(Delicadezas em Tempos de Coronavírus XXXII)
Nunca havia visto até então uma campina. Mas ela estava lá. Era uma campina verdinha como nos filmes de TV que gostava de assistir. Lembrou da campina onde o Bambi pastava com sua mãe. Então ela começou dando largas passadas por entre o capim. De repente sentiu que seus pés não estavam mais sustentando seu corpo. Não havia mais o solo úmido e macio sob seus pés. O capim esbarrava nos joelhos. Uma brisa fria tocou seu corpo pequenino.
A menina plainava a meio metro do chão. Acordou dentro do sonho e concluiu num sorriso de felicidade: “Eu estava sonhando”.
Entretanto a sensação era tão real que logo reconciliou o sono dentro do sonho para continuar seu voo. E tão logo fechou seus olhinhos já estava novamente plainando nas campinas de seu sonho. Abriu os braços num instinto de equilíbrio como as aves e voou. Voou longe.
Na manhã seguinte não quis contar aquela experiência para ninguém.
“Foi verdade. Eu voei. Eu posso voar. Eles não vão acreditar. Melhor ficar calada”.
A sensação trazida pelo sonho continuou na menina que teve a certeza de poder voar. Bastava correr, abrir os braços, dar largas passada e fechar os olhos.
Mas um fato estranho aconteceu num dos seus voos. Num trecho do caminho encontrou com dois cavaleiros. Um deles estava montado num pequeno cavalo e tinha uma das pernas quase encostada ao chão. A menina parou de plainar para cumprimenta-los. Logo ficou estarrecida ao ver que a perna pendente estava descoberta e era exageradamente grande. A perna estava escura, com muitos pelos que faziam pensar em carrapatos ou outros insetos, alguns deles voadores. Curiosa feito ela só a menina foi logo perguntando o que era aquilo. O acompanhante, até então quieto, respondeu que “O Sô Tunico tem uma doença na perna que chama pata de elefante. Por isto ele não consegue mais andar. Eu ajudo ele”.
Era demasiada pouca aquela resposta. Aquela perna, mais parecendo um cupinzeiro, deixou a menina voadora cair por terra. Perguntou o que eles estavam fazendo por aquelas bandas de campina e teve como resposta “estamos procurando quem nos dê de comida e de pouso”.
Deram bom dia e continuaram a viagem nos passos lentos de uma perna maior que todo o resto do corpo.
A menina sentou-se por ali e ficou a pensar. Pensou. Pensou.
Levantou num repente. Abriu os braços. Deu grandes passadas e voou. Passou acima dos dois cavaleiros. A tarde logo chegaria. Era preciso chegar em casa antes do fim do dia. Queria pesquisar sobre aquela doença tão esquisita. “Uma perna de elefante?”
Ligou seu PC de última geração e digitou “doença perna de elefante” e, num piscar de olhos encontrou a resposta.
“Elefantíase é uma doença rara, transmitida por mosquitos infectados com larvas do parasita chamado Wuchereria bancrofti que entram na corrente sanguínea e se instalam nos vasos linfáticos, daí outro nome da doença de “Filariose linfática”.
Às vezes são tão grandes os edemas que podem dificultar os movimentos.
Na maioria dos casos a doença é assintomática. Mas podem aparecer edemas nas pernas e braços, edemas nos testículos e mamas. Dores musculares e de cabeça, calor e vermelhidão nos membros inferiores, coceira na pele e mal estar generalizado.
A doença aumenta o risco de infecções bacterianas que endurecem e engrossam a pele (elefantíase).
A elefantíase já foi encontrada em mais de 80 países principalmente na África, Ásia e Américas Central e do Sul.
Existe tratamento, mas se houver demora para o diagnóstico e início do tratamento, a doença pode causar sequelas permanentes de elefantíase.
O tratamento é feito com antiparasitários e, em caso de infecções secundárias, há necessidade também de antibióticos.”
A menina leu. Releu. E muito pouco entendeu. Seus entendimentos eram outros e suas dúvidas eram muitas.
“Como pode o homem viajar pelo espaço, pisar na lua e ainda ter tantas doenças evitáveis?”
“Como poderia haver tantas pessoas sem teto e sem alimentos?”
“Como pode haver tantas crianças passando fome nos países pobres e tantos desperdícios nos países ricos?”
Acabou adormecendo de tanto pensar.
E nos seus sonhos ela estava novamente sobre uma campina. E a noite já quase engolia o dia. Lembrou do Sô Tunico e seu companheiro. “Onde estariam naquela hora?”
E nos seus sonhos ela estava novamente sobre uma campina. E a noite já quase engolia o dia. Lembrou do Sô Tunico e seu companheiro. “Onde estariam naquela hora?”
Com uma varinha de condão fez aparecer uma casinha iluminada com lampião na porta e foi para lá que os dois viajantes caminharam.
Chegaram; bateram à porta. Ali morava um casal de idosos. Os filhos já haviam partido para outros pousos. O casal acolheu os dois desconhecidos.
Havia um fogão onde a lenha verde crepitava. O cheiro bom de broa de fubá com rapadura e canela pairava pela casa. O casal deu-lhes de comer, ofereceu duas camas com lençóis limpos e água morna para limpar a “pata de elefante”.
Nesta hora, a menina sentou-se no galho de uma árvore a observar o encontro ajeitado. Viu as sombras bruxuleantes do fogo nas paredes da casa.
Acordou com o cheiro de broa de fubá que sua mãe havia feito. Era hora de ir para a escola.
A menina sentiu algo diferente em seu pequenino ser. Esboçou um sorriso, abriu os braços e, pela primeira vez, sentiu-se livre no seu querer. Ela podia voar.
E nessa hora entendeu seu sonho.
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