversas e as novidades. Eu ouvia tudo. Ficava calada com minhas paredes.

Passado mais de meio século, aqueles que me frequentaram, ainda sorriem lembrando-se do aparelho bege acinzentado do tilintar estridente. E, para minha alegria, ainda hoje ele é peça de minha decoração.

Entretanto, bem antes do telefone, fui agraciada com dois outros aparelhos eletrodomésticos, cuja ordem de chegada não me recordo. Acho que tantos anos vividos embaralharam minhas reminiscências. Mas lembro-me bem da geladeira. De tão grande quase não coube dentro da minha cozinha. Era no tom rosa claro, da marca Hotpoint. Dona Mariinha não fez tanto caso daquela aquisição. Acostumada que estava com os alimentos fresquinhos e com os modos de guardar as carnes dentro de enormes panelas de pedra ou latas de vinte litros, muito usadas naqueles tempos.

As crianças amaram em especial as formas de fazer de picolés. Zeugênio nem precisou mais comprar chup-chup da dona Guta com as moedas antigas do pai. E toda a criançada se lambuzou com os picolés.

Festa mesmo se deu foi com a compra da televisão. Minha sala de menos de dez metros quadrados chegava a acomodar até vinte pessoas e a disputa por um lugar ao chão era imprescindível. Todos queriam ver aquelas imagens de chuviscos em tons preto e branco, que falava, cantava e dava notícias. Até dona Guta que nesta época já estava ficando surda, atravessava a rua e, sendo a mais velha vizinha, tinha seus privilégios. O volume devia ficar no máximo e uma cadeira lhe era reservada.

“Simplesmente Maria” foi a novela mais querida e, em seus trezentos e quinze capítulos, por quase um ano de duração, trouxe muitas alegrias e muitas lágrimas a molharem meu chão de tacos encerados. Todos calados defronte daquele cubo falante para ver e ouvir as dores e amores de seus personagens.

Porém meus melhores personagens foram aqueles que habitavam em mim. E devo confessar que um dia muito especial para mim se deu justamente numa data dedicada aos mortos quando nascera o filho mais novo do casal. Ainda estávamos em 1963. Ganhou um nome duplo. Luiz enquanto nome de rei francês e Paulo assim como o apóstolo de Jesus Cristo, nascido na Cilícia (atual Turquia). Fiquei muito lisonjeada e me enchi de calor para acolher o meu primeiro filho.

É óbvio que acompanhei todo seu desenvolvimento. Ele cresceu rápido e acho que, entendendo os significados dos seus nomes, tão logo se formou em nobreza e ética. Até hoje agradeço aos deuses pela felicidade de tê-lo concebido dentro de mim.

Mas, leitores, quero falar de outras situações presenciadas por mim durante todos aqueles longos anos em que abriguei toda a família mais algumas moradoras temporárias e outras tantas visitas. E quero contar também dos tempos dos teatros no meu pequenino espaço entre a porta de entrada lateral e a casa vizinha a mim. Palcos enfeitados, ensaios rigorosos, fundo musical de flauta, trombone ou violão, arranjos sonoros com folhas de zinco, cortinas feitas com lençóis e colchas coloridas e textos com atos de histórias religiosas. Tudo impecável. Eu ficava ainda mais orgulhosa com a chegada de moradores até de ruas próximas.

Outra feita, em épocas de inverno e férias, eu me tornava local de reuniões para as festas juninas. Distribuição de tarefas; arrecadação de prendas para as barraquinhas; confecção de bandeirinhas coloridas; escolha dos pares para a quadrilha. Eu ficava orgulhosa e atenta a tudo. Foi assim que presenciei muitos namoros acontecerem, noivados e casamentos. Jamais esquecerei os fatos que por ali compartilhei.

Mas quando, às vezes, minhas janelas e porta não viam o sol, eu fechava meus olhos, tampava meus ouvidos e me recolhia. Era o tempo em que Dona Mariinha se entristecia. Deitada por longas semanas ela achava que era culpada por todas as injustiças, por toda miséria, por todos os pecados do mundo e carregava aquela culpa no seu corpo que, a cada dia, se encolhia mais. Nessas ocasiões todos os filhos deitavam ao redor dela. Pediam que ela levantasse. Tentavam tirar dela aquelas ideias de ruinas. Ou silenciavam. Apenas queriam estar juntos dela. Toda a rua ficava sabendo e também se recolhiam entristecidos. Assim ela ficava até o chegar da primavera. Então, de forma exuberante, seus olhos brilhavam, sua face ganhava vida e seus gestos ganhavam atitudes. Cuidava dos filhos e de mim com tal esmero a me deixar toda encantada. Parecia querer recuperar o tempo perdido. Ela se enchia de forças, cantava, plantava flores nos meus canteiros e toda a rua resplandecia com ela. Voltava aos terços à noite (eu achava o rosário e as ladainhas desnecessárias) com o marido e os filhos e a igreja de Nossa Senhora da Conceição passava a vê-la com a frequência de antes. Eu ficava quietinha com ela por ali. Sabedora que tudo voltaria a acontecer nos próximos anos. Resignada com o meu dever de protegê-la para sempre assim como o marido, funcionário público e músico que, apesar das dores de uma úlcera gástrica a lhe tirar o sossego, dedicava todo o amor àquela mulher.

Agora quero lhes contar outro fato que marcou minha história. Lembram-se do palco do teatro, que era tão só o estreito espaço de terra? Pois bem, ele acabou virando uma bela garagem durante a primeira reforma que foi feita em mim. Mais quartos, uma cozinha grande, um banheiro moderno e eu ganhei ares de uma nova e bela casa embora me mantendo bem pequenina.

Ainda me lembro da compra de uma Rural Wyllis nas cores branca e azul. Foi a consagração da família. Muitos passeios com todos dentro dela. Às vezes ainda levavam um ou outro vizinho além dos sete filhos. Foi assim que conheceram uma fazenda em Gagé, uma prainha nas curvas do Rio Paraopeba próximo a Ouro Branco, o arraial de Crockat de Sá, as histórias da Inconfidência Mineira e tantas outras localidades aqui por perto.

Numa noite escutei o choro de uma das meninas e ela confessando à irmã que sentira muito dó dos inconfidentes e de Felipe dos Santos que tanto lutaram por nossa liberdade e foram cruelmente assassinados. Não sabia se chorava com ela ou se ria daquilo. Continuei muda.

Pois bem, se eu crescia em tamanho e elegância por ouro lado, com os filhos crescendo, estudando, trabalhando, uma filha já caminhando para o casamento, eu ia me esvaziando.

Quando a filha mais nova saiu para estudar numa cidade distante, rezei com dona Mariinha por muitas noites ao pé de Nossa Senhora do Rosário, ou de Nossa Senhora da Conceição, ou do Sagrado Coração de Jesus. Ela acendia velas e, em silêncio, pedia a Deus proteção para a menina. Calei-me diante do seu pressentimento de que aquela filha não voltaria mais. Logo a seguir mais uma filha iria embora. Esta se casou. Meus quartos foram ficando vazios. Confesso que também chorei naquelas ocasiões.

E como dizem os poetas, o tempo é implacável.

De repente todos os filhos cresceram e cada um voou no seu pedaço de céu. Sr. Nelson e dona Mariinha ficaram sós.

Tenho sobrevivido de minhas lembranças nestes tempos de isolamento, de pandemia e de mortes. Entretanto não me furtarei à constatação de que este Coronavírus se, por um lado tem sido tão impiedoso, por outro lado tem promovido inúmeras transformações dentro das pessoas. Sou testemunha. Hoje acordei com o colorido de flores no quintal. Dentro de mim exalava o cheiro de rosas. O som de uma gargalhada ocupava-me por inteira. Raios de sol iluminavam todas as imagens dos Santos e Santas espalhadas em minhas paredes, em oratórios ou em mesinhas delicadamente preparadas para recebê-las.

Então acompanhei o espectro de Dona Mariinha pelos quartos onde as netas dormiam e, a seguir, pelo quarto onde ela dormira por quase quarenta anos. Ali, encolhida como ela própria o fazia, dormia a filha que havia ido embora. Neste momento presenciei os afagos da mãe sobre o corpo da filha enquanto entoava canções de ninar.

Abraços amorosos da

       Casa 156

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